domingo, março 06, 2005

Póvoa Dão

Póvoa Dão é a aldeia natal de uma trisavó materna do compilador do presente BOLETIM CULTURAL e de outros 14 dos seus antepassados (13 do lado materno e 1 do lado paterno) dos quais foi possível fotocopiar os respectivos "assentos de baptismo" na pesquisa genealógica feita. Esta trisavó chamou-se Ana de Jesus e viveu entre 10 de Novembro de 1832 e 13 de Fevereiro de 1903. Além dos 14 referidos, há mais 2 antepassados ligados a Póvoa Dão: os undecavós António Jorge e Maria Rodrigues, casados, ambos falecidos nesta aldeia, ele em 12 de Março de 1640 e ela em 20 de Abrl de 1646 - desconhecendo-se as datas e locais de baptismo e casamento, pois não há livros de registo anteriores a 1602 na Freguesia de Silgueiros.

É esta ligação - afectiva - que explica o facto de a primeira publicação em VISOEU ser a da única monografia conhecida sobre aquela localidade.



autor: prof. António Lopes Pires *; edição: Póvoa Dão S.A.; data: Novembro 2000

Prefácio

Tem sido grande e decidido o esforço municipal no domínio do ambiente em todas as suas cambiantes. Não é só a limpeza da cidade e do concelho, unanimemente reconhecida. É também o cuidado quanto ao património histórico, arquitectónico e cultural. É ainda o esforço de preservação das paisagens naturais. Para atestar isso, basta lembrar as mais recentes iniciativas, como o geomonumento de Santa Luzia, a aquisição da Quinta da Cruz em S. Salvador, o apoio ao comércio tradicional em curso na zona histórica. Em termos de futuro próximo, merece destaque particuIar a vasta intervenção ambiental no âmbito do POLlS. Para além da ligação entre os pólos históricos da Cava e da Sé, serão criados dois novos parques urbanos em Santiago e na Aguieira. O mérito de tal actividade tem sido felizmente reconhecido pelas mais diversas instituições ligadas às questões ambientais e daí, as mais diversas distinções atribuídas ao Município de Viseu, de que o Prémio Quercus, a Conservação do Património Arquitectónico Europeu, o Prémio Nacional do Ambiente, a 2ª cidade mais florida do País serão porventura os exemplos mais paradigmáticos.
Porém seria injusto não destacar a intervenção dos particulares nesse mesmo domínio. Multiplicam-se os exemplos espalhados pelo concelho. Há museus etnográficos, inúmeros casos de recuperação de habitações rurais, algumas delas para fins turísticos. Mas uma recuperação como esta da Póvoa Dão, envolvendo toda uma aldeia é porventura a primeira do género e tem uma importância que vai para além da mera recuperação arquitectónica. A póvoa está carregada de história, envolvendo todas as vicissitudes da gradual evolução das relações de domínio da terra, os ecos das alegrias e tristezas, dificuldades e particularidades das manifestações e factos sociais, os artefactos e equipamentos utilizados na marcante cultura da vinha, o arruamento principal como prova da presença romana. Enfim, todo um manancial de informações magistralmente ventiladas nesta publicação que, para além de um repositório preciosíssimo das vivências de antanho, discorrem de tal modo que a leitura é feita de um sorvo.
A reconstrução da Póvoa Dão é uma homenagem ao seu passado. A atenção e inteligência de alguns permitiu este quase milagre da sua recuperação material e paulatina revivificação. O novo habitante há-de sustentar de algum modo essa riquíssima herança. Com as condições de vida do nosso tempo, sem dúvida, cada qual encontrará, no entanto, qualidades tão esquecidas quanto desejadas: o silêncio e a tranquilidade a par da autenticidade dos sons da natureza, a ambiência de uma póvoa recuperada patrimonialmente e socialmente recriada. Tudo isto foi possível graças ao espírito de iniciativa e de assunção do risco da PÓVOA DÃO - Empreendimentos Turísticos, S. A.. Como responsável máximo do Município não posso deixar de me congratular com tão importante empresa, pela preocupação posta no domínio ambiental em congruência com uma política municipal dirigida a um desenvolvimento sustentado no crescimento económico, na preservação do meio ambiente e no bem estar social.

