quinta-feira, dezembro 08, 2005

Viriato Trágico em poema heróico

por Brás Garcia Mascarenhas (1596-1656)



CANTO PRIMEIRO

Toca-se a causa da Romana guerra,
Que o brio Lusitânico oprimia,
Pinta-se o Templo da Ocasião, que encerra
De Luso a mais antiga Baronia:
Descreve-se Viriato, a vida, e serra,
Donde Pastor com súbita ou sadia
Os Romanos investe, os seus socorre,
Vencedor se retira, e Lísio morre.

Canto um Pastor, Amores, e Armas canto,
Canto o Raio do monte, e da campanha,
Terror da Itália, e do mundo espanto,
Glória de Portugal, honra de Espanha:
Triunfante da Águia, que triunfando tanto,
Tanto a seus raios tímida se acanha,
Que à traição, só dormindo, o viu rendido,
Porque desperto nunca foi vencido.

CANTO SEGUNDO

Pinta-se a militar Antiguidade,
Ganha o Luso a bagagem do Romano,
Dá a Servílio, e Sílvia liberdade,
Briséu recolhe, e socorre Albano;
Desce da Serra, como tempestade,
Vence o Questor, restaura o Egitano,
À Serra se retira brevemente,
Triunfa nela, e exercita a Gente.

Há dezanove séculos inteiros,
Que as Armas de Viriato floresceram;
E ainda agora em bons livros, e letreiros,
Se reprova, o que mal dele escreveram.
Tempo virá, que frustre lisonjeiros,
E lisonjeados, que favor lhe deram,
Cada qual com valor faça o que deve,
Porque de quem mal obra, mal se escreve.

CANTO TERCEIRO

Os Feines de Cádis duas vezes
Vencidos pelos fortes Lusitanos
A Espanha sem os Cartagineses,
E os Cartagineses aos Romanos.
Ajudado Aníbal dos Portugueses
Em várias partes vence os Italianos.
A ruína vingam do Império Peno
Baucio, Apimano, Cesaron, Canceno.

CANTO QUARTO

Descreve-se a Milícia Portuguesa,
E amor, que à pátria têm quem se desterra.
Entre a Gente do campo, e da aspereza
Há dissenções, sobre o deixar da serra.
Ganha-se a Bobadela por surpresa,
Dela se move contra Aufrágia a Guerra;
Depois de vários transes se restaura,
Libertando Crisalva, e Felisaura.

Antigamente sobre grão batalha
Grande Reino mui presto se perdia;
E agora em torno de qualquer muralha
Meses e anos aloja a Infantaria.
Muito trabalho dá, pouco trabalha
Em batalha campal a Artilharia,
Que logo se o contrário avança a ela,
E seu Dono se opõem a defendê-la.

CANTO QUINTO

A louca Emulação se vitupera,
Louva-se a Tradição, e brevemente
Se mostra o que entre Douro, e Tejo era
Da nossa Lusitânia antigamente.
Com os Romanos há batalha fera,
Vence depois de rota, a nossa Gente;
Morrem Filo, Servílio, e Rosamido,
E se descreve o Templo de Cupido.

Competiam na Corte de Castela
Merecimento; e dinheiro certo,
E de ordinário se antepunha nela
Todo o rico risonho ao pobre esperto.
Tanto dar tanto pode empobrecê-la,
Que da Corte caminha a ser deserto,
Que donde falta o prémio a quem milita
Nem habita a razão nem gente habita.

CANTO SEXTO

Esmalta-se a Coroa Lusitana
De Varões, que em seus Cismas a Ilustraram;
Pinta-se o Inverno, e cultura Hispana
Mostra-se a paz, que antigamente usaram:
Morre à traição a Gente Turdetana
Com Apimano e Baucio, a que enterraram
Viriato, Balaro e Vandermilo,
E Grisaldo, salvando a Órmia Eurilo.

Em todas as nações houve desgraças
De traidores, de inveja, e de interesse,
Que Reia mataram, que venderam Praças;
Não houve Português, que tal fizesse.
Em vão pobre Castela, estudas traças
De enganar, e atrair quem te conhece:
Elas te deram o que tens perdido
Porque achaste a Viúva sem Marido.

CANTO SÉTIMO

A Céltica, a Vingança, o Templo antigo
De Marte se descrevem brevemente.
A Carpetânia dá cruel castigo,
Enquanto Galba foge à Lusa gente:
É posta por Vitélio em grã perigo,
Viriato a livra, fica-lhe obediente;
Vitélio a segue, e morre em grã cilada
Donde toda sua Gente é degolada.

Provada está contra a Romana Gente
A traição, de que usou com dobre trato;
Justiça há-de pedir sangue inocente,
Vejamos, que vingança faz Viriato:
Porque passando pressurosamente
A convocar o bélico aparato,
Por toda Lusitânia discorria
Publicando a traidora aleivosia.

