quarta-feira, março 09, 2005

VIRIATIS - vol. I, nº I, ano de 1957 (2/12)

Mestre Arnao de Carvalho, entalhador flamengo 1506-1533

por Fernando Russell Cortez

A primeira notícia documental que nos fala da actividade em Portugal de Arnao de Carvalho, mestre entalhador, mostra-nos ter sido, este imaginário flamengo, um colaborador do pintor Vasco Fernandes.
Aos 29 de Setembro de 1506 intervem Arnao de Carvalho no acto notarial lavrado por motivo do acrescentamento do Retábulo da Sé de Lamego (1).
Serviria de modelo o Retábulo da Sé de Viseu e os entalhadores Arnao de Carvalho e João Utreque comprometem-se com o pintor Vasco Fernandes, mestre da obra do Retábulo de Lamego: de fazerem o dito acrescentamento de maçonaria com seys paynees e dous pillares gramdes e sua maçonaria asy como se contem nos outros doze paynees sobre ditos cõ seu guarda poo asy como se cõtem na outra sobredita obra em maneira que diga huua obra cõ a outra.
A atitude de Vasco Fernandes, aproveitando a colaboração de Arnao, bem poderia corresponder à existência de anteriores relações amigáveis entre o pintor e os entalhadores. Conhecendo, através dos documentos, como nesta época todo o imaginário, de certa nomeada, emparceirava com os pintores, colaborando mutuamente, no enriquecimento ou no preparo das obras que arrematavam, não será desacertado procurar conhecer, na maior minúcia, os passos da vida dum entalhador que colaborou e manteve relações de confiança com o nosso pintor viseense Vasco Femandes.
Todos os documentos referentes a Arnao de Carvalho (2) inculcam-no como natural de Flandres. Não é de estranhar que tal aconteça, uma vez encontrar-se o nome Arnao, com frequência, nos documentos do fim do século XV e dos começos do XVI, individualizando expatriados, da Europa Ocidental: vidreiros, escultores de pedra e madeira, bombardeiros de profissão, etc.. Nome que no fim do 1º terço do século de quinhentos pertencerá a pintores portugueses, como veremos noutro estudo.
De 1506 a 1509 deve ter Arnao de Carvalho trabalhado como seu parceiro João Utreque na marcenaria entalhada do Retábulo de Lamego.
O seu trabalho deve ter agradado ao Bispo D. João Camelo Madureira, o qual aos 2 de Julho de 1509 aprouve de dar a empreytada a arnaão de carualho framengo e mestre de ma
çonaria .s. esta obra que ao diante se segue que eh a estoria de nosa Snnõra que se chama a Virge de Jasee aquall estoria na de estar em hum paynel em cima do altar o primeiro no mº do Retavollo que o dito Sor bpo tem mandado fazer na dita sua see de Lamego
.
Posteriormente, aos 29 de Janeiro de 1510, Arnao de Carvalho intervem noutro acto notarial que, muito importa referir, fidedignamente testemunha a existência das parcerias entre oficiais mestres.
Neste dia e perante o notário Lopo Ruiz de Lamego, que lavrou a respectiva nota, comprometeram-se arnao de carvalho e amgello Ravanel burgonhão, mestres da marcenaria, estantes na cidade.
Por eles foi dito que lhes prazia serem parceiros e irmãos em todas as obras que ambos e juntamente e, cada um por si isolado tomassem - lt se obrigaao hum ao outro que quall quer obra que cada hum tomar ou aceptar de o fazer saber hum ao outro pera em ella laurarem e trabalharem de permeo e fazer cada hum delles tamta despesa como o outro E o ganho ou perda que se acontecer nas taes obras que tomare asy em estes Regnños de portugal como em castella e em outras quaesquer partes de partirem irmaamente como irmãos e boõs cõpanheyros em tall que o ganho e perda seja igual a ambos. . .
Esta parceria deve ter dado os seus resultados pois passados poucos meses vemos que Arnao de Carvalho se obrigava a fazer uma obra ao R.mo Sor Arcebispo de Braga. Serviu de fiador deste contracto, até ao montante de quinze mil Reis brancos, o pintor Vasco Femandes que aos 5 de Maio de 1510 compareceu e outorgou o termo de fiança no cartório do notário Lopo Ruiz (3).