Dr. Fernando Ruas
Presidente da Câmara Municipal de Viseu

Nota Histórica

Um dos mais antigos povoados de que há memória na grande freguesia de Silgueiros, a maior do concelho de Viseu, situa-se em lugar onde a montanha se dobra e, partindo-se em duas, avança sobre a Nascente e o Poente, a perder de vista...
Pequena póvoa ou simples casal medievo, ali permaneceu, séculos e século, entregue ao seu isolamento e à tranquilidade dos tempos em que nada acontece, salvo a rotineira sucessão das estações e o rugir periódico das águas vindas de longe, escorridas das muitas encostas que no fundo do vale convergem e, tão depressa galgam terras e arrastam gados, como se passeiam tranquilas a deslado da fertilidade que ajudaram a criar.
A sua fundação perde-se no escuro da noite, mas a sua existência já é referida nas inquirições afonsinas anteriores a 1258, mandadas especialmente fazer às terras de Silgueiros, em consequência dos conflitos vividos pela posse de algumas delas, a indiciarem formas ilegais de apropriação. Assinale-se que em Silgueiros medieval possuíam terras ou privilégios sobre elas instituições como a Ordem do Hospital, O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a Sé de Viseu e a igreja de Silgueiros, o Solar dos Loureiros, a Casa de Santar e o' próprio Rei que aqui instituiu 4 cavalarias: duas em Passos, uma em Silvares e outra nas Lajes e onde possuía também alguns reguengos.
Naquelas inquirições se cita o seu nome: Póvoa de Jusã (Póvoa de Baixo, dada a existência de outra, em cima, no planalto), mais tarde Póvoa Dão. A sua população, ao tempo, era diminuta, como se deduz do próprio nome e admite-se. que as terras do seu termo já pertencessem à Casa do Loureiro ou a uma das cavalarias de Passos cujos limites se estendiam desde Pindelo a Moreira de Baixo, vizinha povoação no actual concelho de Nelas. Sabemos que a Póvoa Dão fez parte do património dos morgados do Loureiro. Em que época ficou na sua posse ou dos seus ascendentes, não o sabemos, porém.
Os Romanos passaram pela Póvoa Dão. Deixaram a sua marca na via que ainda hoje a atravessa e que, partindo de Viseu, passava por Oliveira de Barreiros e seguia a caminho de Tábua. Por sobre o Dão terão construído uma ponte que já não chegou até nós nem dela encontrámos notícia. Os moradores sempre tiveram muito apreço por esta rua, a única empedrada da aldeia onde não faziam estrumeiras, não só porque ali não era preciso combater a lama, mas também porque sendo uma artéria de grande circulação, designadamente em dias de festa, incluindo casamentos e baptizados, era necessário que todos pudessem transitar sem dificuldades.
Deixaram por certo também outras marcas, designadamente, no que respeita à cultura da vinha. Com efeito, aquele povo difundiu no espaço do seu vasto império a produção do vinho. Espalhados pela freguesia de Silgueiros existem ainda hoje, em perfeito estado de conservação, pequenos lagares ou lagaretas que indiciam a sua utilização na época.
Apesar da proximidade do rio Dão e do grau de humidade consequente, foi significativa a produção de vinho nos terrenos mais elevados e melhor expostos da Póvoa Dão. O número de lagares encontrados nas lojas e adegas e as notícias recolhidas a respeito do número de balseiros, confirmam esta teoria.

