terça-feira, março 22, 2005

Viseu - pátria de D. Afonso Henriques



Autor: A. DE ALMEIDA FERNANDES
Edição: Câmara Municipal de Viseu
Capa: D. Afonso Henriques

Conferência realizada em 29 de Novembro de 1991, promovida pela Câmara Municipal de Viseu e pela Sociedade Histórica para a Independência de Portugal, integrada nas Comemorações do 1º de Dezembro de 1640.

Sinto a satisfação de prestar este informe à nobre e já agora quase "régia" cidade de Viseu, pois que os seus interesses culturais me proporcionam a honra de o fazer.

Satisfação, sem dúvida, mas também a bem consciente responsabilidade que assumo por inteiro contra o que possa negar-se à minha investigação. Viseu, com efeito, está de todo inocente numa reclamação histórica deste género, porque sou o primeiro e, por isso, ainda o único que lhe propõe este fasto, razão para seu orgulho: pátria do Fundador da Nacionalidade, como o é do rei D. Duarte. E fica bem esta comunicação próxima do dia em que se comemora a restauração da independência que o primeiro Rei nos legou.

Tanto quanto a verdade historicamente informada o permite, poderá Viseu de ora em diante orgulhar-se de um tal facto. Dele possui todos os dados, enquanto nenhuns Guimarães e Coimbra, que se arrogam do mesmo. Guimarães reclama-se de uma tradição que nem o é, por ser de origem erudita e não suficientemente antiga. Coimbra nem esse pouco: apenas uma ideia acudida há pouco mais de dois decénios a um seu professor universitário de ter achado D. Teresa mencionada aí num documento de 1109 que não soube interpretar, como veremos. De outro modo, não me arriscaria eu a arçar com tamanha responsabilidade e a uma perigosa imprudência, sobretudo face a Guimarães.

Não venho apresentar-me como único até hoje com as capacidades de resolver um tal problema de investigação histórica. O caso não possui uma importância de âmbito nacional, em si mesmo; ela pertence ao vulto de D. Afonso Henriques, mas por isso assume-a relevantíssima na história local. Não há terra que se não orgulhe de ter sido pátria de um vulto importante, a não ser que falha de intelecto ou que viva na inconsciência "histórica" que frutifica na ignorância. Viseu não pode admitir um estado cultural dessa espécie.

Sem minimizar, por mal entendida modéstia, que nem digo simulada, o mérito da minha intervenção, estou sinceramente convicto de que outro poderia ter chegado às minhas conclusões se tivesse estudado o assunto, o que nunca se fez: mas isso desde que não praticante do falso método da chamada "história nova" antifactualista que nega o "sim" e o "não" positivistas para derramar o seu sórdido materialismo e dar larga a trela inteira da fantasia, a denúncia mais clara dos incapazes - embora vitoriosos, até ver.

Seja como for, com todo o meu retrógado positivismo historiográfico, estou crente - e a Viseu o garanto - de que há-de ser muito difícil ou aleatório seja a quem for poder opor-se com êxito ao resultado desta investigação: o nascimento de D. Afonso Henriques em Viseu, Agosto de 1109.

Isto dentro da responsabilidade a que há pouco fiz referência. Quanto à imprudência também referida, e se bem que a matéria da responsabilidade se lhe sobrepõe em parte, quero desviá-la desse domínio para situá-la num espaço menos especulativo (científico e lógico, que são os dois aspectos fundamentais da investigação histórica) ou mais terra-a-terra: o simples perigo de enfurecer contra mim um vespeiro, Coimbra ou sobretudo Guimarães, se não ambas as localidades.

Coimbra, porém, como universitariamente em geral, parece manter-se numa indiferença olímpica, e Guimarães denota ter amuado com a minha solução "Viseu", que não é de tertius gaudens.

