quinta-feira, março 24, 2005

D. Duarte, rei e filósofo (1/3)



Separata da Revista "Beira Alta" (vol. L - N.o 4 - 1991)
Edição: Câmara Municipal de Viseu - 1993 (Gabinete de História Arqueologia e Etnografia)
Titulo: D. Duarte Rei e Filósofo, a sua Livraria e os Interesses de um Humanismo Pré-Renascentista
Autor: Dr. Manuel Cadafaz de Matos
Capa: Armas de D. Duarte (Rei)
Fotocomposição: Tipografia Notícias de Viseu, Lda.
Depósito Legal nº 68929/93


O autor, Manuel Cadafaz de Matos
Investigador, Mestre em Literatura e Cultura Portuguesa pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. BoLseiro da Fundação Oriente. Prepara Tese de Doutoramento sobre o tema "A Tipografia Quinhentista de Expressão Cultural Portuguesa (Índia, China e Japão)". Assistente na Universidade Católica Portuguesa.

S. Pedro do Sul (Gerós), Setembro de 1990

Introdução

Entre as figuras mais distintas da Cultura portuguesa dos séculos XIV - XV, D. Duarte é, sem dúvida, um dos seus mais lídimos representantes. Foi efectivamente em 31 de Outubro de 1391 que, na cidade de Viseu, veio ao mundo (filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre), o Infante que, pelo seu amor aos livros e à causa da Cultura, recebeu o cognome de Eloquente.

Nenhuma outra cidade, além de Viseu, comemoraria, assim, com mais mérito e justeza, a passagem do sexto centenário do nascimento de tão importante figura. O ano de 1992 constitui, entretanto, pretexto para assinalar os 150 anos da primeira edição da obra máxima desse rei-escritor, o Leal Conselheiro. Em 1842, com efeito, foi dada à estampa, em Paris, pela editora J. P. Aillaud, essa bem conhecida obra, numa iniciativa do presbítero José Inácio Roquete (edição que teve introdução e notas do Visconde de Santarém).


Os itinerários de D. João I, em 1391 - designadamente a estadia na Côrte em Viseu, em 1392 - altura em que aí nasce o futuro rei D. Duarte (apud H. Baquero Moreno, 1988). De sul para norte: Évora, Tomar, Leiria, Coimbra, S. Romão, Seia, Gouveia, Trancoso, Viseu.


1 - A formação intelectual do Infante

Procurar-se-á analisar, inicialmente - procurando complementar algumas reflexões de Joseph-Maria Piel (1) - a acção cultural desenvolvida por D. Duarte quer durante a sua adolescência quer, ainda, durante a sua governação. A nossa apreciação cingir-se-á, de alguma forma, à erudição patenteada pelo rei na preparação de dois dos seus livros mais conhecidos: Leal Conselheiro e Livro da Ensinaça de Bem Cavalgar toda a Sela (este último incompleto) e, ainda, à sua preocupação de intelectual atento à cultura do seu tempo.

É conhecida tal preocupação ou apetência cultural em virtude, designadamente, da substancial biblioteca que constituiu e cujo registo de títulos chegou até aos nossos dias através da documentação da Livraria da Cartuxa de Évora (2), graças a João Franco Barreto (e não D. António Caetano de Sousa, como vários autores têm erroneamente afirmado).

Não nos iremos ocupar, aqui, com aspectos relacionados com o empenho do monarca na gesta da Expansão. Essa matéria, aliás, encontra-se significativamente bem documentada, e pode ser hoje reavaliada, pelo conjunto de fontes compulsadas por Vitorino Magalhães Godinho, em Documentos sobre a Expansão Portuguesa (3), ou D. Maurício Gomes dos Santos, em D. Duarte e as responsabilidades de Tânger (4).

Nem iremos, por outro lado, deter-nos, apenas, sobre as preocupações do monarca a nível da espiritualidade cristã. Bastará lembrar, a este respeito, a existência, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa), do Livro de Horas de EI-Rei D. Duarte, objecto de exaustivo estudo por esse Mestre ainda não há muito desaparecido, Padre Mário Martins (5).

