VIRIATIS - vol. I, nº I, ano de 1957 (6/12)
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA HIEROLOGIA PRÉ-ROMANA DA BEIRA
por Fernando Russell Cortez
A síntese da religião pré-romana, em Portugal, não foi feita e, por enquanto, não poderemos encarar esta importante questão, da nossa proto-história, senão sobre a forma duma exposição de alguns dos seus diversos aspectos, das suas manifestações várias.
Os autores antigos foram muito parcos nos seus informes. Aqueles que a investigação arqueológica tem joeirado, não foram senão aplicados a casos particulares. De grande utilidade para o prosseguimento deste estudo é o trabalho de Tovar e de Navascués sobre as divindades locais e pré-romanas que encontradas foram na Península. Vêmo-las agruparem-se no recanto Norte e Noroeste da Hispânia e, embora novos achados surjam, não devem modificar as ilacções permitidas. Os romanos, no seu condomínio, embora sempre procurassem que as nossas populações fossem subjugadas ou compelidas a entregarem-se em deditio, isto é a aceitarem as condições contractuais impostas por Roma, quase sempre as consideravam como estipendiárias. Tal situação caracterizava-se por: - Conservação do seu direito, da sua organização administrativa, judicial e territorial e possivelmente a propriedade das terras. A liberdade pessoal era garantida aos seus componentes, que, igualmente viam reconhecido o direito à propriedade privada, - desde que pagassem o stipendium, - à sua linguagem e à sua religião.
Das atitudes religiosas, até ao nosso conhecimento chegadas, ressalta a impressão de que as diversas manifestações, mais nos comprovam o aspecto compartimentado do Território
Peninsular - o equilíbrio poli-nacional de que nos fala Bosch-Guimpera - e a oposição, sempre actual, entre as regiões marginais e meridionais, aberta às influências do Mediterrâneo e os pene-plainos do centro, ou das zonas do septentrião, através dos quais a Ibérica comunica com a Europa.
Apesar de conhecermos quase duas centenas de invocações a divindades indígenas, raramente poderemos estabelecer confrontos entre estas e aquelas outras pertencentes ao panteão greco-romano.
No entanto, uma das características das populações do Noroeste Peninsular, especialmente da sua área ao Norte do Mondego, era a predilecção, denotada, pelos grandes e imponentes pedregulhos graniticos, para neles gravarem os seus votos às divindades.
Da preferência vincada na eleição dos grandes penedos para assinalar a existência de santuários, carácter tão marcado, forte e exuberante, a ponto de assistirmos aos próprios romanos a proferirem votos de igual forma - votos de Fail a Reinticis - pode saltar a ilacção da grande extensão do culto a divindades ctónicas - aquelas que residiam nas profundezas da Terra - similares aos Heróis e semi-deuses cultuados nos primitivos tempos Helénicos. O nosso património mitico, ainda, tal corrobora e testemunha.
Antes, porém de prosseguir na explanação das minhas ideias sobre tão remotas atitudes religiosas das populações pré-romanas, ocupantes do terrunho Beirão, - atitudes perpectuadas no património mitico e arqueológico - permitam recordar anteriores afirmações sobre a demogénia regional e que noutros estudos mais amplamente já desenvolvemos.
Nesta região, não podemos defender a existência, antanho, de grandes espaços com clima estepário, por que esta área deveria estar revestida de bosque, e consequentemente pensamos na sua ocupação por populações de caçadores, pastores - Admitimos um povoamento de cultivadores pastores mais ou menos sedentarizados, posuidores duma ganaderia evoluida, complemento e ao serviço da agricultura, ou pelo menos em intima relação com esta.
A justificação destes considerandos, levaria longe, e o seu desenvolvimento ficará para o trabalho definitivo, em preparação.
Da forma e distribuição de certos sinais rupestres seremos levados a pensar numa intrusão, numa aculturação. para não dizer influência das gentes de economia matriarcal agrícola da orla litoral, nos pastores-agricultores, sucessores dos caçadores-pastores da zona serrana do interior. As gravuras rupestres de que falamos podem sugerir-nos uma cronologia relativa, porém melhor será confessarmos que pouco sabemos das crenças que animaram os homens da Idade do Bronze.
Igualmente, durante a Idade do Ferro, fora dos territórios do Sudeste e do Meridião peninsulares, no meio demogénico que julgamos mais rude, continuamos a pouco destrinçar, o relativo ao seu património mítico, às suas preocupações metafísicas e morais, do que temos um minguado e precário conhecimento.
O estudo valioso de Alves Pereira sobre a Hierologia dos Igaeditani não teve ainda continuadores, o que é de lastimar, pois não nos faltam doutos estudiosos, competentes e capazes para tal fazer.