Vamos, pois, conhecer o caso vimaranense que medirá a importância que a este assunto deverá ser prestada por Viseu. É o domínio arriscado para mim. Mera eventualidade, mas, de qualquer modo, eu nunca pediria socorro a Viseu, pela simples razão de que Viseu nada me pediu. O pedido veio-me de Guimarães, cuja instituição responsável não gostou do desfecho, mas compreende-se, e tal modo, que lhe não levo a mal o silêncio que de lá se mantém sobre o assunto.

1. Origem deste trabalho

Pelos números de 22 de Fevereiro e 1 e 2 de Março de 1990 do jornal "O Comércio de Guimarães", é possível conhecer a razão daquelas minhas palavras. Se sabedor do que se passava em Guimarães quando de lá se me solicitou o estudo sobre o mais provável local do nascimento de D. Afonso Henriques, talvez que eu me não tivesse disposto tão facilmente como o fiz a aceder ao pedido.

Somente meses depois pude conhecer que o momento da referida solicitação era o de um exacerbado debate à roda de tal facto. Coimbra, apesar da sua soberana indiferença, entrava indirectamente na questão, mas sucedeu que se envolvia nela, parece que como Pilatos no Credo (valha a verdade que sem isso o desculpar, por mais que tivesse tentado lavar daí as mãos), certo professor universitário de Lisboa que, nestes últimos quinze anos, foi levantado, servil e ignaramente, a chefe ou representante da historiografia portuguesa.

Que se passava, pois, em Guimarães e que deverá ser uma unidade de medida da importância do caso para Viseu?

Aquele periódico refere casos como o da "efervescência" citadina contra a substituição por Coimbra; o dos manifestos escritos distribuídos nas ruas repudiando-a e apontando culpados; o do forte dispositivo policial à paisana na sala de uma prestigiosa instituição cultural e em que à noite se iria realizar a conferência de famoso comunicador de História, ao qual se pensava mesmo" pedir contas"; etc. Espectáculo? Repercutido, porém, na rádio e na imprensa e que não teria sido pior se se tivera derrubado lá a estátua de D. Afonso Henriques ou atacado o castelo. O referido conferencista defendeu-se com razão das acusações (mas não sem ter chamado "biltres" aos que lha faziam): infelizmente alegou a "tradição" para sossegar os vimaranenses, afirmando-se crente, por ela, de que o primeiro Rei aí nascera.

Foi depois de tudo isto, só então sabido por mim, por informe ao mesmo tempo enviado, foi depois, dizia eu, que vim a receber de lá um pedido de intervenção, para ser publicado na imprensa o seu resultado. Nunca o foi, o que se compreende, mas não se justifica. A origem do meu estudo, de que esta comuni~ação é sumular, está nisto.

Apesar de o ter negado (no decurso de discussão jornalística comigo cheia de falsidades históricas e pessoais, tendo chegado a acusar-me mancomunado com a imprensa vimaranense naquela questão - que eu de todo ignorava - para comprometê-lo em Guimarães), apesar de ter negado, ia eu dizendo, ou, o que é o mesmo, ter dito que nunca à reivindicação vimaranense se opusera, ficou porém voltado para Coimbra o dito presidente da história nova, em Lisboa. Mas o seu herdeiro presuntivo de cátedra, delfim e discípulo, havia-se metido até às orelhas (e grandes no caso) a favor de Coimbra, denunciando até aquele seu mestre como seguidor desse partidarismo. Um e outro, quer o seguidor (o mestre), quer o copista (o assistente), baseados em Torquato Soares, catedrático conimbricense que se lembrara, nas condições equivocadas a que já me referi, de atribuir a Coimbra o berço do Fundador da Nacionalidade.

Ridículo, como se vê, mas não de somenos, o que Viseu deve ter presente. E, além de ridículo, revelador de uma falta de coragem moral confrangedora, parecendo esquecido ainda (se alguma vez consciente) que coragem intelectual é o mesmo que honestidade intelectual, porque a verdadeira coragem é sempre honesta, mesmo quando erra.

