domingo, março 05, 2006

A Catedral de Viseu (2/9)

Separata da revista "Beira Alta", 1945

por Alexandre Lucena e Vale

O presente trabalho, elaborado para o Ciclo das Conferências Culturais do 8º centenário da reintegração da Diocese de Viseu, veio afinal, por excepcional determinação do respectivo Prelado, a ser proferido pelo autor dentro da própria Sé, no acto solene de encerração das comemorações, sob a presidência de Sua Exa. Reverendíssima, com a assistência do Corpo Capitular, Autoridades Civis e Militares, Clero e mais fieis, no dia 31 de Dezembro de 1944.

Nas palavras prévias que o autor proferiu em seguida às considerações com que o Senhor Bispo de Viseu justificou o acontecimento, disse-se então, que o presente trabalho não era verdadeiramente uma monografia sôbre arte e arqueologia da Sé de Viseu, mas uma simples invocação dos mais notáveis acontecimentos históricos que nela tiveram lugar e das principais transformações arquitectónicas nela operadas, no dilatado discurso de oito séculos.

Repetindo-o de novo, acrescentaremos que, com não ser mais do que deixamos dito, é todavia, o primeiro trabalbo de conjunto até boje feito em que o leitor menos versado pode seguir a curva da evolução histórica e arqueológica da Sé desde a sua fundação até o presente.

Por isso nos pareceu que a sua publicação, para mais acrescida das notas de que o revestimos agora, e das citações bibliográficas com que autorizamos o texto, em parte também desenvolvido, poderia ser de algum proveito para o mais geral conhecimento do nobre e venerando templo de Viseu.

Pelo mesmo motivo e por ser natural complemento da matéria versada, lhe ajuntamos no final o estudo de pormenor sôbre a Capela do Calvário, nos claustros, que publicámos o ano passado no fascículo IV da revista
Beira Alta.

Viseu - fevereiro de 1945


A CATEDRAL DE VISEU

Se a Sé existia ou não antes da reconquista definitiva de Viseu aos mouros por Fernando Magno, em 1058, é ponto controverso, afinal insolúvel à míngua de documentos.

A seguir-se a sugestão, hoje muito aceita, que divulgou no século passado o arqueólogo viseense Francisco Manuel Correia (1), o actual bloco da Sé e seus anexos teria sido em tempos distantes do domínio romano um vasto castelo ou fortaleza de quatro panos ou faces, dentro da qual, ao diante, sob o domínio visigótico, demoraria insulada a primitiva Sé, tendo apenas do lado de sul, à distância de alguns metros, o pequeno paço ou alcácer dos governadores de Vlseu nesses remotos tempos da primeira Idade-Média (2).

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No que todos estão de acôrdo é em que, construindo-a inteiramente nova ou, como se mostra mais verosímil, reformando em grande parte qualquer primitivo templo que no local preexistisse, foi o Conde D. Henrique quem lhe imprimiu a geral traça românica que em sua estrutura conservou e ainda hoje mantém sob a roupagem das desfigurações sucessivas.

Assinalemos pois à Sé essa primeira feição, a da fundação românica do Conde D. Henrique em tempos remotos do declinar do século XII, e procuremos reconstituir em nossa imaginativa o que seria êsse templo, erguido ainda em plena Reconquista, entre o fervor das orações e o eco das batalhas. Dispamos a Sé de tôdas as adjacências; deixemos-lhe apenas as três naves, a cabeceira absidal e o transepto.

Eis a planta inicial, a planta cruciforme, representando no seu simbolismo admirável, o próprio Jesus crucificado (3)

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Agora, alcemos-lhe as paredes com seus botaréus e contrafortes, as mesmas de hoje, macissas e espessas, de cantaria de fiada, talhada no duro granito beirão; rasguemos-lhes as janelas raras e estreitas, como as que perduram nas absides laterais dos actuais altares de S. João e de S. Pedro; decepemos às tôrres as cúpulas e balaustradas; despojemos a frontaria de todos os lavores - dos seus baldaquinos, das suas esculturas, das molduras, dos frisos, das áticas, dos frontões e mais motivos clássicos; alcemo-la una e compacta até a linha superior das tôrres; abramos-lhe em baixo no lugar do pórtico actual, um portal de arquivoltas igual ao dos Claustros; coroemos o conjunto dum cordão corrido de merlões, como os que restam na parte posterior e os repostos há pouco no corpo central do edifício.