Afirma-se por excessiva generalização, uma profunda celticização de Portugal, de que, como sabem, eu começo a discordar.
Jacobstal mostrou, num dos seus monumentais trabalhos quão diferente era a arte dos celtas, daquela que entre nós aparece na época considerada celta.
Podemos rastrear múltiplas designações étnicas na região céltica da Europa central e a sua correspondência em Portugal - lembro os estudos de Bosch. No entanto apesar desta constatação valiosa para o estudo da nossa proto-história, não podemos estabelecer qualquer paralelismo entre as divindades locais, cultuadas nas, já referidas, áreas do centro da Europa e de Portugal.
Que influência tão estranha foi essa, uma vez que, nem na arte, nem na religião, deixou profundos sinais.
Sobre a linguagem muito temos a aguardar; o prélio entre celtistas e caucasistas, ainda por terminar, nos apresenta muitos pontos em controvérsia.
Lembremos que o problema base - as origens dos indo-europeus é ponto em discussão. Para uns, como Kretschmer, os indo-europeus teriam uma origem no Norte da Europa, enquanto outros defendem o foco primordial asiático.
Os textos romanos, até nós chegados, mostram que em grande parte de Portugal, no séc. VII a. J. C., perdurava um importante complexo demográfico, ao que parece, constituído por povos não indo-europeus, povos que denotam afinidades e conexões, com outros povos mediterrâneos, ou melhor. como pretende Menghin, com as populações migratórias dos asiânicos.
Talqualmente este autor, eu penso que quando se nomeia os Lígios ou Lígures na Península, isto não significa a afirmação da existência de uma população ligur primitiva, distribuída igualmente por toda ela. Viveriam conjuntamente com os restos da população Hamita ocidental, ou seriam como que uma forma evoluída dos restos de proto-lígures vindos com a migração elâmica.
Tal população acolheu aqueloutras difusoras da metalurgia do ferro, trazida pelos Ilírios, Ambrones ou Celtas. Estou crente que os caminhos, agora mais trilhados, do método linguístico-arqueológico, nos ajude a esclarecer este tão apaixonante problema.
Gomez Moreno pensa que no final da Idade do Bronze deu-se uma invasão de Indo-Germanos, de Ligures e Beribracos, fixando-se principalmente no Norte e no Noroeste, constituindo os Cantabros, os Astures, os Lusitanos, etc., etc., a que no séc. VII a. J. C. se sobrepõem os Celtas. Entretanto para Menghuin chegariam Indo-europeus pré-célticos, não Ligures, isto é proto-ligures indo-europeizados - senão outras tribos, sem importar que lhes chame como Pokomi: Ilírios; como Kretschmer: Venet0s; ou Ambrones, como Menendez Pidal.
Tal nome era o antigo e correntemente usado pelo povo que indoeuropeizou os Ligures (segundo Kretschmer) embora tal processo seja atribuido por Wolff aos Carno-Ilírios que chegaram à Península fortemente misturados com os Ilírios (povos dos campos de urnas).
Para a questão da nossa proto-história, que é o estudo da hierologia das populações pré-romanas não deixam de ter interesse alguns elementos epigráficos ultimamente encontrados.
O primeiro a referir é a lápide existente em Queiriz - topónimo pertencente ao subtractum linguístico dos Ambrones - Fornos de Algodres, que li e fiz transportar para a exposição arqueológica da Beira Alta, organizada sob a minha direcção em 1951, e que leio:
QVATIVS APIANIS
DANditatideaigvi
VOCTO TOLIT I (usso)
Pela forma da suas letras, de pormenores bastante arcaizantes, poderíamos supor ser esta epígrafe do séc. I J. C. empregando-se caracteres cursivos e actuários na gravura deste texto votivo.
Tal divindade de carácter algo desconhecido pode ser associado ao grupo constituído pelas denominadas: BANDEUTOIRAECO (Vila da Feira) -BANDOGE (Castro do Mau Vizinho, Sul) - BANDIOILLIANAICO (Castendo) BANDIARBARIAICO (Capinha). Todas encontradas entre o Tejo e o Douro. Ao norte deste rio encontramos um outro em que entra a forma BAND e constituído pelas invocações: BANDUA (Cova da Lua, Bragança) - BANDVA (Verin) - BANDERAEICVS (Ribeira de Pena): Ainda podemos rastear outros idênticos na Estremadura Espanhola.
Se considerarmos somente por agora a terminação deaigui estabeleceremos confronto com a divindade dos Igaeditani: LANGANI DEAIGUI.
Tal terminação é peculiar à língua basca e nós sabemos quão bons resultados, dignos de consideração, tem dado o confronto do contexto de várias invocações com vocábulos pertencentes a esta língua dos Pirineus.