Convém ainda acrescentar que a instituição vimaranense que me solicitou o estudo respondeu sempre (duas vezes) com o silêncio aos meus contactos com ela sobre o resultado, "Viseu"; mas não me consta qualquer reacção. E eu, ao ter presentes os factos expostos, hesito entre optar por considerarem-me sem importância suficiente para se aborrecerem comigo (mas, em tal caso, por que me solicitavam?), ou, cúmulo da fatuidade, com ele tanto, que não se encontrava por onde atalhar-me ou, de outro modo, matéria de suficiente dúvida.

A questão só pode resolver-se neste sentido: a solução "Viseu" é inatacável, impossível de impugnar com êxito. Passamos a vê-lo, se bem que o desenvolvimento do assunto se vem fazendo na revista "Beira Alta" desta cidade.

2. A residência "régia" em Viseu

Permito-me fazer ao leitor ou ouvinte a prévia e indispensável apresentação do que eram, territorialmente, as províncias chamadas "Portugal" e "Coimbra", sem o conhecimento das quais não é possível compreender devidamente. a minha exposição e o seu norteamento para o ponto desejado.

"Portugal" província não se confunda com Portugal civitas, núcleo do actual Porto ou sua origem: era a também chamada "Terra Portucalense" (designadamente, inexactamente, "condado portucalense" pelos autores e professores, e daí por toda a gente, se me não engano). Esta província não era, pois, aquilo que territorialmente se julga: o actual Norte português livre de Mouros então - mas muito menor, seja quem for que diga o contrário. Compreendia, quase exactamente, os actuais distritos de Braga e Porto (com alguma hesitação, pelo que melhor é excluir-se, para o norte do Lima), a metade sul do distrito de Vila Real e a parte norte do distrito de Aveiro (até à foz do Vouga). Foi a "Terra de Portugal" dada por Afonso VI de Leão "em casamento", como se dizia, a sua filha Teresa (ainda uma criança), hereditariamente: apenas isso. Lamego, Lafões, Viseu, Seia, Coimbra, para apenas citar as circunscrições principais e definidoras, não lhe pertenciam. Foi a política que agregou estas e outras regiões, e por meios militares por vezes, ao domínio inicial de Teresa e seu marido (Henrique de Borgonha), ainda que bastante cedo: já em 1097, quando o seu "Estado", digamo-lo assim, atingia o Tejo, desde Santarém, por Lisboa, a Sintra. Esta era então uma praça de grande importância, o que tem neste estudo uma significação fundamental, como veremos.

"Coimbra" província estendia-se toda ao sul do Douro, a não ser a "terra" de Santa Maria, do Douro final à foz do Vouga (e daí aquém deste rio), a qual, sendo portucalense, foi sempre disputada a "Portugal" pelos condes conimbricenses (como sucedia no final do séc. X) e anexada a "Coimbra" provincial em 1064. Ao oriente, terminava no Távora, de onde seguia directamente à cordilheira da Estrela, e seguia depois pela linha dos castelos defensivos de Coimbra, os da Lousã e Arouce, do Corvo (Miranda), Penela e Soure, barreira sempre embatida pelos Mouros, que o não podiam sobre Viseu. É muito necessário ter em conta esta circunstância.

As bases desta investigação, sem as quais ela seria impraticável, ou baldada, são duas: uma, o conhecimento da data suficientemente aproximada do nascimento de D. Afonso Henriques; a outra, a residência de D. Teresa quando ele veio à luz. A data é possível sabê-la pelas indicações da época: tendo dois para três anos quando morreu seu pai, o que sucedeu no começo de Maio de 1112, e sendo que aquela expressão vulgar significa mais próximos os três anos que os dois, concluímos, calculando dois anos e uns nove meses, o meado do Verão de 1109. Quanto à residência de D. Teresa, temos provada para ela Viseu precisamente então. É a esta prova que o meu estudo se destina.

