quinta-feira, março 31, 2005

El-Rei D. Duarte, no Prefácio do Humanismo (1/3)

Por João Silva de Sousa, Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Estudo integrado nas Comemorações dos 600 anos do Nascimento de D. Duarte, em Viseu

(in A época e a personalidade de El-Rei D. Duarte "O Eloquente"
edição organizada pelo Clube de Coleccionismo Escutista da Região de Viseu - CERV, Agrupamento nº 956 - Repeses, 1994)


"Quem viu sempre um estado deleitoso?
Ou quem viu em Fortuna haver firmeza?
Pois inda neste Reino e neste Rei
Não usou ela desta lei?"


(Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, estrofe LI).

I. Resultado para alguns um tanto inesperado, para outros ideia fixa de Doutores em Leis, as Cortes de Coimbra de 1385 aclamavam, como soberano, um bastardo de D. Pedro I: D. João, Mestre da Ordem de Avis, Regedor e Defensor do Reino de há dois anos atrás - "legitimavam", assim, a continuidade da Dinastia Primeira, a que se convencionou apelidar de Segunda, por virtude de um atribulado compasso de espera (1).

O sangue real mantinha-se: era um filho de rei e irmão de outro, ambos falecidos, que salvava a independência do País, a este reconhecida desde 1179. A guerra interrompia, de amiúde, o sossego que se impunha, após o governo fernandino e a insegurança instaurava-se, por mais algum tempo, devassando, destruindo e saqueando campos e cidades.

O "metal sonante" com que D. João I recompensaria os seus cabos de guerra - defensores do território - e os burocratas - legalizadores do novo sistema - transformava-se em terras, cargos, títulos de média e forte importância. Situações houve, com efeito, que se repetiram ao longo da História. Os bens da Coroa, distribuídos desta feita, enfraqueciam, de novo, o Poder Real e, arrependido do entusiasmo e das desmedidas demonstrações de gratidão, o monarca recuperava boa parte daqueles, muitos em óptima situação geográfica (2).

Conduzindo a sua política, gizada ao longo de dez anos, o rei pôs em prática a ideia exposta nas Cortes de Évora, de Abril de 1408 (3), - organizar o património de seus filhos mais velhos, recuperando algumas dessas terras, outorgadas a título hereditário, sem atender ao clausurado na Lei Mental (4), promulgada por fora só por D. Duarte (5). Transmitia-se, assim, às gerações futuras o equilíbrio senhorial que se impunha nestes tempos, alvores do Humanismo.

Acordando prinápios, a priori irreversíveis, sem rodeios e intempestivamente, com a nova nobreza, desta veio a obter feudos bem localizados, trocando-os por outros, em maior número mas situados junto à fronteira que tinha de manter-se bem defendida (6). Deste modo, recuperava largas manchas de território contínuo, em zonas privilegiadas, reorganizando o País e o Poder sob a égide da centralização. Sentindo naturais dificuldades e contando apenas com o recém-criado aparelho que o apoiava, achou-se na necessidade de prosseguir os fins advenientes de um longo período de instabilidade govemativa e de crise económica, criando Casas a seus filhos, dotando-os de diplomas que, linha a linha, os preveniam dos direitos do rei que tinham, irremediavelmente, de reconhecer. No entanto, eram os filhos do monarca que, em 1411, recebiam Casa própria, assentamento pessoal, feudos preciosos e bem delimitados. Tomava-se, então, a família real e maior possidente no País, dependendo, sempre, por acordo escrito e formal, da vontade arbitrária do soberano.
A supracitada conjuntura de equilíbrio senhorial de então traduziu-se, pois, na dotação generosa dos familiares legítimos do rei e igualmente de D. Afonso.

Com efeito, a fim de contrabalançar a sua autoridade e, mais tarde, a de seu sucessor, D. Duarte, entre 1415 e 1434, passámos a ter no reino sete grandes casas senhoriais em relativo comedimento de forças, sem contar com o primogénito, o que, facilmente, pode compreender-se, atendendo ao facto de tê-lo associado ao trono e ao gabinete, em 17 de Abril de 1411, quando organizou os feudos de D. Pedro e D. Henrique, ao redor, respectivamente, de Coimbra e de Viseu (7). Eram elas: para o primeiro, o ducado de Coimbra e o senhorio de Montemor [-o-Velho]; para o segundo, o ducado de Viseu, o senhorio da Covilhã e a Administração da Ordem de Cristo; para D. Afonso, o condado de Barcelos, mais tarde também o ducado de Bragança; para D. João, a Administração da Ordem de Santiago; para D. Fernando, a Administração da Ordem de Avis. Ainda para D. Afonso, filho de D. Afonso, conde de Barcelos, o condado de Ourém e depois o marquesato de Valença e para D. Fernando - igualmente filho do bastardo de D. João I - o condado de Arraiolos e o ducado de Bragança, após o falecimento de seu pai e irmão. Mas tudo veio a processar-se numa via de continuidade que ultrapassou, temporalmente, os marcos acima balizados.

Vejamos, pois, o quadro seguinte (8):



A importância de quanto achámos oportuno referir caracteriza uma nova situação, de 1385 em diante, em que são os membros da Família Real que lideram a política do País nos momentos mais difíceis que se atravessam, ficando mesmo acima do estatuto do rico-homem, fixado pela nossa Sociedade dos primórdios da monarquia ao século XV. Neste espaço temporal, refira-se, a propósito, que o seu número nunca assumiu grande amplitude, excepto no período da Dinastia de Avis.