O Solar dos Loureiros

O solar dos Loureiros foi a mais importante casa de Silgueiros. Nela teve as suas raízes uma família fidalga de grande prestígio que ali viveu durante mais de setecentos anos. Dos seus mais antigos ascendentes de remotas origens, conhecem-se os nomes de Daganel do Loureiro e D. Sancha Gonçalves que viveram na segunda metade do século XII.
A este ilustres fidalgos se deve a criação da paróquia e a instituição do padroado de Santa Maria de Silgueiros, com a construção da igreja em terrenos próprios e a doação ao respectivo abade das terras com lavoiras, pastos, árvores, águas e tudo o mais, para que possa viver desafogadamente, como consta do Livro das Doações do Cabido da Sé de Viseu, em documento assinado em Setembro de 1186 e presenciado por onze testemunhas que também o firmaram com as suas mãos.
Esta família está profundamente ligada à história de Portugal através de Luís de Loureiro, o grande capitão das guerras do Norte de África, senhor da Casa do Loureiro, padroeiro da Abadia de Santa Maria de Silgueiros, comendador da Ordem de Cristo, fidalgo da Casa Real, adail-mor do reino, conselheiro d'el rei D. João III, governador e capitão general das praças africanas de Santa Cruz de Cabo de Aguer, Safim, Mazagão, Arzila e Tânger. O rei piedoso, em reconhecimento dos seus feitos, concedeu-lhe honrarias e proventos e o brasão de armas em cuja descrição, no documento de atribuição datado de 13 de M a r ç o de 1 55 3, o próprio rei conta a história dos seus triunfos. Com a morte do capitão Luís do Loureiro inicia-se a queda do império português do norte de África.
Em 5 de Setembro de 1551, Luís do Loureiro instituiu o morgadio deste nome, na sua capela da Senhora da Encarnação ainda hoje existente, de construção quinhentista, com portal da renascença e abóboda de nós no estilo da da Sé de Viseu.
O último morgado do Loureiro, nascido a 4 de Novembro de 1811, morreu em 14 de Outubro de 1865, tendo ficado à frente da casa sua viúva, a morgada D. Maria Emília do Loureiro, falecida em 1883. Desaparecida a morgada, pouco tempo os seus bens lhe sobreviveram. Seu segundo marido, Henrique de Lemos e Sousa, 30 anos mais novo e seu universal herdeiro, gastou no jogo e em viagens toda a enorme fortuna. Vendidos o solar, a quinta e demais bens em hasta pública por dívidas ao Estado, tudo veio a ser adquirido por diversos compradores de entre os quais se salienta o rico Santos Lima. Este e os seus sucessores têm procurado manter a quinta do Loureiro intacta como no tempo dos morgados, tendo feito com a maior dignidade a reconstrução da parte mais antiga do solar com torre ameada do século XVI, modernizando a tradicional adega e reformulando o vinhedo.
E foi assim que, mantendo tudo como antes, manteve a Póvoa Dão, a parte mais distante dos seus haveres, com todas as marcas do passado.