Sem ser páleo-linguista e não possuindo ainda a necessária bibliografia, não deixo fugir a tentação de referir a identificação, de referir a idêntica terminação gui e eargui destas duas invocações, de Queiriz e da Idanha, com a de muitas palavras bascas, topónimos ou não - como por exemplo os nomes da lua: «ilargui», «illargui», «arguizagui», etc. em que argui exprime a ideia da luz. Se tal interpretação pudesse ser defendida, a invocação da lápide de Queiriz estaria ligada ao culto lunar, talvez que a festa do plenilúnio, antanho existente nesta região do centro de Portugal.
Não pretendo, de forma alguma meter-me na acendrada controvérsia de, se o basco seria ou não língua geral na Península. O que pretendo é apresentar dois casos encontrados em Portugal que denotam a existência de relações linguísticas entre esta e aquela região montanhosa do Norte da Península e, através de cujas portelas. nós sabemos terem passado muitas das populações constitutivas do nosso Subtractum étnico actual. Esta sugerência não me ocorre sòmente por estes dois achados epigráficos. Temos mais.
A divindade aquática NAVIA cuja dispersão há pouco estudamos, surge-nos igualmente na região basca. Sendo considerados os patamónimos como os elementos mais estáveis na linguística eu rememoro que o rio NABIA é igualmente desta região.
Há outros elementos a acrescentar a estes: Nas ruínas de Conimbriga aparece-nos uma lápide, muitíssimo importante(CIL. ll. 365 e 5278) consagrada a NETO, divindade que igualmente nos aparece invocada em terras Aquitanas. Tal epígrafe valiosa para o estudo da organização social destas populações refere a Gens Baedorus, o que talvez pode ser posto em paralelo com os BAEDUNENSES dos Astures e quer nesta região quer em Condeixa-a- Velha, nós sabemos existirem Conios - Para Tovar estes Baedorus são de origem Ilíria.
Nas proximidades da região onde nos surge esta invocação a NETO apareceu uma outra epígrafe que se apresenta numa ara votiva consagrada a uma divindade pré-romana, pela vez primeira assinalada em Portugal, e tem réplicas na região pirenaica, hispano-francesa, na área basco-aquitana.
É a ara do séc. I. dedicada ao Genium vici ILURBE DAE encontrada nas minas da Escadia-grande - Silbares - na Lousã.
Podemos comparar ILVRBEDA com ILURBERRIXO, nome de divindade que nos aparece gravada numa lápide marmórea, recolhida na Igreja de Escuñan, Vele de Arãn, Lerida.
Estas palavras Ilurbeda, como Ilurberrixro têm uma acentuada fisionomia Vasconsa, tão evidente como a de Iliberri (Vila Nova).
O elemento comum a estes nomes não me parece ser ili - povoação - mas antes ilur, que com diversas grafias, correspondentes, certamente à imperícia dos autores das transcrições ou a variantes reias de pronúncia, análogas à de que Illyricum romano redundou no Ijurik eslavo.
Esta raíz Ilur, com o significado de cidade ou vila aparece-nos em Iluro (Oleron) Il (d) uro e não Iluro ( a actual Mataró - Catalluña) Ilurre, Ilurdoz, da Navarra, llurmendieta, de Guipúzcua.
Tais nomes e outros aparecem nos textos antigos, referindo tribos pré-romanas, como os Ilurgetes ou Ilergetes; os Ilercavones; Illurganones e Ilorangates, com Ilerda e Ilercanonia, como cidades.
Nas moedas surge Il (d) irda, por Ilerda e Il (d) uro, por Iluro.
Todos estes vocábulos têm sido atriDuidos ou relacionados com os Ilírios, Illyrii e Ilurii no latim (Illurioi em grego).
Correlacionando estes e outros elementos, com nomes de rios, etc., Pokorni defende uma maior expansão ilíria da que era então tradicionalmente considerada, expansão que R. Pittioni pretendeu melhor ajustar e confirmar com argumentos arqueológicos.
Na Hispânia surgem estes nomes misturados com outros de tipo celta, no entanto investigadores peninsulares, bem aceitaram a hipótese duma invasão ilíria e para ela encontram suficiente justificação arqueológica.
A existência de nomes análogos em ambos os extremos dos Pirineus, Ilurberrixo - C. I. L. XIII, 23 e 255 e Iluro C. I. L. XIII, 154, faz pensar numa passagem de Ilírios pelo passo ocidental pirenaico, por Roncesvales, a portela mais célebre da nossa História, enquanto que outras invasões, acaso mais densas se efectuaram pelas passagens de Leste.
Da passagem por ocidente seriam resultantes as nossas populações ilíricas que as lápides atrás referidas testemunham e que na sua emigração arrastariam consigo elementos bascos.