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Eis a primitiva Sé de Viseu, como os templos românicos seus coevos, externamente pesada e severa, mais castelo militar para refúgio de cercados, do que casa de Deus para murmúrio de preces.

Dentro, a luz, coada pelas aberturas das lunetas e janelas estreitas, dá ao interior uma penumbra grave de recolhimento e ascese, faz avultar as proporções das naves e a medida dos pilares, cujo lavor dos capitéis se perde na altura das coberturas sombrias e distantes.

As paredes nuas, os altares sem retábulos, as imagens hirtas, ao geito bizantino, lembram o drama cristão dos tempos do martírio e o silêncio trágico das catacumbas romanas; falam na sua linguagem plástica da fealdade do pecado e das austeridades da penitência; invocam na indecisão das sombras e da luz os mistérios transcendentes da redenção, e na monumentalidade da construção e da traça, a pequenez e fragilidade dos homens. Mas a solidez e harmonia do conjunto proclamam em uníssono, no recôncavo das almas, a certeza dos dogmas e as verdades da Fé.

Como as primitivas catedrais de Braga do Põrto, de Coimbra, de Lisboa e de Évora, esta foi também a Sé de Viseu que assistiu ao nascer da nacionalidade, que ainda ouviu o eco das algaras sarracenas e acolheu muitas vezes os barões de Afonso Henriques.

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Recolhidas dentro dela, fugidas à sanha dos assédios, se abrigaram sempre as remotas gentes de Viseu, quando em suas correrias, os mouros primeiramente, os leonezes depois, assaltavam a cidade deixando atrás de si o incêndio, a ruína, a desolução e a morte!

É a Sé de São Teotónio, seu Prior e patrono, soldado da fundação e frade de Santa Cruz de Coimbra, o servo de Deus, fiel e sem respeitos humanos que em certa manhã -vale a pena contá-lo - quando a raínha D. Tereza, movida pela pressa dos negócios de Estado ou apenas pelo desejo fútil de correr monte nalguma caçada com o Conde Peres de Trava, lhe rogou que abreviasse a missa dêsse dia porque não desejava demorar-se nela, respondeu pronta e desassombradamente:

- Senhora, há no céu outra rainha muito mais poderosa e muito mais excelente para a qual me aparelhei a celebrar esta missa com a maior pausa e o maior respeito; ide-vos pois se tendes pressa, ou retirai-vos quando vos aprouver (4).

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É possível que a lenda haja tecido nos séculos os termos altivos da resposta; sem embargo, ela é a expressão acabada das almas eleitas dêsse tempo, moldadas no mesmo espírito de austeridade e nobreza que talhou na pedra as catedrais românicas.

Nesta mesma Sé da fábrica primitiva do século XI, a Sé de S. Teotónio, se baptizou D. Duarte num dia remoto de 1391.

Nascera dias antes, na velha casa da Tôrre, à rua da Vela de São Domingos, adrede aparelhada para Paço da Rainha, vinda das caldas de Lafões onde estanciava a banhos com o pai, o Duque de Alencastro (5).

Um alviçareiro correra à espora fita a levar a boa nova a el-rei D. João I. E logo, a ser verdade o relato que nos teria deixado coevo cronista local, o rei, Nun'Alvares e grandes senhores da côrte voaram a unhas de cavalo até Viseu, por saüdar a rainha e acompanhar o neófito à pia baptismal.

Não forragearemos agora, na crónica apócrifa do suposto Padre CibrãO, alegada pelo Padre Henrique Cid (6), a descrição ocular dessa cena remota do Viseu dos fins do século XIV. Fique-nos apenas de memória que dentro dessa primitiva Sé românica devem ter estado um dia os grandes vultos nacionais de el rei D. João I e do Condestável Nuno Álvares!

Cinco anos depois, em 1396, ainda a velha Sé românica haveria de servir mais uma vez - a última - de castelo militar e refúgio à cidade.

Em onda revolta, na ressaca da tragédia castelhana de Aljubarrota, foi Viseu acometido de surpresa, as casas saqueadas, mortos os poucos vizinhos que não tiveram tempo de socorrer-se à Sé. Encerradas precipitadamente as entradas, a luta de assédio começava entre o clamor das preces dos que enchiam o templo e as imprecações dos que acudiam à defesa do alto das tôrres e muros ameados, quando o receio da perseguição dos soldados de Nuno Alvares fez abandonar a cidade aos
sitiantes (7).