Dos Morgados aos Santos Lima

A Póvoa Dão e o Solar do Loureiro viveram ligados durante séculos e séculos. Os senhores da terra, donos de todas as casas do povoado, recebiam dos moradores as vassalagens devidas e o pagamento de rendas, foros e prazos. Cedido o usufruto, nunca foi feita, no entanto, a transferência definitiva da posse da terra. Assim, séculos volvidos, o destino desta Póvoa medieval foi a desertificação, à semelhança do que aconteceu e continua a acontecer por esse país além, e as terras e as casas abandonadas por quem lhes poderia garantir a vida, ficaram totalmente à disposição do seu legal proprietário, em jeito de coisa velha, sem préstimo algum.
A observação da toponímia local levou-nos a encontrar, na rua então chamada do Graveto, uma casa de grandes dimensões, a maior da aldeia, há longa data e ruína acentuada. Esta casa ainda hoje conhecida com o nome de Casa de D. Sancha transportou consigo a responsabilidade do seu nome, porventura a responsabilidade de ter sido habitada em alguns momentos e circunstâncias por D. Sancha Gonçalves, casada com Daganel do Loureiro, o primeiro senhor conhecido da casa onde, no século XVI
se instituiu o morgado do Loureiro. Passámos em revista os nomes conhecidos das senhoras da Casa do Loureiro e não encontrámos outra D. Sancha. Somos levados, por isso, a admitir que este nome se manteve vivo entre os moradores da Póvoa Dão, e foi transmitido, pela via oral, de geração em geração, desde o último quartel do século XII até ao fim do século XX. É notável que assim tenha acontecido, revelador da importância desta senhora e do prestígio e admiração de que gozava.
Como se diz noutro lugar, a última morgada, viúva de Manuel Casimiro do Loureiro Cardoso, já com mais de 60 anos de idade, veio a casar em segundas núpcias com um parente de 30 anos, Henrique de Lemos e Sousa, filho quarto de Heitor de Lemos e Sousa, representante das casas de S. Gemil e Vila Chã de Sá. Falecida a morgada, seu marido e único herdeiro depressa esbanjou toda a sua fortuna, sendo forçado a ausentar-se para o Brasil onde morreu. O solar com todas as suas riquezas arquitectónicas, as duas capelas, os respectivos recheios, as espaçosas adegas adequadamente apetrechadas, os enormes vinhedos, as matas e tudo o mais, estendendo-se desde Passos à Póvoa Dão, do Porrinheiro a Oliveira de Barreiros, foram à praça e vendidos em finais do século XIX. Coube à família Santos Lima a aquisição destes bens, embora nos pareça que alguns pinhais e outras terras tiveram outros destinos pois existem ainda hoje, pelo menos, três padrões definidores de extremas com a marca dos morgados do Loureiro, em terrenos de Pindelo e Passos que não pertencem à Quinta Santos Lima.
Esta família manteve sempre boas relações com os moradores da Póvoa Dão iniciadas no tempo de Joaquim dos Santos Lima, tendo realizado obras de alguma conservação nas habitações e renegociado arrendamentos que incluíam, no caso da produção do vinho, o fornecimento de produtos químicos para a prevenção do míldio e do oídio das videiras, tudo tratado pelo feitor da casa, que os senhores, vivendo lá para a capital, tinham outras preocupações e prioridades. A Dra. Virgínia Santos Lima, viúva do Dr. Rodrigo Santos Lima, homem bom a quem Silgueiros muito deve e que se empenhou seriamente no restauro da parte mais antiga e nobre do solar dos Loureiros, foi o elo de ligação entre a Póvoa Dão do passado e a Póvoa Dão do futuro.

