domingo, março 13, 2005

VIRIATIS - vol. I, nº I, ano de 1957 (5/12)

O claustro superior da Sé de Viseu

por Manuel Joaquim

Ao pedido feito pelo Ex.mo Sr. Dr. Fernando Augusto de Barros Russell Cortez, para colaborar na revista ora lançada à publicidade, como novo testemunho de seus anseios na amplidão das actividades culturais do Museu que dirige, eu responderia, se colaboração musical me fosse solicitada, com o famoso verso de Verlaine

De la musique encore et toujours,

não pensando, desta feita, no credo dos simbolistas do último quartel do século pretérito. Pensaria, isso sim, em quanto tenho à espera de Mecenas para vir a lume. E porque a nova publicação requer, para suas páginas, estudos e notícias de interesse artístico de Viseu e seu alfoz, eu logo iria ao conjunto da transcrição de quatrocentas páginas de música do grande contrapontista Estêvão Lopes Morago e para aqui traria pequena parcela de quanto o egrégio Artista, do período áureo da nossa música religiosa, compôs em Viseu, e em Viseu se cantou sob a sua direcção adentro da Catedral, onde foi o mais ilustre dos Mestres-de-Capela.
Bem me parece que um texto da pena do inspirado músico, pelo menos, boa colocação encontrava nestas páginas, visto ser dado conjecturar houvesse ele sido executado, na Festa da Expectação (também dita de Nossa Senhora do Ó), sob o tecto da capela de semelhante invocação, que outrora demorou numa dependência do Paço dos Três Escalões, o Museu de hoje, tão conhecido e admirado por nacionais e estrangeiros, em boa hora fundado por Francisco de Almeida Moreira.
Deste modo, sem dúvida quadrava bem no corpo deste novo elemento de cultura a inserção, por exemplo, do Hino da rubrica In Expectatione Partus, no qual a simples reza ou singela monofonia dos versos jâmbicos dímetros, das estrofes impares,

1. Conditor alme siderum,
........................
3. Vergente mundi vespere,
........................
5. Te deprecamur, Agie,
........................

alterna com a austera polifonia, a quatro vozes, das estrofes intermediárias,

2. Qui condolens interitu,
........................
4. Cujus forti potentiae
........................

e da competente doxologia

Laus, honor, virtus, gloria,
........................

à qual nem faltou a aclamação Amen, também musicada para o mesmo conjunto vocal, coisa não muito vulgar no estilo e época já distantes. Lá o disse o douto Rafael Casimiri, em nota 7 da página 94 do estudo palestriniano Il "Codice 59" dell'Archivio Musicale Lateranense (Roma, 1919), visando justamente o Hino do mesmo texto:

Si chiude coll'Amen, mentri negli altri Inni, gli Amen sono rarissimi.