NOTAS
(1) Memórias em respeito à cidade de Viseu, sua antiga Fortificação, Cathedral, Bispos, Priores, Cabido e Ducado Extincto e mais notabilidades da remota antiguidade e posteriores de que ha notícia. Por um curioso Viseense. Anno 1876 - Ms.- do Paço Episcopal

(2) A suposição dum primitivo castelo, românico ou mesmo romano, demorando no local actual da Sé e seus anexos, é referida como averiguada pelos diversos autores viseenses, designadamente por Botelho Pereira, o mais antigo do cronistas locais, que embora acidentalmente, a própósito da cônquista de Viseu por Fernando Magno, ao suposto castelo se refere:

«Aqui (em Viseu) esteve el Rey [...] restaurando a cidade das danificações passadas [...] que ficara com todos os muros mui danificados e arrazados, somente o Castello ficou em seu vigor com as 2 antigas Torres Romanas quaes são as de menagem e sinos e parte da do relógio, o qual Castello teve depois alguma mudança por se edificar a Sé dentro delle por mandado do Conde D. Henrique, como hoje a vemos onde ella já dantes estava mas com menos perfeição e grandeza que aos mouros servia de mesquita a qual agora purificando El-Rei e tornando-a a dedicar á Virgem Senhora Nossa, cuja dantes era, lhe fez algumas mercês.

Diálogos / Morais e Políticos Fundação da / cidade de Viseu / Historia de seus Bispos, e gerações e nobreza com muitos sucessos ( que nella aconteceram e outras antiguida / des e coisas curiosas /
por Manuel Ribeiro Pereira - ms. da Bibl. Municip. do Porto - cópia da Casa do Serrado, de Viseu - Cap. 21 - Diálogo 3º.

(3) Afora o templo pròpiamente dito, parece que, pelo menos desde o séc. XIV, senão desde a própria fundação da Sé, existia no mesmo sítio onde hoje demora a actual sacristia ou no do claustro actual do Paço dos 3 Escalões ou Paço dos Bispos, um antigo claustro da Sé. Que um claustro, anterior ao actual, existira na Sé, prova-se primeiro pelo documento aduzido por Oliveira Berardo que diz: Era de 1379 annos segunda-feira conpessaram de fundar a crasta da See de Viseo e mandou fundar o bispo D. Jhoanne por Jeom dee Lamego que era o Mestre da obra. (Noticias Históricas de Viseu in Liberal - 13 de Julho de 1857); além disto pela postura camarária de 1342 sôbre pescado e carniçaria, referida no manuscrito de Viterbo - {Provas e Apontamentos de Historia Portuguesa - tom. II, - fls. 106 - na Bibl. Municipal de Viseu), e no Elucidário - verb. empicotar, quando diz que a postura fôra feita com o Cabido ensembra, isto é, em conjunto, para o que haviam ido as Crasta dos Conigos da See.

Embora haja certa contradição de datas que pode ser filha da má leitura de Berardo, a existência dum claustro quatrocentista parece indiscutível. O dr. M. de Aragão, em Viseu - Instituições Religiosas - pág. 494 - localiza-o, com fundada dedução, na Sacristia actual. Aceitando tais fundamentos, e com maioria de razão, supômo-lo de preferência no local aproximado do claustro actual do Paço dos Bispos ou dos Três Escalões (hoje edifício do Museu).

(4) Botelho Pereira - ob. cit. - Diálg. IV - Cap. 2º.

(5) Lucena e Vale - Viseu Antigo - in Beira Alta -Ano I pág. 125.

(6) O suposto relato do dito Padre Cibrão, contido no manuscrito do Padre Henrique Cid, foi publicado na íntegra pelo dr. Maximiano Pereira da Fonseca Aragão em Letrados e Escritores Viseenses.

A simples leitura dêsse relato levanta a suspeita de não ser mais do que uma fantasia literária de Pe. Henrique Cid.

(7) Botelho Pereira - ob. cit. Diálogo IV. Cap. 31; Oliveira Berardo - Liberal - 9 de Maio de 1857.
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