Vergílio Correia (4), afirma nada saber deste entalhador e imaginário no lapso de tempo compreendido entre 1510 e 1523, ano em que, em Setembro, nos aparece já residente no Mosteiro de Salzedas.
Procuraremos suprir esta lacuna com outros testemunhos documentais existentes nos arquivos galegos e relativos ao nosso entalhador.
Através dos protócolos do escrivão de Santiago de Compostela, Macias Vasques, relativos aos anos de 1521 e 1522, sabemos que Mestre Arnao, entalhador flamengo, foi o autor da traça do magnífico sarcófago de estilo plateresco e lavrado na pedra litográfica, que, na capela de S. Bartolomeu, da Catedral Compostelana. guarda os restos do Cónego Mestre Escola D. Diego de Castilla, falecido em 1521. Estes elementos constam do testamento outorgado aos 14 de Janeiro do dito ano, no qual D. Diego de Castilla deixou por herdeiro o Arcebispo D. Alonso de Fonseca. A herança foi trespassada ao Cónego D. Pedro de Castilla, irmão do finado, com a condição expressa da construção, na já referida capela, do retábulo e do sepulcro de D. Diego «conforme a las trazas de Mestre Arnao (5).
Quanto tempo se demoraria ainda pela Galiza, não o sabemos hoje. Porém em 1523 aparece-nos Mestre Arnao, residente no Mosteiro de Salzedas, onde tinha então moradias, e sabemo-lo tomante de obras de talha para igrejas do Bispado de Lamego.
Assim, aos 3 de Setembro de 1523, Arnao aceita a empreitada da construção de um retábulo para a igreja de Freixeda do Torrão, do termo da vila de Castelo Rodrigo da feyçã e maneira e grandura e altura e de Imaginária e maçonaria q he ho Retavullo de Igreja dallmendra (6).
Este documento até nós chegado, informa-nos indirectamente que entre a estadia de Amao de Carvalho em Santiago e o ter aceite a encomenda do Retábulo de Freixeda do Torrão, este entalhador e imaginário tinha executado um outro retábulo para a igreja de Almendra, dando plena satisfação ao visitador da Comarca de Riba Coa.
Aos 30 de Julho de 1526 contracta a feitura das portas principais da Sé de Lamego, nos precisos termos e condições exaradas na escritura que foi lavrada por tabelião lamecense, cujo nome desconhecemos por estar incompleto o documento encontrado por Vergilio Correia (7).
Logo a seguir, aos 29 de Agosto de igual ano compromete-se a fazer o retábulo para a Igreja de Malpartida.
Foi parceiro neste contracto o pintor Bastião Afonso e de acordo com o contracto o retavollo sera de booa madeira e maçonaria e em elle se fara huua Imagem de vulto de nossa Sra cõ seus amjos devullto e cõ seis pillares e maçonaria de feiçã e maneira que ora esta fecto o Retavollo da Igreja dallmendra e da vantajem que seja mais e nõ menos e em cada pillar huua perfecta de vullto e o retavollo sera de altura e largura .s. de quatorze palmos de largo e dezasseis dallto e asy sera pintado e estofado e dourado da pimtura e maneira que he o da dita Igreja de allmendra... (8)
Este retábulo teria de estar terminado no dia de Santa Maria de Setembro do ano imediato, de 1527.
Nos últimos meses de 1527 sabemos que Mestre Arnao se encontrava de novo a morar em Santiago de Compostela e era então considerado freguês, como estrangeiro, da paróquia de Corticela.
Teve então uma questão com um outro colega de trabalho, o entalhador Cornielles de Holanda, pendência em que este o acusa de lhe ter tirado um oficial.
Amao de Carvalho requereu nos termos seguintes:
«Notario presente dad por testimoniov signado a mi Arnao entallador, deste requerimento que hago a Maestre Cornielles entallador, vecino desta cibdade de Santiago de como le pido me haga entregar uma gorra de pana colorada nueva que vale un castellano e una espada que valle um ducado e ciertos rosarios e Santiagos, de azabache que valdrán muy bien tres ducados y mas e ciertos fierros de mi oficio que valdrán otro médio ducado, lo qual todo el dho. Cornielles me hizo tomar a Joan Porra, teniente de Assistente e me hizo detener aqui e detiene deziendo que yo fui sabidor de un criado que se le fúe después de su casa sin yo tener culpa, que protesto todos los dias que aqui me hizo estar e gastar e hiciese estar, que me pague por cada uno de los dhos dias dos reales, con más las cosas de suso declaradas e suestimacion e costas que sobre ello me hizere fazer e de me quexar del e del senor Juan Porra al Senor Gobernador e oydores deste Reyno, pues, que injustamente me tiene tomado mi hacienda e sin tener informacion ninguna contra mi. . .» (9)
Notificado o requerimento a 2 de Dezembro de 1527, contestou o requerido Mestre Cornieles «...que el dho. Arnao jurase que no supro del dho, Moço ni lo induzió para que se salíese con el e le desembargaria su hazienda e que otra cosa no tiene con e1 dho. Arnao».
O extracto dos documentos dos arquivos Compostelanos referentes à pendência havida entre o entalhador Cornielles de Holanda e o nosso já conhecido Arnao de Carvalho, fornece importante achega para complemento da biografia deste entalhador flamengo, que tanto trabalhou para o enriquecimento dos templos da Beira Alta.
Além das suas já consabidas actividades como entalhador, escultor imaginário e arquitecto, sabemos ter igualmente trabalhado o azeviche, no fabrico de rosários e imagens do Apóstolo da Espanha que tão larga aceitação tinham então entre os peregrinos que visitavam o túmulo de Santiago.
Comprovada fica assim quão polimorfa era a actividade dos imaginários quinhentistas e como não se ofendiam quando denominavam - oficina - ao seu lugar de trabalho.
Vantagens reais do sentimento corporativo que então animava estes escultores cuja obra resistiu serena à acção dos homens e dos séculos, artistas, os quais não se sentiam ofendidos por lançarem mão de ofício que por vezes os levavam a actividades hoje mais ou menos depreciativamente consideradas como artesanais.
Alguns anos depois voltamos a encontrar testemunhos da actividade nas paróquias beirôas, pertencentes ao bispado de Lamego.
Quanto tempo se demoraria em Santiago ignoramo-lo, no entanto já em 1533, a 27 de Outubro, toma de empreitada o trabalho do Retábulo da Igreja de Valdigem, dos arredores de Lamego, retábulo que o pintor Bastião Afonso teria de completar com trabahos da sua arte.
Como se verifica não faltam testemunhos da importância que os arquivos galegos assumem para o esclarecimento de alguns capítulos da nossa História de Arte durante os Séculos XVI e XVll.
Disso é contraprova a pequena amostra de elementos que este breve estudo arquiva com os quais completamos a resenha da actividade de um escultor flamengo que muito trabalhou nas Terras da Beira.

(1) Torre do Tombo - Lamego, 26 - 9, fls. 132, seg. Vergílio Correia, Vasco Fernandes, Mestre do Retábulo da Sé de Lamego, pág. 103, s. s. Coimbra - 1924.
(2) Vergílio Correia, op. cit., págs. 103, 106, 107, 108, 110, 112, 125, 128, 130 e 132.
(3) Torre do Tombo - Lamego, 26 -lI, fIs. 151, vº.
(4) Op. cit., pág. 85.
(5) Alonso Perez Constanti, Diccionário de los artistas que florescieron en Galicia, pág. 46.
(6) Torre do Tombo - Lamego, 26 - 3, fIs. 79, Vergílio Correia, op. cit., pág. 124
(7) Aut. op. cit., pág. 128.
(8) Aut. op. cit., pág. 130 - Torre do Tombo - Lamego, 26 -17, fIs. 138, vº.
(9) Protocolo do Escrivão Vasco Marcote, Arquivo Notarial de Santiago de Compostela, 1527.
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