Não só por esta particularidade, senão ainda por outras, no campo analítico da forma da composição hinológica, muita utilidade se vê na tarefa editorial dos velhos inéditos musicais, quer sejam de nós, Portugueses, quer sejam de outrem. É que, só no tocante ao Hino premencionado, até o leigo pode avaliar o alcance de semelhante medida, quando se lhe diga que para a letra do Conditor alme siderum, além das composições de Palestrina e Lopes Morago, outras existem, v. g.: de Guilherme Dufay, Sisto Dietrich, João Navarro, Tomás Luis de Victoria. e as que intencionais buscas podem indicar.
Épocas diferentes (Dufay morreu em 1474 e Lopes Morago depois de 1630) e diferentes temperamentos criadores, intuitivamente se prevêem os ensinamentos e vantajosas lições a colher no cotejo das obras inspiradas pelos mesmos versos, escritas na Flandres e em Portugal, na Alemanha e na Espanha, na Itália e em qualquer outra parte.
Semelhante problema é tão útil ao músico esclarecido, quando impulsionado pelo ardente desejo de devassar os segredos da sua Arte, como ao historiador da Pintura é o confronto não apenas do S. Pedro do Museu Regional de Grão Vasco com o da Igreja de S. João de Tarouca, mas também o cotejo destas admiráveis tábuas com as diversas figurações do primeiro Papa na Pintura (os Van Eyck e Blondeel), na miniatura (Memling) e na gravura assinada ou anónima. Aqui, principalmente, pelo
estilo da impressa em Los morales de sant Gregorio papa: doctor dela yglefia (Sevilha, 1527), obra da maior raridade, a qual não afirmo haja passado desapercebida aos perscrutadores olhos da crítica nacional, mas sempre direi ser espécie a que ainda não vi referência em qualquer escrito de Arte.
MaS (quezilenta palavra...) para se publicar a pequena amostra da velha hinografia de Lopes Morago, cujo texto poético encontra hoje correspondência no Creator alme siderum da edição típica vaticana, surge a terrível dificuldade da falta de verba, cruciante tormento dos desejosos de altas realizações. Contudo, quem tantos anos tem esperado, fàcilmente se rende a maior espera.
Assim, com a paciência de sempre, aguardar-se-á o remover de causas impeditivas para a feitura das gravuras, já que, em matéria de tipografia musical, nos encontramos muito pior do que no período de tempo vivido em Portugal pelo flamengo Pedro Craesbeck.
Posto isto, a que lançar mão no propósito de colaborar? Simplesmente àquilo que, fora da Música, constitui o meu violino de lngres (passe a locução algo romântica), e este é o produto de minhas investigações, já vindas de há muitos anos, atinentes ao passado de Viseu, terra que não é minha mas bem creio será tumba de meus ossos.
Se nisto há pecadilho concedam-me, aqueles que mais gostariam de me ver nas andanças musicológicas, perdão igual ao dado a Sarasate e a Marques Pinto, para citar apenas dois violinistas, este talentoso, aquele genial. A Serasate, quando trocava o manejo do seu precíosíssimo e autêntico Stradivarius pelo simbólico violino de lngres, que em si outra coisa não foi senão a quente e arrebatada discussão de problemas estratégicos das batalhas napoleónicas. Ao nosso Marques Pinto, quando tinha como seu mais querido entretenimento o deitar ao ar papagaios de papel, e vê-los subir... subir... cada vez mais.
De tão singulares maneiras tinha lugar a fuga destes dois violinistas às obrigações prementes de suas díspares carreiras artísticas.
Mutatis mutandis, também eu me evadi agora do círculo apertado de grandes preocupações em que me trazem, desde há muito, problemas que já me parecem irresolvíveis, e fui dedilhar meu violino de lngres - mais claro: as fichas de um dos meus ficheiros.
Sem as correr todas, topei algo a dar-me notícia de apreciável obra de pedraria, e, assim, logo verifiquei poder dispor, para já, da cópia de certo papel velho, existente no Museu Regional de Grão Vasco, e com tal obra relacionado (1).
Reporta-se o escrito, sem data nem assinatura, a construção hoje bem firme, a qual todos quantos conhecem o conjunto arquitectural da Sé viseense podem ver, mesmo em mente, à medida que seus olhos percorram as linhas de seguida postas em letra de forma, consoante minha leitura, desdobramento de abreviaturas e leve melhoria de pontuação.

Treslado dos apontamentos para a obra que se quer fazer no Claust(r)o (2) da santa see desta Cidade de Vizeu

Primeiramente hamde ser leuantadas as duas paredes que he para a Rua do Relogio e para a banda da mezericordia, leuantadas pela cornige que vem da Caza da liuraria, e terão essas paredes de grosso coatro palmos de aluenaria bem feita e dezentestada e ajuntourada, de sorte que fique bem segura e acentada em cal e saibro tersado com duas partes de saibro e huma de cal; para a parte do Adro se meterão tres janellas bem repartidas, que fiquem os panos das Aluenarias jgoais, e para a parte da obra noua coatro janellas pela mesma forma. Teram estas janellas doze palmos de alto e seis de largo com sua simalha por cima e seo tipullo (3) para a parte de fora, resaltiadas por dentro e por fora e tudo escodado e bem feito; por baixo destas janellas ficara huma sacada em todo o comprimento desta obra que auansara fora palmo e mejo, e toda a cornige e faixa que esta acentada hade siruir para estas paredes que agora se hamde fazer, e o que faltar por comta do mestre, e no lugar donde se hade tirar a cornige e faixa se hade leuantar a parede de aluenaria que o mestre carpinteiro disser; esta sera feita com barro somente, e para a parte de dentro do Claustro se faram dezasseis colunas que teram dez palmos de alto, emtrando nesta altura vaza e capitel com as grosuras nesesarias bem feitas e escodadas. E debaixo destas culunas leuara huma sotauaza em cada huma, daltura dos balaustes, para acentar a uaza da culuna. E por cima leuara dezaseis torssas, que cheguem de culuna a culuna, que teram de alto dous palmos e de grosso hum palmo e tres quartos, para fazer a moldura para a parte do Claustro na mesma torssa. E pelo sobreleito das torssas se fara hum rebaixo para acentar os frechais, na forma que o carpinteiro mandar, e todas estas colunas e torssas serão de pedra bem segura e teza que não quebre; estas torssas seram gatiadas pela parte de cima.
O mestre que tomar esta obra sera obrigado a cobrar (4) toda a pedra nesesaria, asim de Aluenaria como de cantaria, e tudo sera por comta do mestre, o carreto e toda a cal nesesaria; e darselheha somente a cal que esta no Claustro e todo o mais por comta do mestre e tudo o mais por comta do mestre P); e todo o saibro e agoa e gatos de ferro por comta do mestre que tomar a obra, e madeiras e calabres por conta do mestre; e despois desta obra feita sera reuista por dous mestres que emtemdam se se acha capas de se aceitar na forma destes apontamentos. Declarasse mais: que todo o carreto da pedra, asim de cantaria como de aluenaria e madeiras, hade ser tudo por comta do mestre que tomar esta obra.