Estes movimentos populacionais nos finais da Idade do Bronze, são complexos e difíceis de delimitar com justeza pois nuns locais parecem ter chegado como invasores, outras vezes mostram ter seguido como que numa infiltração pacífica, um lento estilar de gentes ou tribos que, quase imperceptivelmente, se transladam no terreno e no tempo, permitindo uma larga sobrevivência dos costumes da população da Idade do Bronze, megalítico ou não. Nestes tempos a nossa população representava uma unidade étnica. Nem sequer podemos dizer que os celtas se sobrepuzeram como elemento dominante, uma vez que vemos sobreviver aqui e além resíduos linguísticos pertinentes, com toda a verosimilhança, aos povos supostos como dominados, na área em que, no centro de Portugal, mais forte deve ter sido a influência céltica.
É um caso análogo ao que Altheim refere ao estudar a origem dos Etruscos, demonstrando que, quer as colónias etruscas da Itália Superior e da Campânia, quer as cidades consideradas como constitutivas do próprio foco etrusco eram formadas por um complexo populacional, de que faziam parte ligures, umbros, ilírios, gregos, etc.. É o que chama o estádio dinâmico da formação das tribos, período, - quando a maturidade é alcançada -, depois substituído pelo processo de unificação.
Estabelecidas ficam algumas conexões entre divindades pré-romanas que foram encontradas na Terra Beiroa e, apontados os prováveis rumos trilhados na sua progressão até nós, mostrando que o horizonte em que têm de ser integrados é, seguramente mais dilatado do que a área da interamnense entre o Douro e o Tejo.
Resta-me agora lembrar outro importante aspecto da religiosidade dos nossos avoengos pré-romanos.
Ao iniciarmos esta comunicação referimos a grande predilecção pela escolha dos grandes penedos para a perpectuação dos votos a divindades, penedias tornadas sagradas e consequentemente lugar da residência das divindades locais e regionais.
Esta atitude vimo-la seguida ainda nos tempos romanos; basta recordar o voto a Reinticis de Fail, a Paisicaico, de Carvalhal de Vermilhas - Vouzela, sem deixar de recordar o Santuário de Panoias, Vila Real. de flagrante carácter helénico.
Se me socorrer do espólio religioso conservado pela mitografia popular, fácil é verificar como, estas nossas lendas, nos informam da existência de homens que a terra tragou vivos e quantas vezes ficavam a morar nas profundezas, em lugares bem determinados e concretos. Tal qual os Semi-Deuses dos primitivos Helenos, disfrutam de uma vida imortal, esperando outros os ensejo da quebra do encantamento.
Ao que parece e conheço, tais lendas revelam-nos a crença de que a imortalidade era milagrosamente conferida a determinadas pessoas, por gracil ou caprichoso decreto de forças superiores - o encanto, somente consiste em jamais se verificar a morte, o aniquilamento total, a psique não se separa do corpo visível, sendo-o este humanizado em determinadas ocasiões.
Às personagens, contadas em tais lendas, foi conferida, embora condicionada, uma pervivência eterna, naqueles locais destinados, especialmente, a serem por eles habitados, no interior da terra, nas profundezas das penedias.
São pois vestígios da existência de antigas concepções míticas de carácter ctónico, isto é de divindades ou divinizados que residiam no interior da Terra.
Aqui e ali transparece ainda hoje, na mitografia popular, a ideia de que estes herois - 08 encantados - de vincado carácter ctónico, venerados nas penedias ou nas montanhas, são os
vestígios da existência dos antigos deuses que a fé dos pagãos instalara no ámago das penhas ou no interior das lapas ou palas.
Igualmente através da tradição grega, se pode verificar, tantos séculos distantes - que os nossos avoengos da proto-história, aos quais foi concedida uma vida eterna subterrânea - um
Ladico ou Larouco não seriam senão transformações lendárias de remotos deuses que gozavam de imortalidade e moravam nas profundezas da terra por suas virtudes e não por qualquer concessão vinda do alto.
Para terminar quero relembrar a consabida ligação do culto ofiolático com o das divindades ctónicas e com a escatologia lunar, crenças largamente aceites pelas nossas populações pré-romanas.
Seria um nunca mais acabar, enumerar as nossas lendas ligadas ao culto ofiolátrico e ctónico.
Gravuras rupestres, a que no princípio nos referimos, são em grande parte consideradas, por doutos especialistas, como representação, mais ou menos esquematizada de ofídeos. Há quem nela queira ver a plena justificação da localização dos Saefes no nosso Território.
Ora como a serpente era também considerada como simbolizando a alma eu a findar pergunto-me:
- As nossas populações pré-romanas que as gravaram nos monolitos de granito, em vez de serem uns rudes adoradores de serpentes, meros zoólatras, não acreditariam antes numa ideia mais superior, ligada com a existência e imortalidade da alma, como a natureza ctónica destas e doutras invocações pressupõe?...