Nas minhas investigações, porém, nunca me limitei às situações de ocasião, por muito claras ou incidentes que fossem: procurei-lhes sempre o passado, os antecedentes, suspeitoso sempre das circunstâncias acidentais ou sem enraizamento. Peço licença para expor essa sondagem no passado, introdutoriamente.

Viseu como residência soberana é, de facto, muito anterior a D. Teresa: temo-la no séc X com os futuros reis de Leão Ordonho II e Ramiro II, para os quais se havia criado, neste noroeste cristão peninsular, um reino próprio, súbdito do leonês. Por que não estabeleceram eles a sua capital em Braga, no núcleo do Porto actual (Portugal "civitas"), que havia sido a dos reis suevos (e não Braga), ou em Coimbra? Temos, pois, de ver aí as mesmas razões por que D. Teresa veio, inegavelmente, residir em Viseu; mas encaremos ao contrário, isto é, atendendo a essas razões, passemos a deduzir delas a residência de D. Teresa, no paço da cidadela, o qual havia sido o daqueles reis, Ordonho, e seu filho Ramiro.

É possível que se esteja a pensar em Gumirães. Não há a mínima prova para esta cidade: ela havia sido uma capital, ou como se o fosse, mas para os condes de Portugal, findos de 1043 para 1044. Além disso, ela compreender-se-ia como tal só no tempo, aliás rápido, em que os domínios de D. Teresa não passavam da já descrita província de Portugal, ou Terra Portucalense. Desde o momento que esses domínios se dilataram para a província de Coimbra, as coisas mudavam inteiramente: introduzia-se já uma questão de segurança. Portugal província não oferecia então esse problema: viera à sua posse por dádiva de seu pai, hereditária, e a ninguém, numa situação normal, passaria pela ideia pôr entraves ao acto de um monarca que morreria muito depois. Não assim em Coimbra província: não houvera aí um acto régio, mas uma composição dentro do reino da Galiza súbito de Leão e agora condado (se é licito chamar-lhe tal) que compreendia de jure Portugal e Coimbra provinciais. Apesar do que dizem os magnates da historiografia, que nunca mais vencerão os compromissos das adesões por compadrio, as provas que disso tenho e que exprimi em estudos anteriores, contrariados mas nunca contestados, eu poderia agregar a isso outras provas que os olhos comprometidos não vêem ou não querem ver. Mas adiante direi uma (por si mesma bastante), por ser aqui indispensável. Tornava-se, pois, imperiosa uma residência ao sul do Douro.

Não era apenas aquele motivo a exigi-la: acrescia-lhe o facto de a sociedade sul-duriense ser muito diferente, no seu moçarabismo, o qual se manifestava nos próprios ritos religiosos. Além disso, a desconfiança que Coimbra nutria de Portugal, situada na direcção expansionista portucalense de que resultou o nosso territorio de hoje: antes de conquistar terras aos Mouros, anexar a província conimbricense, como logo se fez. Compreende-se que Coimbra fosse vigiada de perto, e só a presença dos governantes o faria. As agitações moçarábicas a que me referirei são disso uma prova inconcussa. Os governantes, porém, dissimulavam a situação de absorção conimbricense por Portugal mantendo-lhe o nome nos títulos: estes são de facto referidos às duas províncias, Portugal e Coimbra, durante todo o governo de D. Teresa (antes e depois de viúva) até ao advento de D. Afonso Henriques. Foi este que pôs de parte um tal artifício, intitulando-se apenas de Portugal, sentido lato, Portugal que é o de hoje, desde então. Unificara-se com esse nome, a designação do conjunto.