Parte exterior do Claustro, na sua maior extensão, com face para a rua das Ameias


A Torre românica da Sé de Viseu, e um canto do Claustro superior, vistos através duma arcada do Claustro renacentista (N.D.)

O sabor da anciania da escrita, na qual não falta o emprego de um e outro vocábulo técnico de Arquitectura, claramente revela a construção a que se refere.
Salvo as modificações quanto ao número de janelas, ora do lado do Adro, cinco em vez de três, ora da Rua do Relógio (também chamada das Ameias), sete em lugar de quatro, e à sacada em todo o comprimento da obra, pode-se dizer que as linhas gerais dos apontamentos, de ignorada mão, em nada abalaram o inicial delineamento da obra.
Tinha de ser assim, visto os apontamentos haverem passado, com ligeiras variantes, para contexto da escritura feita pelo tabelião António Pais Rebelo, em casa do Vigário-Geral do Bispado, Cónego Dr. António Cardoso Pereira, aos 10 de Julho de 1736. A esta autoridade eclesiástica e ao Cónego Alexandre Carneiro de Figueiredo havia o Muito Reverendo Cabido, Sede Episcopal Vacante desde o decesso do Bispo D. Jerónimo Soares (6), nomeado procuradores, em 27 de Junho anterior, para poderem fazer, com os Mestres pedreiros da Igreja do Carmo, António Ribeiro e Pascoal Rodrigues, contrato atinente à efectivação da obra, a qual devia ficar pronta dentro de um ano.
A interessante escritura não vem para aqui, por saber de quem a viu antes de eu a ter copiado integralmente. E também por outra razão: estar no conhecimento de a sua existência haver sido comunicada a quem muito estimo. Mas podia desestimar e da mesma maneira agiria, para ser fiel aos princípios de moralidade que julgo todo o investigador deve ter muito em conta perante seus pares nas mesmas lides.
Dos antigos documentos, alto espírito afirmou guardarem eles, com fidelidade, a história do passado. É certo; e não menos certo é serem portadores da verdade (quando não falsificados), muitas vezes desconhecida e nalgumas ocasiões deformada.
Olhado por tal prisma o texto dos apontamentos e escritura em conexão com eles, vê-se que "VIRIATIS" alguma coisa de útil arquiva neste seu número inicial, relativo à Sé de Viseu. Pelo menos isto: o ficar-se no conhecimento de se poder afastar qualquer dúvida quanto à época da construção do Claustro superior, se levada a efeito no século XVII, se no XVIII.
Incontrovertivelmente neste. E parecendo que nada podia cindir os Mestres das obrigações impostas pelo contrato, teríamos de admitir o ano de 1737 como o do remate da obra. As coisas, porém, devem ter corrido doutra maneira, como bem permite supô-lo o termo seguinte:

Por Prouizão de 23 de Agosto de 1738 se mandou acabar de satisfazer aos herdeiros de Antonio Ribeiro Mestre pedreiro o compito (7) quinhentos e nouenta e sinco mil reis porque arematou a obra do Claustro da Santa Seé como consta de escritura que se fez (8).

Assim se compreende haver António Ribeiro dado a alma ao Criador no primeiro semestre de 1738 (ou pouco depois), ou possivelmente no ano anterior, após 15 de Julho, data de certo contrato por ele feito.
Na satisfação da Mitra de Viseu, pagando a seus herdeiros quanto lhe pertencia, se encontra razão para tomar 1738 como data precisa da conclusão do Claustro. Ocasionou a demora qualquer doença, prenúncio da morte de António Ribeiro? É possível...
Covém trazer para aqui, ainda, uma ordem de pagamento e registo da concomitante verba despendida pela Mitra, por constituírem documentos elucidativos para o caso de que se trata.
Rezam deste modo:

O S.or Manoel Aluaro sera seruido passar Prouisão de honze mil e quinhentos e uinte reis, que emportou o aiuste de vinte e coatro bollas, que fes o mestre sarralheiro desta Cidade Bernardo Joseph para as grades das janellas do Claustro da Sée.
Francisco Coelho de Campos
Alexandre Carneiro de Figueiredo

No verso:

24 Bóllas das grades das janellas do claustro da Sé: 11:520 reis (9).

Por Prouizão de 15 de Novembro de 1738 se pagou a Bernardo Jozeph mestre sarralheiro desta Cidade honze mil e quinhentos e uinte reis que fizeraõ de custo uinte e coatro bollas de ferro que fez para as grades das janellas do Claustro da Seé (10).