Desenho de F. Almeida Moreira
por Fernando Russell Cortez
A síntese da religião pré-romana, em Portugal, não foi feita e, por enquanto, não poderemos encarar esta importante questão, da nossa proto-história, senão sobre a forma duma exposição de alguns dos seus diversos aspectos, das suas manifestações várias.
Os autores antigos foram muito parcos nos seus informes. Aqueles que a investigação arqueológica tem joeirado, não foram senão aplicados a casos particulares. De grande utilidade para o prosseguimento deste estudo é o trabalho de Tovar e de Navascués sobre as divindades locais e pré-romanas que encontradas foram na Península. Vêmo-las agruparem-se no recanto Norte e Noroeste da Hispânia e, embora novos achados surjam, não devem modificar as ilacções permitidas. Os romanos, no seu condomínio, embora sempre procurassem que as nossas populações fossem subjugadas ou compelidas a entregarem-se em deditio, isto é a aceitarem as condições contractuais impostas por Roma, quase sempre as consideravam como estipendiárias. Tal situação caracterizava-se por: - Conservação do seu direito, da sua organização administrativa, judicial e territorial e possivelmente a propriedade das terras. A liberdade pessoal era garantida aos seus componentes, que, igualmente viam reconhecido o direito à propriedade privada, - desde que pagassem o stipendium, - à sua linguagem e à sua religião.
Das atitudes religiosas, até ao nosso conhecimento chegadas, ressalta a impressão de que as diversas manifestações, mais nos comprovam o aspecto compartimentado do Território
Peninsular - o equilíbrio poli-nacional de que nos fala Bosch-Guimpera - e a oposição, sempre actual, entre as regiões marginais e meridionais, aberta às influências do Mediterrâneo e os pene-plainos do centro, ou das zonas do septentrião, através dos quais a Ibérica comunica com a Europa.
Apesar de conhecermos quase duas centenas de invocações a divindades indígenas, raramente poderemos estabelecer confrontos entre estas e aquelas outras pertencentes ao panteão greco-romano.
No entanto, uma das características das populações do Noroeste Peninsular, especialmente da sua área ao Norte do Mondego, era a predilecção, denotada, pelos grandes e imponentes pedregulhos graniticos, para neles gravarem os seus votos às divindades.
Da preferência vincada na eleição dos grandes penedos para assinalar a existência de santuários, carácter tão marcado, forte e exuberante, a ponto de assistirmos aos próprios romanos a proferirem votos de igual forma - votos de Fail a Reinticis - pode saltar a ilacção da grande extensão do culto a divindades ctónicas - aquelas que residiam nas profundezas da Terra - similares aos Heróis e semi-deuses cultuados nos primitivos tempos Helénicos. O nosso património mitico, ainda, tal corrobora e testemunha.
Antes, porém de prosseguir na explanação das minhas ideias sobre tão remotas atitudes religiosas das populações pré-romanas, ocupantes do terrunho Beirão, - atitudes perpectuadas no património mitico e arqueológico - permitam recordar anteriores afirmações sobre a demogénia regional e que noutros estudos mais amplamente já desenvolvemos.
Nesta região, não podemos defender a existência, antanho, de grandes espaços com clima estepário, por que esta área deveria estar revestida de bosque, e consequentemente pensamos na sua ocupação por populações de caçadores, pastores - Admitimos um povoamento de cultivadores pastores mais ou menos sedentarizados, posuidores duma ganaderia evoluida, complemento e ao serviço da agricultura, ou pelo menos em intima relação com esta.
A justificação destes considerandos, levaria longe, e o seu desenvolvimento ficará para o trabalho definitivo, em preparação.
Da forma e distribuição de certos sinais rupestres seremos levados a pensar numa intrusão, numa aculturação. para não dizer influência das gentes de economia matriarcal agrícola da orla litoral, nos pastores-agricultores, sucessores dos caçadores-pastores da zona serrana do interior. As gravuras rupestres de que falamos podem sugerir-nos uma cronologia relativa, porém melhor será confessarmos que pouco sabemos das crenças que animaram os homens da Idade do Bronze.
Igualmente, durante a Idade do Ferro, fora dos territórios do Sudeste e do Meridião peninsulares, no meio demogénico que julgamos mais rude, continuamos a pouco destrinçar, o relativo ao seu património mítico, às suas preocupações metafísicas e morais, do que temos um minguado e precário conhecimento.
O estudo valioso de Alves Pereira sobre a Hierologia dos Igaeditani não teve ainda continuadores, o que é de lastimar, pois não nos faltam doutos estudiosos, competentes e capazes para tal fazer.
Afirma-se por excessiva generalização, uma profunda celticização de Portugal, de que, como sabem, eu começo a discordar.
