quinta-feira, março 31, 2005

El-Rei D. Duarte, no Prefácio do Humanismo (3/3)

"os moços de boa lynhagem e criados em tal casa que se possa fazer, devem seer enssynados logo de começo a leer e a escrever e a fallar latym, contynuando boos livros per latym, e linguagem de boo encamynhamento per vyda virtuosa"

(Livro da Ensinança, p. 513 da ed. cit.).

III. Uma nova corrente estética e cultural que caracterizou a evolução da Idade Média para o século XVI, despia-se das vestes teológicas e fazia esquecer, a toda a hora, o vetusto império cesáreo.

Mas o latim permanecia, enquanto escrita de textos avoengos a interpretar e comentar. D. Duarte foi um dos que, da Ínclita Geração, em Portugal, se afadigou na busca de manuscritos, os divulgou e tentou convencer os que os liam de que, nessas obras, há tanto tempo sepultadas, se encontravam autênticos padrões de vida do Homem, não apenas no aspecto estético mas igualmente no puramente existencial. Não se afastou, um milímetro, da ortodoxia católica e procurou, em tudo, seguir os Santos Padres e teólogos e o que é produto da análise introspectiva ou da experiência serve-lhe só para corroborar, à maneira de exemplo, a verdade da Fé e da Moral ensinadas pela Igreja. O Leal Conselheiro é bem, por isso, um trabalho de transição.

Preveniu, pois, quão vantajosa era a aprendizagem do latim e o gosto pela aceitação e pela leitura, embora não fizesse uso da língua de Cícero e se apresentasse aos leitores num português coevo, mais fácil de entender: era uma visão prática da vida que ele não desgarrava ainda do contraste que causava a espiritualidade dos cavaleiros da Idade Média para que apelava constantemente. Aliás chamou a atenção para a hipótese concreta de conciliar ambas as matrizes. Quer no Leal Conselheiro, quer no Livro da Ensinança, vemo-nos envolvidos nos costumes e usos do tempo: jogos, vida palaciana, tendência para o luxo... e na Cultura, então, em voga. São documentos de ideias renascentistas a despontar, estes com que deparamos.

Pagou, por certo, para que lhe organizassem a biblioteca repleta de obras de autores gregos e latinos. Muito variada e para todos os gostos, consistia em livros de religião, de Horas - o seu próprio, devocionário elaborado entre 1415 e 1436, importado e com belas iluminuras - conselhos morais - atenda-se ao Livro da Cartuxa - romances de cavalaria, tratados técnico-científicos, livros de direito, de administração... em boa parte, estudos muito recentes, também (41). Era, pois, o signo do latim, em que caíam as pesquisas dos prosadores didáticos, desde D. João I (42).

Valorizava-se o humano e este gosto enraizou-se, nos primórdios do século XV, em Portugal, como proémio de um movimento renovado que caracterizou, logo à nascença, a Sociedade do pós 1385.

A assimilação do espírito antigo foi claro, em aspectos diversos, com a própria desarrumação de ideias aliada à cópia integral de passagens esparsas dos autores clássicos. Parece, acima de tudo, um curto manual enciclopédico, um autêntico livro de ensaios, não tendo, como propósito, esgotar qualquer dos temas que ventila. Reflecte e dirige opiniões e avisos, de modo a tentar formar a vontade das pessoas, sob a égide de uma sólida formação cristã e humana, mais comedida e recatada, evitando excessos. Aqui, por este meio, poderá fazer-se a ligação do Leal Conselheiro, com o Livro da Ensinança, uma vez que também este segue o lema de que para tudo é preciso nascer! e, sem dirimir as tendências de cada indivíduo para esta ou aquela arte, faz depender a maior parte do êxito que cabe a cada um à educação, aprendizagem, leitura e experiência. Sabendo que a ideia conduz ao acto, D. Duarte procura criar ambiente psíquico no candidato a cavaleiro, antepondo a educação da mente à educação física. Fala da crença da mesa - da comida moderada e do vinho terçado das horas e porções de ingestão dos alimentos, do trajo, da casa, higiene e saúde; afecto - do amor, da benquerença e da amizade de novas técnicas, de construção, por exemplo, que não deixa sem reparo (43)...

