segunda-feira, agosto 08, 2005

Vénus e Marte "à indiana": a colcha do Museu do Caramulo

por Barbara Karl *

in "Oriente", nº 9, Agosto 2004, revista pubicada pela Fundação Oriente
Rua do Salitre, 66-68, Lisboa
dcultura@foriente.pt
www.f.oriente.pt


Desde a Antiguidade que o Gujarate tem sido um dos mais famosos centros de produção têxtil da Ásia (1): os Romanos conheciam as rotas do coméráo para a Índia e descrevem-nas no "Periplus Mari Erythrei" (2); a aristocraáa do Império Romano vestia-se de tecidos indianos. Graças à existência de matéria prima abundante, como algodão e seda, trabalhadores qualificados e boas ligações comerciais às rotas caravaneiras da Ásia Central, bem como às rotas ultramarinas do oceano Índico, o Gujarate era o entreposto comercial da Índia. Quando os Portugueses apareceram no século XVI utilizaram este antigo sistema de trocas em seu beneficio. No início estavam principalmente interessados no comércio de especiarias. Para pagar a pimenta, o moscatel ou a canela do arquipélago indonésio precisavam de têxteis indianos. Em breve usavam os tecidos para fins decorativos nos seus novos palácios em Goa ou Baçaim. Isto devia-se, em parte, à falta de espaço a bordo dos navios que chegavam da Europa. Os soldados, missionários e mercadores chegavam com muito pouca mobília. À medida que foi crescendo a necessidade da sua presença na Índia, começaram a construir igrejas e palácios magníficos e encomendaram várias obras de arte para os decorar. Os tecidos eram especialmente cobiçados, não só por serem muito decorativos como por serem facilmente dobrados e transportados. Eram extremamente versáteis: podiam ser usados como colchas e toalhas de mesa, podiam ser pendurados na parede ou colocados no chão como tapetes, no verão. Serviam igualmente para enfeitar os interiores e exteriores das igrejas e palácios em ocasiões especiais, tais como procissões ou a chegada de diplomatas estrangeiros.


Colcha. Fundação Abel de Lacerda-Museu do Caramulo, Caramulo (Fal 461). Doação de José Silveira Machado.

O conceito de luxo e os gostos da sociedade colonial portuguesa mudaram no contexto do Oriente. Como novo poder marítimo na região, os Portugueses procuraram competir com os soberanos locais e adaptaram as suas formas de representação. Entre outros, grandes tecidos bordados - chamados colchas nas primeiras fontes do século XVI - eram usados como manifestações externas do seu poder. As colchas eram também produzidas para exportação, mas o comércio destes tecidos ricamente decorados nunca atingiu grandes quantidades por serem considerados produtos de luxo. São referidos nos inventários da realeza e da nobreza endinheirada e dos mercadores. Por exemplo, na Biblioteca Nacional de Lisboa encontramos uma menção a colchas no inventário de bens de Dom Francisco da Gama, Conde da Vidigueira, 18° vice-rei do Estado da Índia, quando foi preso em Goa no Colégio dos Reis Magos. Entre muitas outras coisas encontramos o seguinte: "(...) Hua colcha de setim pespontada de ceda e forrada de tafeta azul(...)" (3)

Com as suas colónias de Diu e Damão os Portugueses tentaram controlar o comércio das grandes cidades portuárias do Gujarate. Tinham estabelecido a sua principal fábrica em Cambaia e mantiveram-na mesmo depois da maior parte do comércio se ter mudado para
Surate, onde também tiveram uma fábrica durante o século XVII (4). Pyrard de Laval viajou até ao Gujarate em 1607. Escreveu sobre a província: "as principais riquezas consistem em produtos de seda e algodão, com os quais toda a gente desde o Cabo da Boa Esperança até à China (...) se veste da cabeça aos pés (...) O trabalho de seda é o mesmo de todas estas espécies e os artigos importados são almofadas, cobertas, mantas, ornamentadas com grande habilidade e muito bem trabalhadas: a estas chamam colches (colchas)" (5).