Digamos, apenas, que foi significativo o culto do rei à Virgem Maria (o que pode, aliás, comprovar-se em diversos livros de horas medievais de outros monarcas). Nesse seu livro apresenta-se-nos a dado passo, por exemplo, o Psalterium beate Marie virginis gloriose (Saltério da Bemaventurada e Gloriosa Virgem Maria], da autoria do Pseudo-Boaventura, onde se regista, a dado passo:
Por toda a parte se apregoa a tua misericórdia e a tua graça;
bendito é Deus nas obras das tuas mãos.


O culto mariano, nos começos do século XV, continuava a beneficiar de uma grande amplitude em toda a Europa. Bastará apontar que se situa entre 1407 e 1416 todo o trabalho artístico, exímio (e inigualável), desenvolvido em França por Pol de Limbourg na decoração das Três Riches Heures du Due de Berry (6). Esta exuberante manifestação de espiritualidade acontece, aliás, sensivelmente no mesmo período em que um autor - que se admite ter sido Thomas a Kempis - compõe nos Países Baixos (presumivelmente entre 1411 e 1424) a obra piedosa Imitação de Jesus Cristo que tanta influência também veio a ter no panorama bibliográfico português (7).

Esse sentimento de religiosidade cristã - bem patente, nessa época, nas principais côrtes europeias - estava de igual modo presente na Côrte portuguesa, onde D. João I e D. Filipa de Lencastre souberam incutir a seus filhos essa mesma devoção a Cristo e à côrte celestial.

Vários autores têm comummente aceite que nos começos do século XV o Infante D. Duarte beneficiou, na formação que lhe foi ministrada, de uma vasta cultura ao nível do espírito do Humanismo pré-renascentista. Registe-se que os ideais do Humanismo vieram a ter - sobretudo depois de 1450 - a sua caminhada ascencional na Europa, tendo como fonte de irradiação essencialmente a Itália, e contando, entre os seus mais destacados vultos, Lorenzo Valia (1407 - 1457), autor de Elegantiae Latina Linguae e de De Voluptate; e Giovanni Pico della Mirandola (1463 - 1494), autor de, entre outras obras, Adversus Astrologiam Divinatricem ou, ainda, De Ente et Uno e de Heptatplus.

Estamos de acordo com D. Maurício quando afirmou - em estudo de 1967 - que o Infante (e depois rei) teve o gosto das letras, mercê da excelente formação humanística, associada a sólida erudição clássica e dos filósofos antigos, sobretudo de orientação senequista, com reflexão pessoal... (sublinhados nossos).

Mesmo que tenha vindo a falecer em 1438 - antes de os escritos de Lorenzo Valia inspirarem escritores peninsulares (e, já se vê, um quarto de século antes do nascimento do mirandulano) - ele próprio terá tido mestres de reputada craveira que introduziram o seu espírito, com subtileza e saber, nas línguas clássicas, sobretudo o latim. Esse facto está, aliás, bem patente, em mais de uma passagem do Leal Conselheiro, como se verá adiante.

2 - Uma ambiência propícia ao exercício intelectual

Pode afirmar-se hoje, sem sombra de dúvidas, que D. Duarte e os infantes seus irmãos tiveram todos uma sólida formação humanística, no âmbito desse Humanismo do pré-Renascimento. Tal facto está comprovado, designadamente, nos diálogos apresentados por Frei André do Prado na obra Horologium Fidei (8), em que um dos interlocutores é precisamente o irmão de D. Duarte, o Infante D. Henrique.
Essa mesma formação humanística está de igual modo patente em alguns dos principais estudos desenvolvidos por um seu outro irmão ilustre, o Infante D. Pedro. A este se ficaram a dever, para além da sua versão do De Officiis, de Cícero - estudado, entre outros, por Joseph-Maria Piel (9) - o Livro da Virtuosa Benfeitoria, cimélio que, desde boa hora, se conserva na Biblioteca Pública Municipal de Viseu (10).

O ambiente cultural em que esses infantes viveram foi, sem dúvida, deveras favorável para a prossecução de uma (regular e intensa) actividade intelectual. Se esquecermos que já o seu pai, D. João I, tinha um regular hábito de leitura (a concluir pela biblioteca de que foi proprietário e usufruidor) - tendo ele próprio escrito um livro, Tratado de Montaria - pode compreender-se como esses infantes, em particular D. Duarte e D. Pedro, herdaram esse mesmo gosto quer pela leitura quer pela escrita.