Se D. Duarte pretendeu tão só fazer exprimir as suas lições sob o princípio da História e da Filosofia, atrás destas, vieram as ideias e a prática que ele, tão inteligentemente, pretendeu dar a conhecer para exemplo, a fim de serem seguidas. Pretendendo ensinar, por um lado, previa uma aceitação, por outro.

No campo legislativo, por razões de govemação, não descurou a intenção de reorganizar as leis dispersas, ordenando-as e criando outras, como os Novos regimentos dos Juízes dos Órfãos, de 2 de Março de 1434; dos Contos, de 22 de Março do mesmo ano; do Monteiro-mor de 2 de Setembro de 1435, aditado a 27 de Abril de 1442, pela Regência (44); o novo Regimento dos Capitães de Ceuta, de 10 de Abril de 1434 (45); Leis sobre a Portagem, de 20 de Janeiro de 1436 e as Restrições a certas exportações de 13 de Abril e 3 de Agosto de 1437 (46); Leis sobre os Judeus de 19 de Agosto e 5 de Dezembro de 1436 (47).

Desde certos trabalhos de agenda que o rei ditava para os seus volumes de Chancelaria, passando por curtos bosquejos que pretendeu desenvolver, até à discussão do raciocínio teológico de Raimundo Lúcio a respeito da guerra contra os infiéis, foi beber a doutrina de variados autores que, aliás, menciona. Além destes, há que ter em conta as citações que faz, donde outros se depreendem, sobre os quais meditou e, aqui e ali, teve alguém que o ajudasse na recolha de máximas que glosou. Escritores e textos foram, entre outros: Séneca, com as suas Epístolae Morales, De Brevitatae Vitae e o Tratado da Providência Divina; S. Gregório Magno e o seu Liber Regulae Pastoralis e seus Diálogos; Aristóteles, com o Memorial das Virtudes das Éticas, Livro da Moral Filosofia, Rectórica, Política e o Secretis Secretorum que se lhe atribui, além do Livro dos Tópicos; Frei Gil de Roma e o Livro do Regimento dos Príncipes; M. Túlio Cícero e os seus De Oficiis, De Republica e De Legibus; João Cassiano, com o Livro dos Estatutos; o Infante D. Pedro e o Tratado da Virtuosa Benfeitoria e D. João I, com o Livro da Montaria; Bernardo e o seu Tratado do Regimento de Casa; M.e André da Paz e o Pomar das Virtudes; Vegécio e o Livro da Cavalaria; Boécio e o Livro da Consolação da Filosofia; Paulo e as Sententiae. Refere ainda Santo Agostinho, M.e Vicente, João de Linhano e o Tratado, S. Tomás de Aquino, Valério Máximo, Platão, Policrato, Santo Isidoro de Sevilha, S. João Clímaco e o Livro de Dieta Salutis... Deste modo, contribuiu, vivamente, para a valoração do elemento humano da existência, com todas as suas potenciais virtudes e capacidades, do culto da força física, do corpo, percepção do ser e do seu todo intelectual que cada um deverá ter, saber usar e pôr à prova, enquanto célula do complexo tecido social. Daí a tendência dos seus escritos no sentido de valorizarem tudo ou parte, pelo menos, de quanto possa elevar a vida do homem visível, concreto, no espaço de tempo, embora curto, que vai desde que nasce até que morre. Dele restará o seu contributo para o bem comum, o investimento, por um lado, nas artes e nas letras, por outro, na guerra, no avanço geográfico do pensamento cristão, abrindo novos espaços a um Portugal, cada vez mais necessitado em impor-se frente às sociedades estrangeiras.

(41) Cfr. obras cits., da autoria de D. Duarte e da ed. acima referida: Leal Conselheiro, pp. 239-442; Livro da Ensinança..., pp. 447-523.
(42) Vide Obras dos Príncipes de Avis, in Tesouros da Literatura e da História, respectivamente, pp. 5-232 e 530-763.
(43) Ver Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte, ed. cit., p. 155.
(44) Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V, in Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de Portugal. Parte I. Da Legislação Antiga, 1.I, Coimbra, 1792, nova ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, tit. LXVII.
(45) Ibid., 1. V, tit. LXXXIV.
(46) Ibid., 1, II, tits. XXX e XXXIV; 1.IV, tit. II e I.V, tit. XLIII.
(47) Ibid., 1. II, tits. LXX e LXXIII.
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