O poderio português limitava-se ao comércio marítimo. As suas colónias de Diu, Damão e Baçaim localizavam-se nas fronteiras da província mogol do Gujarate, a alguma distância dos ricos centros produtivos em torno de Ahmedabad, a capital do Gujarate. Das três, Baçaim consumia a maior proporção de bens, pois era aí que vivia a aristocracia colonial portuguesa. Podemos assumir que uma certa percentagem de bens exportados era deixada em Baçaim a caminho de Goa, por exemplo, especialmente tecidos feitos por encomenda. Esta cidade outrora esplendorosa ainda existe, tal como muitas outras, mas devido ao clima húmido está em ruínas.

O contacto directo entre a corte dos imperadores mogóis do Norte da Índia e os Portugueses remonta ao reino de Akbar, que pessoalmente dera as boas vindas a uma missão jesuíta em 1580. Com esta visita, intensificaram-se as trocas de ideias, formas e técnicas. Os Ingleses, que chegaram à Índia por volta de 1600 e que eram, com os Holandeses, os maiores inimigos dos Portugueses, também cultivaram este contacto. As seguintes citações ilustram este intercâmbio. Num registo da Companhia das Índias Orientais, os feitores de Surate escrevem para Agra, o centro do império mogol, em 16 de Março de 1619: "Sua Senhoria tem três ou quatro mantas que comprou na lashkar, bordadas com seda colorida, que darão grande satisfação em Inglaterra" (6).

"Sua Senhoria", presumivelmente Sir Thomas Roe, o embaixador britânico na corte mogol, comprou estas colchas, descritas como mantas bordadas com seda colorida. É muito provável que tenham sido feitas no Gujarate. É possível que tencionasse oferecê-las a amigos em Inglaterra. É importante, contudo, notar que as comprou na lashkar, a grande e sumptuosa cidade-acampamento do itinerante imperador mogol. Isto mostra o contacto estreito que existia entre os europeus e as potências locais. Os Portugueses permaneceram em contacto diplomático com a corte mogol.

O imperador mogol Jahangir (1569-1627) passou realmente o Verão de 1619 (16 de Abril a 2 de Setembro) em Ahmedabad, de que não gostou: "Não fora a monção, não ficaria neste antro de aflições nem um só dia" (7).

Na véspera da 19ª terça-feira (31 de Agosto) realizou¬-se uma feira no palácio privado: "Antes disto era costume os mercadores e os artesãos da cidade montarem, sob as ordens superiores, lojas e oficinas no pátio do palácio e mostrar os utensílios cheios de jóias, todo o tipo de bugigangas, e brocados e tecidos que vendem no mer¬cado. (...) Passei por todas as lojas e comprei pedras preciosas, objectos com jóias e todo o tipo de coisas de que gostava. Dei a Mulla Asiri uma coisa de cada loja. Recebeu tanta coisa que foi incapaz de dar conta de tudo" (8).


Cordões torcidos (pormenor da colcha)

Poderemos assumir que "Sua Senhoria" esteve presente numa ocasião semelhante e quem teria comprado os seus tecidos? Sem dúvida que o imperador comprava bens aos mesmos mercadores que os Ingleses e os Portugueses. É muito provável que numa destas ocasiões também tenha comprado peças europeias, que lhe eram igualmente oferecidas pelas embaixadas. Como era mencionado numa carta, escrita em 1614 de Surate para a Companhia das Índias Orientais em Londres, "se enviar meia dúzia de chapéus de pele de castor coloridos, tais como os que as nossas damas usam, serão apreciados, pois o Rei (Jahangir) pediu-mos, para as suas mulheres usarem nas caçadas; e um ou dois chapéus elegantes para ele próprio, brancos ou de uma cor clara, para as suas caçadas, seriam apreciados" (9). Embora haja claramente um intervalo de tempo entre estes dois registos, dão um quadro bastante esclarecedor da interacção e intercâmbio entre os mercadores europeus e os indianos e a corte mogol. Além disso, provam que os tecidos da corte mogol provinham das mesmas fontes que os dos europeus, um facto que explica os paralelos estilísticos que apresento a seguir. A Dra. Lotika Varadarajan já antes defendeu que as karkhanas - as oficinas oficiais mogóis - em Ahmedabad trabalhavam igualmente para os Portugueses (lO). Era nelas que se executavam os desenhos, depois interpretados pelos bordadores. As fontes que consultei apoiam esta tese. Dois outros artefactos deste intercâmbio são duas colchas existentes no Museu Nacional em Nova Deli que eram originalmente do palácio de Jaipur, provando que não apenas a corte mogol mas também as cortes regionais se incluíam nesta rede.