Rio Dão

Nos seus tradicionais movimentos de erosão, constante e incansavelmente, milénio após milénio, as águas do rio Dão, galgando dificuldades e vencendo oposições, rasgaram caminhos a aprofundaram o vale pitoresco onde se situa a Póvoa.
A presença deste rio sempre foi marca determinante na vida da povoação. Afeiçoou-lhe o espaço, emprestou-lhe o nome, regou-lhe as extensas assentadas onde se cultivou o milho e o linho, propiciou-lhe os mimos de todo o ano, impediu-lhe a produção de vinho de alta qualidade nos terrenos mais chegados às suas margens, moveu-lhe o rodízio dos moinhos de farinar, isolou-a ainda mais nos períodos da forte invernia.
Desde tempos imemoriais, as velhas poldras serviram de poiso para todos os pés que precisaram de o atravessar. Demasiado baixas para poderem exercer a sua função durante períodos que não os de águas superficiais, viram nascer a seu lado, em data não apurada, o pontão que as tornou obsoletas. Todavia, também este se revelou insuficiente nos períodos de maiores pluviosidade e cheias. O isolamento em relação às sedes da paróquia, da freguesia e do concelho foi total nesses períodos, causando graves e quase insuperáveis dificuldades. Valia aos moradores o seu engenho. Com dois pinheiros bravos, de grande porte, colocados lado a lado, improvisavam um atravessadoiro na garganta do rio situada no local onde hoje se ergue a ponte definitiva. Se as águas subiam ainda acima, o que não era raro, e os pinheiros eram levados pela força bruta da corrente, então, as alternativas eram a ponte de arame, a montante na quinta da Adaúfa, de difícil acesso pelos caminhos de cabras a percorrer junto à linha de água, ou a grande volta pela subida à Pedra Cavaleira e passagem por Pardieiros, Sangemil e Lajeosa do Dão, a que correspondia um percurso de cerca de 15 quilómetros pelos concelhos alheios de Carregal do Sal e de Tondela.
Momentos especiais para a comunidade, durante o inverno, eram os dos casamentos, dos baptizados, dos funerais. As deslocações à igreja paroquial e ao cemitério eram sempre penosas, pela distância e pelo acidentado do terreno onde se implantava um caminho cheio de dificuldades e até de ratoeiras. Os caixões atravessavam o pontão à cabeça de dois homens possantes, quantas vezes com os pés metidos na água, apalpando o terreno. Não há notícia de alguma vez alguém ter caído à água, mas ficaram na memória das pessoas e nas palavras dos contadores de histórias os perigos e os medos de quem se via em semelhantes embaraços.
O Dão, para além de criador da riqueza agrícola, foi igualmente grande fornecedor de peixe. Os barbos e as bogas caíam com frequência nas redes armadas pelos pescadores furtivos, assim como eram frequentemente assassinados com pequenas bombas artesanais ou entontecidos com umas pedras de sulfato, o sulfato de cobre usado nas curas das videiras, metidas em meia velha atada a um dos pés do pescador que, a nado, ia percorrendo os poços onde, graças à experiência, sabia existirem os melhores e mais saborosos peixes que, pouco depois, entontecidos, facilmente se deixavam apanhar em pequena rede preparada para o efeito.
O rio Dão era o amigo, era o companheiro das lutas e labutas de ano inteiro. Todavia, nele, ninguém podia confiar cegamente, pois, o seu humor variável facilmente justificava a sua violência e as suas traições.

A vida na Póvoa Dão

A Póvoa Dão do passado teve vida comum à maioria das aldeias da Beira: a população trabalhava a terra de sol a sol, começando de tenra idade essa actividade, para terminar apenas quando a morte interrompia o trabalho ou quando a invalidez a atirava para a mendicidade ou para o canto do esquecimento e das coisas inúteis.
A par do trabalho agrícola, havia outras ocupações para uns tantos, quer a tempo inteiro quer a tempo parcial, de acordo com as necessidades de quem precisava: era o carpinteiro que tão depressa deitava chapéu novo em casa velha como remendava pipas, dornas e balseiros, que habilmente fazia ou consertava o carro de bois deitando-lhe novas chedas, cambas ou miúlos, que ajeitava postigos e portas sem esquecer os ferrolhos e as cravelhas; era o pedreiro que ao som da cantilena característica ia movendo enormes pedras com a ajuda de pequeno ferro de assento, quer para muros de suporte de terras quer para a parede de casa de habitação, sem nunca ter estudado nem ouvido falar da relação entre o braço da potência e o braço da resistência, mas conhecendo como ninguém as leis da alavanca; era o barbeiro que a troco de um alqueire de milho por ano cortava cabelos uma vez por mês e fazia barbas uma vez por semana; e que, às vezes, também consertava ossos partidos, receitava para algumas doenças e arrancava dentes podres; era a parteira ou aparadeira sempre presente no momento de ver chegar ao mundo os novos habitantes da terra; era a mulher de virtude que, a troco de nada, preparava chás e mezinhas, rezava ao aberto, ao ventre caído, à rângula, ao mau olhado, à dada, ao embaçado, e a outros males a que só ela sabia dar remédio, incluindo os males da alma dos vivos e dos mortos para quem dizia as orações adequadas.
Os trabalhos agrícolas estavam voltados para a produção dos cereais em que o milho tinha papel preponderante, o vinho, embora quase só em cordões de videiras, o linho depois trabalhado na eira e nos grandes serões de inverno, e o mais de que as famílias necessitavam para sobreviver.
Porque moravam nas casas e agricultavam as terras dos senhores do Loureiro, pagavam rendas anuais, de acordo com as extensões cultivadas, em cereais, feijão, galinhas, até palha de centeio e cevada para os cavalos. O vinho era de meias e, relativamente ao que cabia ao rendeiro, ainda este pagava o dízimo em dinheiro.
O transporte das uvas do senhor da terra era tarefa difícil. As dornas carregadas na outra margem do rio com apenas metade da sua capacidade eram depois puxadas por duas juntas de bois que, penosamente, ao som de gritos e incentivos da vara e do aguilhão, lá iam vencendo as íngremes ladeiras de caminhos pedregosos.
A feira do Loureiro, criada a 15 de Janeiro de 1825, era o local onde, de mês a mês muitos moradores se deslocavam para trocar alguns produtos. Com o dinheiro da venda dos ovos, de algumas galinhas ou do porquinho criado na loja e no pátio comummente com galinhas, patos e perús, adquiria algumas chitas para aventais e blusas de quote, riscados e outros panos.
O porco de ceva, cuidado durante meses e meses, era abatido pelo Natal, em verdadeira cerimónia com seus rituais e guardado na salgadeira, com a obrigação de servir para as sementeiras e durar até às colheitas.
Na impossibilidade de terem trabalho assegurado na localidade, alguns homens e mulheres deslocavam-se para as localidades vizinhas, sobretudo para a Quinta do Loureiro, no tempo dos morgados como depois no da família Santos Lima e consta que as raparigas da Póvoa Dão se identificavam de forma positiva junto das demais, vindas de outros povos, graças ao seu asseio pessoal, de onde se salientava a presença de alvas toalhas de linho cobrindo os cestos do farnel.
Os fornos do pão, de que ainda hoje se podem ver alguns belos exemplares, destacando-se, pela sua raridade, o de duas bocas, garantiam a cozedura para toda a povoação. Nunca houve fornos comunitários, mas os existentes - chegou a haver oito - deram satisfação às necessidades da comunidade, pela cedência a quem dele precisava, como era hábito na maioria das nossas aldeias.