Existe, curiosamente, um texto - por sinal ainda não muito estudado pelos investigadores da História da Literatura Medieval Portuguesa – que serve de elo ou de ponto de contacto entre esses dois infantes intelectuais. Trata-se da dedicatória de D. Pedro a este seu irmão, a abrir o Trauctado da Virtuosa Benfeiturya. Esta obra, objecto de uma recente e cuidada edição (11) de Manuel Lopes de Almeida (12) patenteia, de uma forma inequívoca, a sensibilidade para o exercício da escrita, para a prática de um pensamento reflexivo.

Escreve, a dado passo, nessa sua dedicatória, o Infante D. Pedro:

Muy alto prinçipe de grande poderio, e muyto honrrado e prezado Senhor Iffante, Eduarte (...) em sanctarem onde ambos erees presente elle vos me preguntastes en que ponto ou termho stava huu livro dos beneffiçios entom chamado, que eu começara em aquelle anno (...) e vos me dysestes que me trabalhasse de o cabar, porque non avia tempo alguu atam embargado per huu cuidado que elle nom desse logar; e spaço de homem cuidar em outras cousas assaz muy pequenas (13).

Esta passagem reporta-se, como claramente se deduz, à tradução da obra De Beneficiis, então a ser preparada pelo Infante D. Pedro. Ao que é sabido, Dos Benefícios ou Da Beneficiência, é o conhecido tratado de Lúcio Séneca (4 A.c. - 65), em sete livros, em que o autor, após se haver debruçado sobre o reconhecimento e a ingratidão, sublinha que o número de ingratos advém dos defeitos do benfeitor como do beneficiado.


O Livro da Virtuosa Benfeitoria, do Infante D. Pedro, códice do século XV, da Biblioteca Municipal de Viseu

3 - Uma abertura eloquente para o campo da História

Não deixa de ser significativo que, ainda enquanto Infante, D. Duarte manifeste - desde muito novo, tal como D. Pedro - um profundo interesse pelas línguas ditas clássicas.

António José Saraiva e Óscar Lopes põem a tónica neste ponto quando referem:
D. Pedro declara que a matéria do seu livro [Virtuosa Benfeitoria]
obriga a recorrer a palavras latinadas e a termos difíceis (14).

O mesmo virá a suceder também a D. Duarte, designadamente no Leal Conselheiro, onde ele, na óptica dos mesmos autores, se socorre frequentemente de latinismos, embora condene o seu uso imoderado. Palavras como abstinência, infinito, fugitivo, evidente, sensível, intelectual, circunspecção, etc., contam-se entre os latinismos que nesta época são enxertados no tronco da língua (15).

Pode ter-se em conta que D. Duarte, para além de um exigente cultor da língua portuguesa - tal como então se escrevia - manifestou de igual modo nas suas preocupações (mesmo ainda enquanto Infante) uma notória preocupação pelo universo da História. Antes de 1433 - ano em que, como é sabido, assumiu as funções de governação - manifestou a sua confiança a Fernão Lopes, como escreveu Aubrey Bell, adivinhando talvez o excepcional valor do grande prosador e historiador, "superior a todos os cronistas contemporâneos não só de Portugal, mas da Europa".

Já depois de ter sido aclamado rei, porém, esse seu reconhecimento do talento de Fernão Lopes foi materializado na decisão de aquele "poer em carónica as estórias dos reis". Sabendo-se que foi em 19 de Março de 1434 que o rei outorgou ao historiador, para o exercício de tais funções, uma tença de 14 mil réis, podemos inferir em que período (e circunstâncias epocais) foi concedida tal benesse. Segundo Humberto Baquero Moreno, no seu criterioso estudo Itinerários de El-Rei D. Duarte (1433-1438) (16), essa mesma decisão foi tomada pelo rei durante a sua permanência em Santarém.

Em virtude dessas pesquisas poderemos concluir que (para além de algumas saídas do monarca, dessa cidade até algumas vilas da região) ele mantém-se aí [Santarém] até 14 de Julho do mesmo ano. E nos dias subsequentes a esta última data, ausenta-se para a região de Óbidos, onde permanece entre 16 e 30 desse mesmo mês. Voltando a Santarém, vemo-lo entre 15 e 30 de Agosto na região de A1cobaça, como hóspede dos cistercienses no grande mosteiro onde se conservam os túmulos de Pedro e Inês.