Lótus amarelo-branco (pormenos da borda da colcha)

Tendo em conta os paralelos estilísticos e as provas documentais, parece bastante evidente que a colcha do Museu do Caramulo foi produzida na região de Ahmedabad. Devido a circunstâncias históricas e a esses paralelos estilísticos, dataria a peça entre 1640 e 1650 (11). O estilo do bordado do Caramulo é maduro, as proporções são escolhidas com perfeição e a qualidade do bordado é excelente. Podem ser feitas comparações com a arte mogol do tempo de Shah Jahan. Na década de 1630, o Gujarate foi assolado por uma fome devastadora. A província e a sua economia levaram anos a recuperar. A década de 1640 é marcada pela crescente influência dos britânicos na produção têxtil, embora os Portugueses tenham mantido uma influência considerável e um grande conhecimento dos mercados locais.

O tecido do Caramulo é parte de um grupo de colchas muito semelhantes da mesma região e provavelmente da mesma oficina. É o trabalho mais maduro do grupo. As peças são parecidas no estilo, técnica, material e motivos; encontramo-las em diferentes museus por todo o mundo, como por exemplo em Florença, em Filadélfia, em Boston, em Chicago, em Madrid e em Lisboa (12). As comparações permitem-nos discemir os diferentes estádios de desenvolvimento. Por causa da alta qualidade do desenho e execução e do estado de boa preservação. a colcha do Caramulo detém um lugar especial neste conjunto. É a única peça no grupo que representa uma cena da mitologia clássica; as outras são, na sua maioria, decoradas com personificações dos cinco sentidos.


Aves (pormenos da colcha)

A estrutura básica da peça é estritamente simétrica e evoca claramente a organização dos tapetes persas clássicos: uma grande borda externa envolve um campo rectangular com um medalhão central. O material base é o cetim e o bordado em ponto de cadeia é feito em seda tingida em bombyx mori (amora). Mede 296 x 221 cm. Outra grande diferença entre esta colcha e as outras do mesmo grupo são as diferentes cores base da borda e do centro: enquanto que as outras peças ostentam um fundo de cetim monocromático principalmente azul, a borda desta peça é de um rosa muito brilhante, e o centro de um branco ligeiramente leitoso. As cores condizem perfeitamente, sublinhando a elegância do tecido, e separam claramente as bordas do centro. Nas pontas vemos os restos de franjas multicolores. A borda é intersectada por bordas mais pequenas dispostas em seu redor, quatro corpos rectangulares principais, e quatro quadrados nos cantos. A borda mais pequena é bordada com um padrão que se assemelha a cordões torcidos (enrolados como as cordas dum barco) e que dá uma certa qualidade dinâmica à peça. Os cordões são pontuados por flores individuais. Este padrão é reminiscente da arquitectura manuelina portuguesa, onde o mesmo motivo, transposto para a pedra, é frequentemente empregue. Exactamente o mesmo padrão de cordas encontra-se muito na arquitectura colonial portuguesa.