Santo Amaro

A Póvoa Dão tem uma capelinha onde se venera Santo Amaro, padroeiro do males dos ossos e também dos caçadores.
Desconhece-se a data da sua construção, mas sabe-se que nos últimos anos do século XVIII estava suspensa por necessitar de obras importantes e por falta de paramentos. Os mordomos desenvolveram então as diligências adequadas à "reedificação de altar e tribuna romana". Satisfeitas as exigências do prelado da diocese, cumpridas todas as formalidades, foi autorizada a benção da capela, o que veio a ser feito a 15 de Janeiro de 1802. O patrono pôde, assim, voltar ao seu lugar com todas as honras, ladeado por Santo António e Santa Bárbara.
A sua festa é das primeiras do calendário e realiza-se a 15 de Janeiro. De longa data, este foi o grande dia da localidade. Uma vez em cada ano as duas ou três ruas e o largo exíguo se revelavam incapazes de receber com dignidade os muitos visitantes que, de perto e de longe, ali se deslocavam para assistir à Missa e ao sermão, para participar na procissão, para pagar as promessas em dinheiro ou ex-votos, para partilhar farnéis, para fazer libações, para cantar e dançar as modinhas tradicionais das suas regiões, para cumprir rituais de séculos mantidos vivos pela força da fé e do costume.
Um dos mais significativos grupos de romeiros era o dos caçadores. Também eles tinham aqui o seu dia e uma velha tradição a cumprir. O 15 de Janeiro era o último dia da permissão de caçar legalmente. Nada melhor do que a festa de Santo Amaro para comemorar o fim da época venatória, nenhuma outra oportunidade mais adequada para rever amigos, nenhuma outra ocasião como esta para encontrar um público disponível para ouvir as novas e as velhas histórias de caçadas e caçadores especiais. Por isso, eles se reuniam à volta do seu Santo Amaro como os demais romeiros, para cumprir os diversos momentos da festa religiosa. Para participar na profana. Para partilhar merendas. Para cumprir a tradição.
Ainda a refeição não estava terminada e já todos se afadigavam a verificar o estado das armas, a contar cartuchos do saco de retalhos para dentro dos bolsos das calças, do casacão ou outros que houvesse, que todos eram poucos para receber semelhante quantidade, pacientemente preparados durante noites e noites dos grandes serões de inverno.
O entusiasmo era geral. Vinha gente de longe para assistir ao espectáculo dos caçadores. Aguentar com alguma calma aquela espera toda era sacrifício com sabor a penitência. Finalmente, lá iam para as bandas do pinhal em busca de sítio adequado; onde se pudessem dar uns tiros sem perigo para os assistentes e onde houvesse árvores que pudessem ser bons alvos para a função. Rapidamente eram lançados desafios. Um ou outro mais afoito lançava o chapéu ao ar. Outros escolhiam ramos especiais, colocados no que consideravam ser a melhor posição. Apontavam. Disparavam. Os comentários, as palmas, os boa!, os apupos sucediam-se. Sem desfalecimentos, o tiroteio prosseguia. Ramo após ramo, pernada após pernada, o pinheiro eleito ia ficando decepado. Até dele apenas restar o tronco. O entusiasmo inicial transformara-se em verdadeira fúria. De uns iniciais e inocentes tiros para testar pontarias, terminava-se na loucura colectiva que impunha o derrube do gigante. Tiro após tiro, despejados os bolsos e esvaziadas as bolsas de riscado, quem diria, árvores de muitas décadas caíam por terra vencidas pela sua impotência face a um procedimento com força de tradição. Ano após ano até aos nossos dias...