A prudência joanina, nítida na actuação do ex-Mestre de Avis ao longo de 48 anos, encontrou um continuador à altura, já que, "aprendiz" do ofício de seu pai, o futuro Eloquente, que governaria por cinco anos a sós, secretariou o rei por vinte e dois, até subir ao trono (9). Consequência: o equilíbrio patrimonial que este conseguiu, pondo em prática, em 1434, ordenações dispersas no espírito e na política do Rei da Boa Memória, promulgando-as sob a epígrafe de Lei Mental. Restringiam-se, assim, as concessões régias aos descendentes legítimos, desde 1348 e, depois, aos filhos varões, em 1389. Lei de efeitos retroactivos, dispunha, a breve trecho, que todas as doações da Coroa apenas poderiam transmitir-se dentro da linha legítima e não seriam, por consequência, tidas como feudais. Pelo facto deste texto legal se aplicar ao passado, como ao futuro, muitas terras reverteram, paulatinamente, para o Fisco, tendo ela vigorado por quase quatro séculos (10). As dúvidas a que, a princípio, aquela deu origem, foram esclarecidas por D. Duarte, completando-a, a 30 de Junho de 1434, no que respeita a herdeiros clérigos, perfilhados, adoptados ou legitimados, transmissões a ascendentes e a colaterais, vendas, doações, escambos e hipotecas que pudessem fazer os donatários (11).

(1) Veja-se Joaquim Veríssimo Serrão, Portugueses no Estudo de Salamanca, Vol. I, 1250-1550, Lisboa, 1962 e Les Portugais à l'Université de MontpeIlier (XII-XVII siècles), Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1971; Marcel Bataillon, Erasme et l'Espagne. Recherches sur l'Histoire spirituelle du XVI siècle, Paris (1937), com trad. para espanhol, em 2 Vol.s, México - Buenos Aires, 1950 e Études sur le Portugal au temps de l'Humanisme, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1952.
(2) Cfr. João Silva de Sousa, A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, Livros Horizonte, Horizonte Histórico, nº 35,1991, p. 11 e notas 1 e 2 e p. 16.
(3) A.N.T.T., Cortes do Reino, t. 1, fls. 549 e ss.; B.N.L., Fundo Geral, 2638, fls. 195-197 v. id., ibid., nota 3, p. 16 e bibliografia aí aduzida.
(4) Vide nota 9 do nosso cap. VIIl- Dos testamentos, herdeiros e espólio henriquinos, na nossa obr. acima cit..
(5) Cfr. Fortunato de Almeida, História de Portugal, Vol. II, Coimbra, 1923, p. 49 e A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal. I. Das Origens ao Renascimento, 9ª ed., Vol. I, Lisboa, Palas Editores, 1982, p. 152 e Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, in Nova História de Portugal, dirig. por Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Vol. IV, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 88. Vide do mesmo autor "Mental- Lei", in Dicionário de História de Portugal, dirig. por Joel Serrão, Vol. III, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1975, pp. 29-30.
(6) A.N.T.T., Direitos Reais, 1, 2, fl. 247v.; Gaveta 12, maço 11 nº 3 e Místicos, 1.4, fl. 30. Cfr. António Joaquim Dias Dinis, Estudos Henriquinos, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1960, p. 19.
(7) A.N.T.T., Gaveta 11, maço 2, nº 3; Chancelaria de D. Afonso V, 1.19, fl. 7Ov; Místicos, 1.2, fl. 31. Vide João Silva de Sousa, obr. supr. cit., cap. III, e bibliografia referida nas nossas notas 10 a 12.
(8) Cfr. A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, Vol. I, pp. 228-233 e bibliografia aduzida pelo mesmo autor. Vide também Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, pp. 88 e ss.
(9) Fontes manuscritas para o estudo de D. Duarte, vejam-se A.N.T.T., Chanc. de D. Duarte, 1.1, docs. de 1433 a 1438 (cópia do séc. XV, terminada em 1472); 1.2, doc.s de 1434-1448 (original que pertenceu à Casa dos Contos); 1.3, com doc.s de 1433-1438, originais. Do mesmo Arquivo, o Suplemento de Cortes, maço 2, com originais e cópias das Cortes de 1435 e 1436, entre outras e maço 4, idem com Cortes de 1436, entre outras; ainda a Colecção Especial, cx. a 33 - D. João I e D. Duarte. Acerca do assunto, cfr. Rui de Azevedo, A Colecção Especial do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, sep. da Revista Portuguesa de História, tomo III, Coimbra, 1947 e A. H. de Oliveira Marques, Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa, 3ª ed., Lisboa. Ed. Estampa, Imprensa Universitária, nº 15, 1988. O Centro de Estudos Históricos da F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa, subvencionado pelo I.N.I.C. e sob a orientação do ilustre Mestre, prepara a publicação diplomática dos Livros da Chancelaria de D. Duarte, em três tomos e que deverá estar concluída em 1992.
(10) Vide A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, Vol. I p. 156. Do mesmo autor, ainda Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, in Col. cit., p. 88 e "Mental-Lei", in D.H.P., Vol. III, pp. 29-30. Veja-se ainda Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel, in Collecção de Legislação Antiga e Moderna do reino de Portugal. Parte I. Da Legislação Antiga, 1. II, Coimbra, 1797, tit. XVII e Ordenações e Leis do Reino de Portugal Recopiladas Por Mandado D'EI Rei D. Filippe. O Primeiro, in Col. cit., Parte II. Da legislação Moderna, tomo II, duodécima edição, segundo a nona, Coimbra, 1824, tit. XXXV. Vigorou no País até 13 de Agosto de 1832.
(11) Cfr. bibliografia supra.
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