Colcha de pendurar. Mogol, 1650-1700. Algodão bordado a seda. V&A Picture Library, Londres (n. inv. IS. 168-1950)

Na arte mogol os motivos, como por exemplo flores, eram também transpostos da arquitectura para a pintura e tecidos. Os pontos de cruzamento das bordas pequenas são marcados por uma flor estilizada. O corpo principal da borda está cheio de um motivo floral diferente, finamente bordado, que serve de fundo à fauna. A borda é regularmente subdividida pela ornamentação em enrolamentos recorrentes, que começa com uma forma geométrica semelhante a um leque, reminiscente de certos pormenores arquitectónicos do período mogo1. Estas formas são cheias de flores delicadas que lembram arabescos persas. Do meio desta forma de leque, marcada por uma flor a desabrochar, crescem dois ramos; o ponto em que se cruzam no meio do campo é coberto por um grande e redondo lótus amarelo-branco. Os ramos separam-se e voltam a encontrar-se na estrutura geométrica seguinte. Este módulo continua, imprimindo um ritmo visual muito constante à colcha. O fundo é densamente bordado com pequenas flores e folhas, concedendo um sentido de irrealidade paradisíaca ao espaço em que são colocados os animais verdadeiros: dois veados e duas aves-do-paraíso, um de cada lado. O gosto europeu da época considerava as aves de cauda longa, como o pavão ou, neste caso, a ave-do-paraíso, muito exóticas. São repetidos em todos os módulos da borda. Cada um dos quatro cantos é separado pelo padrão dos cordões e forma um quadrado. O fundo é cheio com os mesmos padrões de flores do corpo principal e mostra dois pares de aves simetricamente dispostos. Um paralelo deste tema existe na arte mogol da jahroka (a arquitectura dos tronos) do imperador Shah Jahan de cerca de 1638 a 1648, que é coberta de belos embutidos em pedra representando ornamentação em enrolamentos e aves (13). A elevada perfeição, simetria exacta e harmonia deste tecido evocam a arte do imperador mogol Shah Jahan, o construtor do Taj Mahal. Nos seus palácios, a arquitectura dos jardins era de grande importância; os jardins eram considerados como uma espécie de paraíso terrestre e incluíam sempre um complicado sistema de fontes. De forma a estender a esfera paradisíaca ao palácio, as paredes eram decoradas de embutidos em pedra florais (inspirados na técnica italiana da pietre dure (14)), e os chãos e as paredes, não só dos palácios mas também das tendas, eram cobertos de diferentes tipos de tecidos, como tapetes e bordados, semelhantes a algumas das colchas.


Marte e Vénus descobertos por Vulcano. Medalhão central da colcha (pormenor).

O centro da colcha do Caramulo é dominado por um grande medalhão. Padrões florais de uma espantosa beleza rodeiam o medalhão. O ritmo da organização lembra os tapetes persas clássicos: um centro circular, cantos realçados e uma simetria rígida envolvendo o centro.

Um quarto de uma roseta geométrica, rodeado e cheio de flores, situa-se em cada canto. Sobre eles conseguimos discernir um arbusto finamente bordado em que pousam aves. Uma flor realista cresce da borda envolvente no meio do lado longitudinal. As suas folhas são de um verde pálido e branco leitoso; as flores são de um vermelho escuro. Algumas destas flores estão a desabrochar, outras estão meio abertas, e algumas estão ainda em botão. Que género de flores são? Encontramos flores semelhantes na decoração arquitectónica, por exemplo, da jharoka no Forte Vermelho de Deli, ou nas flores esculpidas nas paredes do Taj Mahal, mas igualmente em pinturas de miniatura da época e, claro, em tecidos, tais como na esplêndida peça do Victoria & Albert Museum (IS 168-1950) (15). Estes padrões eram inspirados, por sua vez, em modelos europeus.