Jacobstal mostrou, num dos seus monumentais trabalhos quão diferente era a arte dos celtas, daquela que entre nós aparece na época considerada celta.
Podemos rastrear múltiplas designações étnicas na região céltica da Europa central e a sua correspondência em Portugal - lembro os estudos de Bosch. No entanto apesar desta constatação valiosa para o estudo da nossa proto-história, não podemos estabelecer qualquer paralelismo entre as divindades locais, cultuadas nas, já referidas, áreas do centro da Europa e de Portugal.
Que influência tão estranha foi essa, uma vez que, nem na arte, nem na religião, deixou profundos sinais.
Sobre a linguagem muito temos a aguardar; o prélio entre celtistas e caucasistas, ainda por terminar, nos apresenta muitos pontos em controvérsia.
Lembremos que o problema base - as origens dos indo-europeus é ponto em discussão. Para uns, como Kretschmer, os indo-europeus teriam uma origem no Norte da Europa, enquanto outros defendem o foco primordial asiático.
Os textos romanos, até nós chegados, mostram que em grande parte de Portugal, no séc. VII a. J. C., perdurava um importante complexo demográfico, ao que parece, constituído por povos não indo-europeus, povos que denotam afinidades e conexões, com outros povos mediterrâneos, ou melhor. como pretende Menghin, com as populações migratórias dos asiânicos.
Talqualmente este autor, eu penso que quando se nomeia os Lígios ou Lígures na Península, isto não significa a afirmação da existência de uma população ligur primitiva, distribuída igualmente por toda ela. Viveriam conjuntamente com os restos da população Hamita ocidental, ou seriam como que uma forma evoluída dos restos de proto-lígures vindos com a migração elâmica.
Tal população acolheu aqueloutras difusoras da metalurgia do ferro, trazida pelos Ilírios, Ambrones ou Celtas. Estou crente que os caminhos, agora mais trilhados, do método linguístico-arqueológico, nos ajude a esclarecer este tão apaixonante problema.
Gomez Moreno pensa que no final da Idade do Bronze deu-se uma invasão de Indo-Germanos, de Ligures e Beribracos, fixando-se principalmente no Norte e no Noroeste, constituindo os Cantabros, os Astures, os Lusitanos, etc., etc., a que no séc. VII a. J. C. se sobrepõem os Celtas. Entretanto para Menghuin chegariam Indo-europeus pré-célticos, não Ligures, isto é proto-ligures indo-europeizados - senão outras tribos, sem importar que lhes chame como Pokomi: Ilírios; como Kretschmer: Venet0s; ou Ambrones, como Menendez Pidal.
Tal nome era o antigo e correntemente usado pelo povo que indoeuropeizou os Ligures (segundo Kretschmer) embora tal processo seja atribuido por Wolff aos Carno-Ilírios que chegaram à Península fortemente misturados com os Ilírios (povos dos campos de urnas).
Para a questão da nossa proto-história, que é o estudo da hierologia das populações pré-romanas não deixam de ter interesse alguns elementos epigráficos ultimamente encontrados.
O primeiro a referir é a lápide existente em Queiriz - topónimo pertencente ao subtractum linguístico dos Ambrones - Fornos de Algodres, que li e fiz transportar para a exposição arqueológica da Beira Alta, organizada sob a minha direcção em 1951, e que leio:
QVATIVS APIANIS
DANditatideaigvi
VOCTO TOLIT I (usso)
Pela forma da suas letras, de pormenores bastante arcaizantes, poderíamos supor ser esta epígrafe do séc. I J. C. empregando-se caracteres cursivos e actuários na gravura deste texto votivo.
Tal divindade de carácter algo desconhecido pode ser associado ao grupo constituído pelas denominadas: BANDEUTOIRAECO (Vila da Feira) -BANDOGE (Castro do Mau Vizinho, Sul) - BANDIOILLIANAICO (Castendo) BANDIARBARIAICO (Capinha). Todas encontradas entre o Tejo e o Douro. Ao norte deste rio encontramos um outro em que entra a forma BAND e constituído pelas invocações: BANDUA (Cova da Lua, Bragança) - BANDVA (Verin) - BANDERAEICVS (Ribeira de Pena): Ainda podemos rastear outros idênticos na Estremadura Espanhola.
Se considerarmos somente por agora a terminação deaigui estabeleceremos confronto com a divindade dos Igaeditani: LANGANI DEAIGUI.
Tal terminação é peculiar à língua basca e nós sabemos quão bons resultados, dignos de consideração, tem dado o confronto do contexto de várias invocações com vocábulos pertencentes a esta língua dos Pirineus.