CANTO OITAVO

Define-se a Fortuna, e se retrata
O corpo, gesto, e partes de Viriato,
Que o Questor em campanha desbarata,
E da Fama se pinta outro retrato.
Serralvo a muitos dos Romanos mata,
Catão de Galba acusa o dobre trato;
Vandermilo, e Balaro, a seus amores
Tornam, sentindo novos desfavores.

Mas não viu nem verá Pastor, que esteja
Como o nosso Pastor acreditado
Nem que a Pátria melhor ampare, e reja
Apesar de nascer desamparado.
Tempo é já que de nós descrito seja,
Não da sorte que o vemos retratado,
Se não como o descrevem os melhores,
E mais acreditados Escritores.

CANTO NONO

Depois de meia Espanha saqueada
Viriato de Pláucio se desvia,
Que por fugida a retirada,
Perde nela a melhor Cavalaria.
Vence Órmia a Filo, Flora é desprezada,
E depois morta, e rota a Infantaria
De Pláucio, cujo bélico aparato
Em batalha campal vence Viriato.

Viriato, que de alto considera,
Que em campo raso pelejar procura
Vencê-lo nele por astúcia espera,
Que sempre astúcia foi mãe da ventura.
Desce à campanha, os passos acelera,
Finge temor, e a grã valor conjura
Os seus, que marcham advertidamente
Na confiança do audaz Regente.

CANTO DÉCIMO

Sobre os campos de Ourique, e na Campina,
Que está junto a Viseu, os dous Pastores
Cláudio e Nigídio vêem sua ruína,
Grã despojo deixando aos vencedores.
Descreve-se Espanha a Neptunina
Costa, e quantos governos há melhores:
Três, Maurício, Lísias, e Deotaro
Morrem; Metelo faz um feito raro.

Enquanto, inda assombrado navegava,
E Cádis lagrimosa o recebia,
Viriato a Campanha saqueava,
E do despojo os seus enriquecia.
De terra em terra triunfando andava,
Pirâmides de monte em monte erguia
Com bandeiras contrárias por memórias
De tantas, e tão célebres vitórias.

CANTO UNDÉCIMO

Sobre a Serra da Estrela faz Viriato
Sua fama voar sobre as estrelas:
Festas de tão magnífico aparato,
Como ela em si viu, não virão elas:
Altivo Colicéu, pomposo ornato
Cavaleiros estranhos, damas belas,
Espectáculos mil em terra, e agora
Se cantam, rematando o canto em mágoa.

Que eram Dictaleão, Minuro, Aulaces,
Cabeças de Vaceos, Belos, e Tícios,
Que atraídos de seus feitos audaces
Vem servi-lo em seus marciais exercícios;
E querem logo a seus olhos, e faces,
Na justa dar de seu valor indícios;
E entrados nela, sem que se dilatem,
Prosperamente mais de trinta abatem.

CANTO DUODÉCIMO

Trezentos Lusos vencem mil Romanos,
Serralvo só a muitos desbarata;
São cativos seiscentos Lusitanos,
Donde o Templo do Medo se retrata:
As mulheres os livram de seus danos,
Morrem Alarco, e Silo; Órmia se mata:
Pela vingarem, Carpetânia abrasam,
Metelo pena, os quatro amantes casam.

Resoluções de amor, e Marte canto,
Gentis donzelas, mui atentamente
Escutai este lagrimoso canto
Merecedor de mais altiva mente.
Quem contra vós na rua, praça ou canto
Injustas queixas dá, murmura ou mente:
Se dei algumas a provar me esforço,
Que há em mulheres varonil esforço.

CANTO DÉCIMO TERCEIRO

Vinga-se a morte de Órmia no Castelo.
Que de sua tragédia viu o ensaio:
Dá mau conselho Aulaces a Metelo,
E dá Metelo bom conselho a Caio.
Viriato por não poder vencê-lo,
Abrasa meia Espanha, como um raio:
Lis bela com astúcia pensada,
Se casa, e fica Cloride infamada.

Ante Viriato humilde se apresenta,
E lhe diz: Grã Monarca Lusitano,
Cuja prosperidade o Céu aumenta
tanto à custa do crédito Romano;
A ti me traz, a fúria da tormenta,
Que no mar passo do fraterno dano,
Mais que em meus desamparos, e inocência,
Fiada em tua liberal clemência.

CANTO DÉCIMO QUARTO

Enquanto Fábio anda em romarias,
Lhe degola Viriato a melhor gente;
Assalta-o por descuido das Vigias,
Retira-se Viriato felizmente.
Mostra o Vulgo encantado entre águas frias
Naia de bela a Cláride inocente;
E Viriato na caça, que apetece,
Pera sonhar portentos, adormece.

Marcha Viriato, marcha a crueldade,
O raio, a destruição, o fogo, a ira.
Porque tudo executa sem piedade
Em toda a parte a que as armas vira
Fábio a quem chega a pública verdade,
Aonde implora a Hercúlica mentira,
Blasfema a devoção, parte indignado
Chega corrido, e sofre magoado.