Pormenor dos cantos da colcha

Robert Skelton demonstrou que durante o reinado de Jahangir os artistas mogóis começaram a pintar imagens naturalistas de flores em Cachemira, a residência de Verão do imperador. Nas suas memórias, Jahangir escreve: "Cachemira é um jardim perene e um bastião couraçado (...) é um jardim que encanta o olho (...) Tão longe quanto a vista alcança há verde e água a correr. Rosas vermelhas, violetas e narcisos crescem nos campos; há campos e campos de todas as espécies de flores; (...) Durante a encantora Primavera, a montanha e a planície cobrem-se de todos os tipos de flores: os portões, os muros, as paredes, os pátios e os telhados das casas parecem arder com as túlipas. E o que dizer dos planaltos cobertos de trevo refrescante? (...) As flores vistas nas pastagens de Verão de Cachemira são incontáveis. As desenhadas pelo Mestre Nadirul'asri Mansur, o pintor, ascendem a mais de cem" (16).

Tomando estas flores verdadeiras como exemplos, os artistas mogóis em breve inventaram flores artísticas usando elementos reais e imaginários (17). É também o caso desta colcha: à esquerda e à direita da grande flor vermelha existe uma outra da mesma espécie, mas enfeitada com diferentes tipos de flores a desabrochar; nos arbustos finamente bordados observam-se umas semelhantes.

Constitui uma flor fictícia de grande beleza, rodeada de aves-do-paraíso que sublinham claramente as alusões paradisíacas já referidas. Estariam os europeus que encomendaram a colcha cientes deste significado? Provavelmente. Com embaixadas permanentes na corte mogol, os europeus estavam bem informados do que lá acontecia. Além disso, as representações europeias do paraíso não eram tão diferentes das que acabámos de ver. Quem encomendou a colcha teria escolhido outro tema para o medalhão central se não percebesse a alusão ao paraíso: vemos a descoberta dos amantes Marte e Vénus por Vulcano, o marido da última, e os deuses divertidos por cima. Vemos que o ambiente paradisíaco sublinha a cena dos deuses e que como tal é perfeitamente apropriado.

Homero relata a história de Vénus e Marte no Livro VIII da Odisseia. Vénus, a deusa da beleza e do amor, apaixonou-se pelo vigoroso deus da guerra, Marte. Um dia Vulcano, o marido de Vénus, apanha-os com uma rede de malha muito apertada e expõe os amantes aos deuses. Embora tenha sido cometido adultério, os dois amantes não são castigados; afinal, eles próprios são deuses. Vénus é representada em inúmeras imagens nos séculos XVI e XVII, como a beleza nua ideal. Ela e Marte servem de arquétipos eternos para "mulher" e "homem". Esta divertida cena de amor corresponde ao gosto das cortes da Europa dos séculos XVI e XVII. A composição do medalhão é retirada da tradição europeia. Vemos representações semelhantes nas placas de majolica de Urbino, mas igualmente em inúmeras pinturas, estampas e gravuras: o conselho dos deuses nas nuvens e Vulcano lançando a rede sobre os amantes. O tema sugere fortemente que esta colcha era usada para decoração em apartamentos privados, provavelmente pendurada na parede. A boa conservação da peça torna altamente improvável que tenha sido utilizada como coberta ou toalha de mesa.

A cena é envolta pela mesma corda de ornamentação em voluta que vimos nas bordas. O fundo da parte de baixo, onde vemos os três deuses em acção, continua a ornamentação paradisíaca. É decorada com folhas verde pálido e diferentes flores, um pequeno arbusto cresce à direita, uma árvore à esquerda. Ambos têm aves e várias espécies de flores nos seus ramos. Além disso, o escudo e a armadura de Marte estão pendurados nos ramos da árvore sob a qual o casal, sem saber o que lhes vai acontecer, se abraça. Marte ainda tem o seu capacete e Vénus, apenas com um colar e uma pulseira, tem um braço em volta do ombro do amante. O seu manto azul claro exibe um padrão floral paratáctico. Atrás desta cena idílica vemos Vulcano traído, que fez uma fina rede dourada de forma a apanhar os dois. Estranhamente enverga apenas uns calções. Dirige-se para o par, e está prestes a lançar-lhes a rede. O bordado mostra o momento exacto antes da captura. O movimento implícito confere a Vulcano uma certa qualidade dinâmica.