Sem ser páleo-linguista e não possuindo ainda a necessária bibliografia, não deixo fugir a tentação de referir a identificação, de referir a idêntica terminação gui e eargui destas duas invocações, de Queiriz e da Idanha, com a de muitas palavras bascas, topónimos ou não - como por exemplo os nomes da lua: «ilargui», «illargui», «arguizagui», etc. em que argui exprime a ideia da luz. Se tal interpretação pudesse ser defendida, a invocação da lápide de Queiriz estaria ligada ao culto lunar, talvez que a festa do plenilúnio, antanho existente nesta região do centro de Portugal.
Não pretendo, de forma alguma meter-me na acendrada controvérsia de, se o basco seria ou não língua geral na Península. O que pretendo é apresentar dois casos encontrados em Portugal que denotam a existência de relações linguísticas entre esta e aquela região montanhosa do Norte da Península e, através de cujas portelas. nós sabemos terem passado muitas das populações constitutivas do nosso Subtractum étnico actual. Esta sugerência não me ocorre sòmente por estes dois achados epigráficos. Temos mais.
A divindade aquática NAVIA cuja dispersão há pouco estudamos, surge-nos igualmente na região basca. Sendo considerados os patamónimos como os elementos mais estáveis na linguística eu rememoro que o rio NABIA é igualmente desta região.
Há outros elementos a acrescentar a estes: Nas ruínas de Conimbriga aparece-nos uma lápide, muitíssimo importante(CIL. ll. 365 e 5278) consagrada a NETO, divindade que igualmente nos aparece invocada em terras Aquitanas. Tal epígrafe valiosa para o estudo da organização social destas populações refere a Gens Baedorus, o que talvez pode ser posto em paralelo com os BAEDUNENSES dos Astures e quer nesta região quer em Condeixa-a- Velha, nós sabemos existirem Conios - Para Tovar estes Baedorus são de origem Ilíria.
Nas proximidades da região onde nos surge esta invocação a NETO apareceu uma outra epígrafe que se apresenta numa ara votiva consagrada a uma divindade pré-romana, pela vez primeira assinalada em Portugal, e tem réplicas na região pirenaica, hispano-francesa, na área basco-aquitana.
É a ara do séc. I. dedicada ao Genium vici ILURBE DAE encontrada nas minas da Escadia-grande - Silbares - na Lousã.
Podemos comparar ILVRBEDA com ILURBERRIXO, nome de divindade que nos aparece gravada numa lápide marmórea, recolhida na Igreja de Escuñan, Vele de Arãn, Lerida.
Estas palavras Ilurbeda, como Ilurberrixro têm uma acentuada fisionomia Vasconsa, tão evidente como a de Iliberri (Vila Nova).
O elemento comum a estes nomes não me parece ser ili - povoação - mas antes ilur, que com diversas grafias, correspondentes, certamente à imperícia dos autores das transcrições ou a variantes reias de pronúncia, análogas à de que Illyricum romano redundou no Ijurik eslavo.
Esta raíz Ilur, com o significado de cidade ou vila aparece-nos em Iluro (Oleron) Il (d) uro e não Iluro ( a actual Mataró - Catalluña) Ilurre, Ilurdoz, da Navarra, llurmendieta, de Guipúzcua.
Tais nomes e outros aparecem nos textos antigos, referindo tribos pré-romanas, como os Ilurgetes ou Ilergetes; os Ilercavones; Illurganones e Ilorangates, com Ilerda e Ilercanonia, como cidades.
Nas moedas surge Il (d) irda, por Ilerda e Il (d) uro, por Iluro.
Todos estes vocábulos têm sido atriDuidos ou relacionados com os Ilírios, Illyrii e Ilurii no latim (Illurioi em grego).
Correlacionando estes e outros elementos, com nomes de rios, etc., Pokorni defende uma maior expansão ilíria da que era então tradicionalmente considerada, expansão que R. Pittioni pretendeu melhor ajustar e confirmar com argumentos arqueológicos.
Na Hispânia surgem estes nomes misturados com outros de tipo celta, no entanto investigadores peninsulares, bem aceitaram a hipótese duma invasão ilíria e para ela encontram suficiente justificação arqueológica.
A existência de nomes análogos em ambos os extremos dos Pirineus, Ilurberrixo - C. I. L. XIII, 23 e 255 e Iluro C. I. L. XIII, 154, faz pensar numa passagem de Ilírios pelo passo ocidental pirenaico, por Roncesvales, a portela mais célebre da nossa História, enquanto que outras invasões, acaso mais densas se efectuaram pelas passagens de Leste.
Da passagem por ocidente seriam resultantes as nossas populações ilíricas que as lápides atrás referidas testemunham e que na sua emigração arrastariam consigo elementos bascos.