Um Relance

A Póvoa Dão com o espaço que a envolve tem uma área de cerca de 120 hectares.
Pertence à freguesia de Silgueiros, no concelho de Viseu e, com a Pedra Cavaleira com quem confina, constitui a parte desta freguesia situada na margem esquerda do rio Dão. Tudo o mais, do total de 37 quilómetros quadrados, fica do outro lado. Dispõe de boas vias de acesso, a nosso ver, as adequadas à sua personalidade e ao seu sossego. A nova ponte sobre o Dão abre caminhos a ocidente para os contactos administrativos, para o turismo local e regional, para um melhor conhecimento da realidade silgueirense. Do outro lado sobe-se à Pedra Cavaleira e acede-se a Nelas, a Mangualde e a Espanha, a Carregal do Sal, a Santa Comba Dão, a Coimbra e ao resto do Mundo.
Hoje é uma jóia rara, consequência de um trabalho de reconstrução feito com os cuidados propiciadores de um resultado muito positivo, podendo, por isso, dizer-se que, aqui, pode viver-se o presente à sombra do passado, ou seja, a dois passos das correrias do nosso século fica a tranquilidade, o sossego e a vida simples de séculos atrás.
O residente e o visitante dispõem na Póvoa Dão das condições para uma estada de qualidade. A natureza proporciona a tranquilidade indispensável a quem precisa de encontrar o outro lado das correrias da vida citadina.. Aqui pode ouvir-se o silêncio, apenas interrompido pelo marulhar das águas e pelo cântico das aves. Não faltam as estruturas complementares e, nas redondezas, designadamente, na freguesia de Silgueiros, há bons motivos para pequenos percursos em busca do património construído (casas, cruzeiros, alminhas, campas antropomórficas, lagaretas), de importantes componentes da herança cultural popular (museu etnográfico, grupos folclóricos, grupos de cantares, tunas), de outros aspectos culturais (grupos incentivadores da prática desportiva, grupos de teatro, escolas de música), da gastronomia local (pratos tradicionais, vinho de Silgueiros).
Sugerimos ao leitor que busque ele próprio o muito que poderá encontrar, e nos diga depois se valeu ou não a pena.