Combate de Krishna com Indra.
Guache mogol, c. 1585-90, V&A Picture Library, Londres (n. inv. IS. 5-1970)


Por cima da cena trágica reside o conselho dos deuses. No mito original não estão presentes na altura em que os amantes são apanhados, mas aparecem depois, quando Vulcano os chama. Contudo, os seus olhares e gestos são todos dirigidos a Marte e a Vénus. Da direita para a esquerda são Palas, Atena, com o capacete, Juno com um pavão, Júpiter coroado, o seu marido, com dardos de relâmpagos a sair da sua mão esquerda. Vemos também Apolo, o deus do Sol, e Neptuno, com o seu tridente. Todos parecem estar muito interessados no que se passa lá em baixo. Apenas vemos os seus torsos nus; o resto está oculto pelas nuvens que os rodeiam, como uma esfera celeste. As nuvens fazem lembrar a arte chinesa. A influência chinesa vem, por um lado, da arte persa, onde se observam muitas nuvens, montes ou animais em pinturas e tecidos. Por outro lado, o Gujarate possuía o porto marítimo mais importante da Índia, Surate, onde chegava a maior percentagem de bens comerciais chineses. A porcelana era um dos bens comerciais preferidos. Vemo-la muitas vezes pintada nas miniaturas mogóis. As principais cores da porcelana Ming eram o azul e o branco, as mesmas cores das nuvens na colcha. Neste caso creio ser mais provável que a porcelana chinesa tenha tido mais influência do que a arte persa; a porcelana era muito mais acessível às pessoas que encomendaram a colcha e aos artífices, visto que chegava em grandes quantidades a Surate e era também vendida nos mercados de Ahmedabad.

A forma como os deuses estão representados nas nuvens lembra as miniaturas mogóis da corte de Akbar. O imperador possuía alguns dos mais importantes textos sânscritos, tais como o Mahabharata e o Ramayana, traduzidos para persa e ilustrados com miniaturas. Estas ilustrações muitas vezes mostram os deuses hindus nas nuvens sobre a cena, tal como vemos nas pinturas do Victoria & Albert (IS 5-197°) (18). Os anjos europeus são igualmente muitas vezes representados dessa forma na pintura mogol (19).

É fascinante observar influências artísticas de regiões tão diferentes como a Europa, a Índia e a China num único tecido bordado. A sua atracção reside, sem dúvida, na mistura equilibrada e harmoniosa dessas influências. A peça foi produzida para o mercado colonial ou metropolitano português. É ainda possível, contudo, que os príncipes indianos locais apreciassem tecidos como este, mesmo que a época de Shah Jahan tenha sido, em termos gerais, menos aberta a representações pictóricas do
que as épocas anteriores. É ainda notável a proximidade entre a arte da corte mogol e esta peça, um facto que demonstra quão interligadas eram as redes do subcontinente indiano e com que rapidez eram adaptadas e incorporadas novas formas. Além disso, realça a ideia de que eram os mesmos bordadores que trabalhavam para a corte mogol e para os europeus. Encontramos o mesmo equilíbrio e harmonia na arquitectura de Shah Jahan que encontramos neste tecido. A ideia de crescimento orgânico que domina este tecido existe também na arquitectura de Shah Jahan, formando outro paralelo surpreendente.

Na década de 1640 o Estado da Índia estava ameaçado por todos os lados. A Guerra dos Trinta Anos também fora travada nas colónias. Os rivais mais perigosos eram os britânicos e os holandeses. A importância do Estado da Índia oficial declinou após a perda de duas das suas mais importantes colónias, Ormuz (1622), que controlava o comércio do Mar Vermelho, e Malaca (1641), a ligação ao mercado do Sudeste Asiático. Em 1640 Portugal reconquistou a independência de Espanha e não detinha a força para intervir nas suas colónias indianas. A independente e bem informada comunidade mercantil portuguesa continuou a comerciar, mesmo com os seus inimigos, mas necessitava de paz para florescer. As artes amadureceram, como vemos neste bordado, mas também em outros produtos da arte indo-portuguesa, enquanto o poderio português declinava.