Estes movimentos populacionais nos finais da Idade do Bronze, são complexos e difíceis de delimitar com justeza pois nuns locais parecem ter chegado como invasores, outras vezes mostram ter seguido como que numa infiltração pacífica, um lento estilar de gentes ou tribos que, quase imperceptivelmente, se transladam no terreno e no tempo, permitindo uma larga sobrevivência dos costumes da população da Idade do Bronze, megalítico ou não. Nestes tempos a nossa população representava uma unidade étnica. Nem sequer podemos dizer que os celtas se sobrepuzeram como elemento dominante, uma vez que vemos sobreviver aqui e além resíduos linguísticos pertinentes, com toda a verosimilhança, aos povos supostos como dominados, na área em que, no centro de Portugal, mais forte deve ter sido a influência céltica.
É um caso análogo ao que Altheim refere ao estudar a origem dos Etruscos, demonstrando que, quer as colónias etruscas da Itália Superior e da Campânia, quer as cidades consideradas como constitutivas do próprio foco etrusco eram formadas por um complexo populacional, de que faziam parte ligures, umbros, ilírios, gregos, etc.. É o que chama o estádio dinâmico da formação das tribos, período, - quando a maturidade é alcançada -, depois substituído pelo processo de unificação.
Estabelecidas ficam algumas conexões entre divindades pré-romanas que foram encontradas na Terra Beiroa e, apontados os prováveis rumos trilhados na sua progressão até nós, mostrando que o horizonte em que têm de ser integrados é, seguramente mais dilatado do que a área da interamnense entre o Douro e o Tejo.
Resta-me agora lembrar outro importante aspecto da religiosidade dos nossos avoengos pré-romanos.
Ao iniciarmos esta comunicação referimos a grande predilecção pela escolha dos grandes penedos para a perpectuação dos votos a divindades, penedias tornadas sagradas e consequentemente lugar da residência das divindades locais e regionais.
Esta atitude vimo-la seguida ainda nos tempos romanos; basta recordar o voto a Reinticis de Fail, a Paisicaico, de Carvalhal de Vermilhas - Vouzela, sem deixar de recordar o Santuário de Panoias, Vila Real. de flagrante carácter helénico.
Se me socorrer do espólio religioso conservado pela mitografia popular, fácil é verificar como, estas nossas lendas, nos informam da existência de homens que a terra tragou vivos e quantas vezes ficavam a morar nas profundezas, em lugares bem determinados e concretos. Tal qual os Semi-Deuses dos primitivos Helenos, disfrutam de uma vida imortal, esperando outros os ensejo da quebra do encantamento.
Ao que parece e conheço, tais lendas revelam-nos a crença de que a imortalidade era milagrosamente conferida a determinadas pessoas, por gracil ou caprichoso decreto de forças superiores - o encanto, somente consiste em jamais se verificar a morte, o aniquilamento total, a psique não se separa do corpo visível, sendo-o este humanizado em determinadas ocasiões.
Às personagens, contadas em tais lendas, foi conferida, embora condicionada, uma pervivência eterna, naqueles locais destinados, especialmente, a serem por eles habitados, no interior da terra, nas profundezas das penedias.
São pois vestígios da existência de antigas concepções míticas de carácter ctónico, isto é de divindades ou divinizados que residiam no interior da Terra.
Aqui e ali transparece ainda hoje, na mitografia popular, a ideia de que estes herois - 08 encantados - de vincado carácter ctónico, venerados nas penedias ou nas montanhas, são os
vestígios da existência dos antigos deuses que a fé dos pagãos instalara no ámago das penhas ou no interior das lapas ou palas.
Igualmente através da tradição grega, se pode verificar, tantos séculos distantes - que os nossos avoengos da proto-história, aos quais foi concedida uma vida eterna subterrânea - um
Ladico ou Larouco não seriam senão transformações lendárias de remotos deuses que gozavam de imortalidade e moravam nas profundezas da terra por suas virtudes e não por qualquer concessão vinda do alto.
Para terminar quero relembrar a consabida ligação do culto ofiolático com o das divindades ctónicas e com a escatologia lunar, crenças largamente aceites pelas nossas populações pré-romanas.
Seria um nunca mais acabar, enumerar as nossas lendas ligadas ao culto ofiolátrico e ctónico.
Gravuras rupestres, a que no princípio nos referimos, são em grande parte consideradas, por doutos especialistas, como representação, mais ou menos esquematizada de ofídeos. Há quem nela queira ver a plena justificação da localização dos Saefes no nosso Território.
Ora como a serpente era também considerada como simbolizando a alma eu a findar pergunto-me:
- As nossas populações pré-romanas que as gravaram nos monolitos de granito, em vez de serem uns rudes adoradores de serpentes, meros zoólatras, não acreditariam antes numa ideia mais superior, ligada com a existência e imortalidade da alma, como a natureza ctónica destas e doutras invocações pressupõe?...
Desenho de F. Almeida Moreira
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