Em termos de História da Cultura importa, por vezes, a um nível metodológico, relacionar os factos e actos culturais que estão em consonância sincrónica. Assim, se quiser tomar em linha de conta o que, nesse ano de 1434, estavam a produzir - em termos de texto - os pacientes monges a1cobacenses (no seu scriptorium, com um razoável número de pergaminhos já utilizados), poder-se-á concluir que eles compunham então uma obra com base nos textos de Cassiano, o conhecido pensador ascético italiano (c. 350 - c. 432) diácono de S. João Crisóstomo e que, depois de ter estado no Egipto, veio a fundar dois conventos em Marselha.

Trata-se, com efeito, do Livro das Colacções dos Santos Padres do Egipto [Livraria de A1cobaça, hoje na Biblioteca Nacional, Códice 385]. Segundo Aires do Nascimento, tal fonte documental teve a sua redacção iniciada cerca de 1431, ou pouco depois dessa data.

Mas mais importante ainda do que esse códice a1cobacense - ou seja o interesse de D. Duarte pela Cultura e espiritualidade do seu tempo - é o Códice 386 onde, para além de haver matéria daquela obra de Cassiano, se apresenta, curiosamente, da autoria do próprio rei D. Duarte, o texto Maneira de Ler pelos livros dos Evangelhos.

(1) Leal Conselheiro, edição crítica e anotada organizada por Joseph-Maria Piel, Lisboa, Bertrand, 1942. - Veja-se, ainda, da responsabilidade do mesmo filólogo, Livro da Ensinança de bem cavalgar toda a sela, edição crítica acompanhada de notas e dum glossário, por J.M.P., Lisboa, Bertrand, 1944.
(2) Livro dos Conselhos de El Rei D. Duarte, Lisboa, Editorial Estampa, colecção Universitária.
(3) Lisboa, Edições Gleba, vol. II, 1945, cap. II.
(4) Lisboa, 1960.
(5) Lisboa, Edições Brotéria, 1971.
(6) Entre as mais destacadas linhas de interpretação deste histórico códice medievo, destacamos aquelas que se prendem com a possibilidade de estudo das práticas agrícolas, das alfaias agrícolas e, ainda, das indumentárias (quer da nobreza quer do povo).
(7) Veja-se, a este respeito, o criterioso estudo de Isabel Cepeda. "As versões portuguesas da Imitação de Cristo (Subsídios para uma Bibliografia)", in Arquivo de Bibliografia Portuguesa. Ano VIII, 1961, n.os 29-32.
(8) Tivemos ensejo de estudar esta obra, da autoria de Frei André do Prado, em 1987, durante pesquisas que realizámos na Biblioteca Vaticana.
(9) Livro dos Ofícios, de Marco Tulio Ciceram o qual tornou em linguagem o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, edição crítica, segundo o mss. de Madrid, prefaciada, anotada e acompanhada de glossário por José-Maria Piel, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, Atlântida, 1948.
(10) Este valioso livro terá pertencido - antes de integrar as colecções desta instituição - à colecção do Dr. Nunes Carvalho que o doou ao município viseense (integrado num conjunto que se estima de cerca de dez mil volumes).
(11) Saiu esta edição com a chancela de "Lello & Irmão Editores", colecção Tesouros da Literatura e da História, subordinada (com outros textos históricos) ao título Obras dos Príncipes de Avis, Porto, 1981.
(12) Manuel Lopes de Almeida, distinto Professor da Universidade de Coimbra, e rigoroso investigador, deixou o mundo dos vivos em 15 de Dezembro de 1980.
(13) Edição citada (na nota anterior), pág. 529.
(14) Porto,Porto Editora, 7ª edição, p. 117.
(15) Idem, ibidem.
(16) Lisboa, edição da Academia Portuguesa da História, 1976. O mesmo investigador, depois da publicação desse seu criterioso estudo sobre os "itinerários" de D. Duarte, veio a publicar os Itinerários de El-Rei D. João I, Lisboa, ICALP, 1988. Entretanto, acerca do mosteiro de Alcobaça e da acção ali desenvolvida nesta época aqui em análise, remetemos para Frei Maur Cocheril, Routier des Abbayes Cisterciennes du Portugal, Lisboa, Fundação Gulbenkian, 1978.
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