A sociedade colonial portuguesa mostrou um inte¬resse refinado nas formas faustosas da representação indiana desde o início do século XVI. De modo a competir com os soberanos locais, adaptaram certos costumes para os seus próprios fins e, ao fazê-lo, criaram uma arte aceitável por todos os gostos.

NOTAS

* A autora estudou História da Arte e Línguas nas Universidades de Innsbruck, Nova de lisboa, Viena e na École Normale Supérieure de Paris. Neste momento prepara o Doutoramento sobre têxteis indianos dos séculos XVI e XVII encomendados pelos Portugueses. É bolseira da Österreichische Akademie der Wissenschaften.

1 - Agradecimentos especiais a: Ebba Koch (University of Vienna), Markus Neuwirth (University of Innsbruck) e Laurent Pinon (École Normale Supérieure); aos meus supervisores, Robert Skelton, Museu do Caramulo, Thomas Connolly e Roopanjali Roy.

2 - SCHOFF, 1920.

3 - Biblioteca Nacional, lisboa, Res. Cod. 1986, fª 18 vº.

4 - CUNHA, 1995. pp. 484-512.

5 - "(the) principal riches consist of silk and cotton stuffs, wherewith everyone from the Cape of Good Hope to China (...) is elothed from head to foot (...) The silk work is the same of ali these kinds, the articles imported being pillows. counterpanes and coverlets, pinked with much neatness and cleverly worked: these they call colches (colchas)." in LAVAL, 1887 [1619]. vol. II. p. 247. As datas entre parêntesis rectos mostam a data original de publicação. Por razões editoriais, optou-se por fazer a tradução para português dos excertos escolhidos pela autora, que segue a tradução inglesa da edição de 1619. Existe uma versão do texto de Pyrard de Laval em português de Cunha Rivara, editado em 1858-62, reeditado e revisto por Magalhães Basto em 1944, para além de inúmeros estudos e trabalhos parcelares sobre o autor e as versões do texto (nota da editora).

6 - "His Lordship hat (sic - has) three or four (quilts) which he bought at lasker, stichte with cullered silke, that will (give) good contente in England" in FOSTER, 1906. vol. I, p. 84 ss. Nos casos em que se trate de fontes não traduzidas para português. optou-se por colocar em nota o texto em inglês (nota da editora).

7 - "Were it not for the monsoon. I wouldn't stay in lhis abade of tribulation Ahmedabad for a single day: in THACKSTON, 1999. p. 264.

8 - "Prior to this it was customary for merchants and craftsmen of the city to set up shops upon command in the courtyard ofthe palace and bring to display for our view the jewelled implements, allsorts of trinkets and brocades and textiles they sellin the marketplace.(.u) I went through allthe shops and bought gems,jewelIed items, and every sort ofthing I liked. I gave MulIa Asiri something from every shop. He got so much stuff he was unable to keep track ofit alI: in THACKSTON. 1999. p. 273.

9 - "If you send half a dozen of coloured beaver hats, such as our gentlewomen use, they will be liked, for the King (Jahangir) demanded such things of me for his women to wear at hunting; and one or two rich hats for himself, white or some light colour, for his hunting journeys would be esteemed" citado in IRWIN & SCHWARTZ. 1996, p. 55 ss.

10 - Kunst und (...), 1999, p. 341. "Indo-portugiesische Textilien und die 'Kar¬khanas' Tradition".

11 - Ebba Koch (Professora na Universidade de Viena) e Susan Stronge (Curadora no Victoria & Albert Museum) concordaram com esta datação da peça.

12 - Ver, por exemplo, DILYS, 1997 ou I Ricami dal XIV al XVII Secolo nella Collezione Carrand, 1991. Firenze: Museo Nazionale del Bargello.

13 - KOCH. 1988.

14 - Embutidos em pedra à florentina, segundo denominação em Portugal (nota da tradutora).

15 - CRILL, 1999. p. 42.