Ressurreição

A Póvoa Dão morreu com uma casa habitada, e mais de outras trinta em estado de quase total degradação, mas sempre resistindo de pé, às investidas do tempo, às contingências da vida, à ingratidão dos homens. E, assim, porque o granito, duro como os beirões, agreste como os ventos e vendavais que o fustigaram séculos a eito, desafiou tempos, desafiou inimigos, desafiou ingratidões, desafiou abandonos, desafiou tudo. E venceu! Para responder com um sorriso aos desafios da ressurreição, os desafios de novos tempos, os desafios de novas exigências.
A Póvoa Dão morreu com dois habitantes, os últimos, os resistentes, os que à boa maneira dos portugueses querem deixar a vida no lugar onde nasceram, cresceram e sonharam, querem continuar a olhar o céu que sempre os cobriu, não querem quebrar o diálogo com as árvores que plantaram ou ajudaram a viver; para se vingarem das circunstâncias que obrigaram outros a uma partida sem desejo e sem glória. E venceram! Para ver ressuscitada a sua terra, a menina dos seus olhos.
A Póvoa Dão ressuscitou com dois habitantes. Os tais, os resistentes, os teimosos. E, a estes, outros, muitos outros se juntaram e vão juntar-se. Alguns com estatuto de torna viagem; mais alguns passantes em busca do bom e do belo, os restantes, cada vez mais afeiçoados, adoptaram-na como sua e são felizes porque a adopção foi recíproca.
Nos últimos cento e vinte anos, a Póvoa Dão teve no máximo 27 fogos, a que correspondeu o número de 148 habitantes em 1900, o mais elevado de todo esse período. Hoje, após a ressurreição, os fogos disponíveis são trinta e cinco e o número de habitantes poderá rondar os 150, desfrutando condições inimagináveis há alguns tempos atrás.
A Póvoa Dão é o exemplo de como é possível projectar no futuro as boas coisas do passado.



* Biografia do autor

António Lopes Pires, inspector principal do Ministério da Educação, na situação de aposentado.

É actualmente Presidente da Direcção do Rancho Folclórico de Passos de Silgueiros e da Assembleia Geral da Federação do Folclore Português, Director do Museu de Silgueiros.

Desde 1978 tem vindo a pesquisar, recolher e divulgar os diversos aspectos da herança cultural e popular da região, que resultou na criação do Museu de Silgueiros.

Da sua obra destaca-se:
- Produção e realização do programa" Siga a Roda" para a RDP Centro.

- Obras publicadas:
SILGUEIROS, OITOCENTOS ANOS DE UMA PARÓQUIA, Junta de Freguesia de Silgueiros, 1986; FOLCLORE, HERANÇA CULTURAL DE UM POVO, in Apontamentos de etnografia, Gastronomia e Artesanato, Câmara Municipal de Viseu, 1989; ZÉ BIS NAU E OUTRAS HISTÓRIAS, Câmara Municipal de Viseu, 1989; MANEL DA GRILA E OS OUTROS, Câmara Municipal de Viseu, 1990; ARTESANATO E FOLCLORE, Viseu, in Actas das I Jornadas de Artesanato da Feira de S. Mateus - 90, Comissão da Feira de S. Mateus e Fundação da Casa da Ribeira para o Artesanato, Viseu, s/d; O PIÃO, Câmara Municipal de Viseu, 1991; O OVO DA RITA, Câmara Municipal de Viseu, 1992; TICLlTI, TlCLlTÉ, Câmara Municipal de Viseu, 1993; ENTRUDO, in Livro da Feira de S. Mateus, 1994; PATRIMÓNIO ETNOGRÁFICO - TRAJE TRADICIONAL - DEFESA E CONSERVAÇÃO, in Actas do Curso Livre sobre "Património e Conservação" , Universidade Portucalense, 1995; ROMARIA, NA ALMA E NO CORAÇÃO DO POVO DA BEIRA, in Livro da Feira de S. Mateus,1995; FEIRA FRANCA, PARAÍSO DE MENINOS, in Actas do Congresso "600 anos de Feira de S. Mateus", 1995; Colaboração dispersa em Jornais, Livros e Revistas.
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