É crível que novas investigações forneçam mais elementos além dos aduzidos. Mas, decisivamente, é de crer nenhum venha infirmar o juízo conducente a garantir que, após a colocação de duas bolas em cada uma das grades das janelas de sacada (lá se vêem actualmente), o CLAUSTRO SUPERIOR DA SÉ DE VlSEU estava pronto em Novembro de 1738.
Duas palavras sobre os Mestres de pedraria retromencionados. Deles direi não terem biografia, segundo creio, em terras da Beira donde não eram, pois em povoados do Minho haviam nascido. Suas actividades em Viseu podem-se atestar no momento actual, assim:
É de aceitar que o António Ribeiro já estivesse em Viseu quando foi arrematada a obra da Igreja do Carmo, em 1734, e toma-se possível apontar documentos a ele respeitantes em 1736-37, como construtor.
Muito mais larga é a presença de Pascoal Rodrigues, porquanto há escrituras que fartem, tocantes a sua pessoa, desde 1729 a 1750.
De quanto trabalharam, já minhas fichas referem coisa que se vê. Entendo, porém, ser melhor continuar a investigação, com o fim de, mais tarde, se fazer memória não só das obras às quais ficaram ligados seus nomes, mas também doutras onde houve acção de indivíduos do mesmo ofício.
Concluindo: a seu tempo se verá, através das referências aos escritos coevos à época dos citados Mestres minhotos, e bem assim dos tempos anteriores e posteriores, a quantidade apreciável de sujeitos dignos de serem recordados em tal mister, tanto de Viseu e terras limítrofes como de pontos bem mais distantes, quer se trate de quem ficou registado documentalmente pelo simples designativo de pedreiro, quer pelos mais pomposos títulos de Mestre de abóbadas ou Mestre de obras de Arquitectura.

(1) A marca de água de tal papel é constituída por três circunferências encimadas por uma cruz. A circunferência da base tem a letra V deitada; a do meio uma espécie de perna, e a superior um arco. Tudo característico do fabrico do primeiro quartel de Setecentos ou épocas próximas.
(2) Letra entre parêntese, reetilínio, omitiu-a quem escreveu.
(3) Deturpação de tímpano, termo de Arquiteetura.
(4) Entenda-se quebrar.
(5) As palavras sublinhadas (repetidas) escreveram-se no original, certamente por distracção.
(6) Morto em 18 ou 28 de Janeiro de 1720, se lê em Maximiano Aragão, Viseu (Província da Beira) Subsídios para a sua história desde fins do século XV, pág. 197. Faz-se desaparecer a incerteza com a força do mais apropriado documento:

fontello
O jllustrissimo Senhor Bispo

Aos dezouto dias do mes de Janeiro de mil e setesentos e uinte annos faleceo o jllustrissimo Senhor Bispo Dom Jeronimo Soares, que Deus tenha na gloria as seis horas da manham pouquo mais ou menos e sepultousse aos dezanoue do mesmo mes de janeiro pellas honze horas esta sepultado na Capella mor da mesma Sé de Vizeu fez testamento seus herdeiros daram conta do seu bem dalma de que fis este termo, que asignei dia mes era ut supra.
O Pe Cura da See
Manoel Nugueira
Livro de Óbitos (Viseu-Sé), Col. 8, fl. 210, no Arquivo Distrital de Viseu.

(7) Sic, por cômputo.
(8) Arq. Dist. de Viseu, Livro 40I, fl. 81 v.O. No relativo ao dinheiro
despendido, não entrou a importância total da arremataQão, mas só a quantia com a qual o outro sócio, Pascoal Rodrigues, nada tinha.
(9) Original no Museu Regional de Grão Vasco. De Alexandre Carneiro de Figueiredo, o Cónego já antes mencionado, sei dizer que era o intendente das obras da Sé.
(10) Arq. Dist. de Viseu, Livro 40I, fls. 82 v.o-83.
Site Meter