16 - "Kashmir is a perennial garden and an ironelad bastion (...) it is a garden that delights the eye (...) As far as the eye can see there is greenery and running water. Red roses, violets and narcissi grow wild; there are fields after fields of alI kinds of flowers; (...) During the enchanting spring, mountain and plain are filled with all sorts of blossoms; gateways, walls, courtyards, and roofs of houses come ablaze with tulips. What can be said of the plateaus covered with refreshing clover? (...) The flowers seen in summer pastures of Kashmir are beyond enumeration. Those drawn by Master Nadirul'asri Mansur the painter number more than a hundred" in THACKS¬TON, 1999. p. 332 ss.

17 - SKELTON, 1972.
18 - STRONGE, 2002.
19 - Como me foi mostrado em OKADA, 1992, p. 44. imagem Akbar com leão e bezerro (Akbar wilh lion and calf do Metropolitan Museum de Nova lorque.


AFZAL, Ahmed, 1991 - Indo-Portuguese Trade in the Seventeenth Century. New Delhi: Gian Publishing House.

AFZAL, Ahmad, 2000 - Portuguese Trade and Socio-Economic Changes on the Western Coast of India 1600-1663. Delhi: Originais.

BETHENCOURT. F. & CHAUDHURI. K.. 1998 - História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Circulo de Leitores. vols. I, II e III.

CUNHA, J. Manuel de Almeida Teles e, 1995 - Economia de um Império: Economia política do Estado da Índia em torno do mar Arábico e Golfo Pérsico. Elementos conjunturais: 1595-1635. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa (dissertação inédita apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas orientada por Luis Filipe Thomaz).

DILYS, Blum, 1997 - The Fine Art of Textiles: The Collections of the Philadelphia
Museum of Art
. Philadelphia: Philadelphia Museum of Art.

CRILL, Rosemary, 1999 - Indian Embroidery. London: V&A Publications.

FANELLI. Rosalia Bonito, 1970 - An Indo-Portuguese Embroidery in the Bargello. Bulletin ofthe Needle and Bobbin Club. New York. Vol. 53, pp. 17-36.

GOPAL, Surendra, 1975 - Commerce and Crafts in Gujarat l6th and 17th Centuries. New Delhi: Peoples publishing House.

IRWIN. John, 1949 - The Commercial Embroidery of Gujerat in the 17th century, Journal of the Indian Society of Oriental Art. Calcutta. S. 51-58.

IRWIN, John & SCHWARTZ, P.R., 1966 - Studies in Indo-European Textile History. Ahmedabad: Calico Museum of Textiles.

FOSTER, William. 1906 - The English Factories of India 1618-1621. Oxford: Clarendon Press.

KOCH, Ebba, 1988 - Shah Jahan und Orpheus. Graz: Akademische Druck und Varlagsanstalt.

Kunst und Ausstellungshalle der Bundesrepublik Deutschland, 1999 - Die groflen Sammlungen VIII: Museu Nacional de Arte Antiga Lissabon. Bonn/München: Hirmer Verlag.

LA VAL, François Pyrard de, 1887 [1619] - The voyage of François Pyrard de Laval to the East Indies, the Maldives, the Moluccas and Brazil. London: Hakluyt Society (tradução de Albert Grey da 3ª versão francesa de 1619).

OKADA. Amina. 1992 - Indian Miniatures for the Mughal Court. New York: Harry N. Abrams. Inc. Publishers.

SCHOFF, W.H. (tradução e anotação, 1920 - Periplus Maris Erythraei: Travei and Trade in the Indian Ocean by a Merchant of the 1st century. London: Longmans, Green, and Coo

SKELTON, Robert, 1972 - Aspects of Indian Art. Leiden: Brill (ed. P. Pai).

STRONGE, Susan, 2002 - Painting for the Mughal Emperor: The Art of the Book (1560-1660). London: V&A Publications.

THACKSTON, W.M. (tradução), 1999 - The Jahangirnama: memoirs of Jahangir, Emperor of India. Washington: Smithsonian Institution.
Site Meter