CANTO DÉCIMO QUINTO

Vê sonhando as futuras Monarquias
Viriato de Godos, e Romanos,
Árabes, e Espanhóis, que em fantesias
Sonolentas se vêem os bens, e os danos.
Venturas, desventuras, profecias,
Que há da restauração dos Lusitanos,
Seu antigo valor, e novo estado
Lhe conta um solitário magoado.

Os bosques, em que está, vê deleitosos
A Ceres loura e a Flora jardineira,
Vê nascer entre os rios caudalosos
Nobre Vila em península guerreira,
Que com três edifícios sumptuosos
Ponte, Castelo, Igreja, honrando a Beira,
Enobrece Dinis, segundo Brigo,
Novo Restaurador do reino antigo.

CANTO DÉCIMO SEXTO

Com paz fingida, que a Popílio trata,
O diverte o Monarca Lusitano,
E depois em campanha o desbarata,
Donde salva Apuleio a Coriolano.
Com diversões a Guerra se dilata,
Em que se vence outro Pretor Romano:
Com assolações várias se discorre
A Bética, e Grisaldo em Cádis morre.

Viriato, que se acha tão frustrado,
E tão perto do próspero inimigo,
Sem exército seu, nem coligado.
Que o tire com honra do perigo,
Por se não retirar mal reputado,
As espáduas volvendo a tanto Amigo,
Nem se arriscar a ser acometido,
Enquanto se não acha apercebido;

CANTO DÉCIMO SÉTIMO

Pompeu rompe Viriato, que ciente
Se retira mais cauto, que medroso;
E animando outra vez a rota Gente
Torna presto a vencer ao vitorioso.
Ganha a rebelde Utica felizmente,
Castiga os Batestanos rigoroso;
É Messalina origem de seu dano,
Salva a Cloride bela Coriolano.

Branca, e púrpura estava toda Espanha
De ossos, e sangue, seco, e derramados,
Sem haver nela campo, nem montanha,
Que não fosse um sepulcro de soldados.
Acesa a guerra, estéril a campanha,
Desterrada a cultura, os bens roubados,
Parecia um teatro de Mavorte
Negro painel, de macilenta morte.

CANTO DÉCIMO OITAVO

Fábio com grande Exército Romano
Se encontra com Viriato na corrente
Do Bétis, em que o forte Lusitano
O irmão lhe fere, e mata muita gente.
Morrem Curio, Serralvo, e Coriolano;
Persuade Aulaces Messalina absente,
Que se saia da Ilha, em que desvela,
E desposa-se Eurilo com Lisbela.

Bastou só que Viriato experimentasse
Pequeno desar dela irrepreensível,
Pera que logo Roma imaginasse,
Que o podia vencer sendo invencível.
Antes que Febo no Equinócio entrasse,
Entrou na Espanha um Exército incrível,
Nunca tão grande o viu, nem tão luzido,
Do Cônsul Fábio Máximo regido.

CANTO DÉCIMO NONO

Em Campo aberto a Gente Lusitana
Com grande estrago ao Cônsul desbarata;
Socorrido depois cerca Erisana,
E vendo-se perdido, pazes trata:
Por afrontosas à Nação Romana,
Presto o vínculo delas se desata;
Rompe a Guerra depois com dobre trato
O perjuro Cipião, frustra-o Viriato.

Vinha o robusto Marte Lusitano
Atrás de todo o Exército arrogante
Posto a cavalo entre Briséu, e Albano,
Que assistindo-lhe vão um pouco avante
De ponto em branco armado ao modo Hispano
Alta a Viseira traz, fero o semblante,
Empunhando o bastão, que tanta gente
Por amor, e temor segue obediente.

CANTO VIGÉCIMO

Pujante marcha o Lusitano ousado,
Que em a Roma passar se determina.
Nos altos Pirinéus se acha cortado,
E as férteis faldras deles arruina.
Em sua tenda à traição é degolado
Mata-se o matador, e Messalina
Fazem-se exéquias dignas de memória
Queima-se o corpo, e dá fim a História.

Mal acabaram Heróis tão famosos,
Sobre a fortuna os ter favorecidos,
Padecendo tormentos afrontosos,
Uns por Tiranos, outros por vencidos.
Igual na morte, e feitos valerosos
Foi Viriato aos mais esclarecidos;
Na origem dela não, se não me engano;
Porque não foi vencido, nem tirano.

Brás Garcia Mascarenhas nasceu na Vila de Avô junto à Serra da Estrela em 1596. Foi estudar para Coimbra mas teve de fugir para Madrid perseguido pela justiça por ter cometido um crime. Viajou por vários países da Europa e fixou-se algum tempo no Brasil, regressando a Portugal na altura em que D. João IV é aclamado rei. Participou activamente nas lutas pela independência contra os Espanhóis e, sendo acusado de alta traição, foi preso. Absolvido pelo rei devido à falsidade das acusações, termina os seus dias escrevendo a epopeia em vinte cantos e oitava rima "Viriato Trágico". Além desta obra, escreveu ainda "Ausências Brasílicas" e "Labirinto do Sentimento na morte do Sereníssimo Príncipe D. Duarte", actualmente desaparecidas. Morreu em 1656. (Projecto Vercial)
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