Mas ainda na província de Coimbra haveria que distinguir em questão de residência: Coimbra ou Viseu. Em Coimbra seria inseguríssima, tanto interna (a sua diferenciação social suspeitosa) como externamente, com a sua arriscadíssima situação face aos Mouros, logo a seguir aos cumes da Estrela e à linha dos castelos já indicados, a qual prolongava essa barreira. Esta, a orográfica, protegia Viseu: Coimbra não a tinha, e nem a linha acastelada obstou aos contínuos ataques muçulmanos, nunca verificados sobre Viseu. E Viseu, além de maior segurança, possuía a tradição residencial leonesa acima referida, com o seu paço, conservado na cidadela.

3. "Provas" "indirectas"

Deduzida a função residencial soberana de Viseu, procuremos circunstâncias que, derivando dela ou que apenas dela poderiam ter provindo, constituam verdadeiras provas. Neste sentido, mencionarei, de imediato, duas:

1. Na diplomática de D. Teresa e do marido, não há região que ao menos se aproxime da de Viseu em número de actos seus, denunciando uma inegável predilecção (digamos assim, porque vamos vê-lo): são cartas de foral várias (Mangualde, Sátão, Cota, Alva, Ferreira, Viseu); são doações feitas a visienses não nobres (de citar aquela "donna" Gaudilde ou Gouvilde tão da amizade e confiança de D. Teresa); são as encartações vassaláticas ou feudatárias em Viseu, seu aro e sua "terra", feitas a numerosos cidadãos e lavradores proprietários, tornando-os verdadeiros potentados agrícolas em terras dela (Teresa); são as provas de deferência por eles e de confiança neles depositada, ora juntos de si (como na concessão do foral à cidade), ora, comissionadamente, representando-a quando impedida (circunstância da maior importância nesta averiguação), ou mesmo em missões confiadas em momentos da maior gravidade (como o caso da inventariação visiense dos bens dela durante a revolta do Norte contra a sua autoridade).

De como D. Teresa obteve estes bens visienses é problema que não posso abordar aqui (mas pode muito bem ser mais um indício das particulares relações dela com os visienses), pois que não procedem da doação hereditária paterna de "Portugal" província.

2. Combinemos, agora, as duas circunstâncias já enunciadas como básicas nesta investigação: a ocasião do nascimento, Verão de 1109, e a residência da mãe nessa ocasião, deduzida já em Viseu indirectamente.

A construção histórica, positivista ou não positivista, dispensaria exigir mais para deduzir da combinação desses dois dados que D. Afonso Henriques nasceu então em Viseu. De muito menos se valeu Torquato Soares, catedrático positivista em evolução, para lançar Coimbra com o êxito de esperar, por ser coisa sua: bastou-lhe, de facto, saber por um lado que Coimbra tinha uma alcáçova (e eu sei que Viseu tinha um paço régio) para propor o nascimento "na alcáçova de Coimbra", e encontrar por outro lado o documento daquele ano de 1109 com a firma de Teresa datado de Coimbra (e eu tenho-o na mesma ocasião e com essa mesma firma datado de Viseu). Desse documento, que totalmente o iludiu e que já fizera esbracejar Rui de Azevedo no vácuo, tratarei adiante, por ser fundamentalíssimo.

Posto isto, se dentro daquela coerência ou admissibilidade da minha tese encontrarmos outros factos ou circunstâncias em número bastante para se não julgarem simplesmente incidentais, e que relacionem claramente com o estado fisiológico de Teresa ou a ele sejam imputáveis, nessa mesma ocasião, estaremos perante o máximo que a construção histórica não fantasista e não hipotética exige para permitir uma afirmação peremptória, dentro da verdade moral que é a da História, visto que não presenciámos as ocorrências.

Pois bem: poderei dizer, desde já, que tais factos e circunstâncias são em tão grande número e peso, e tão coincidentes, que equivalem a um certificado do que em matéria histórica possa considerar-se indubitável.

Mas atenhamo-nos ainda a dois ou três acontecimentos antes de entrar nessa matéria: são importantes para esta, desde que revelam sempre a predilecção mútua entre D. Teresa e os visienses.

- Quando D. Teresa vivia em Viseu - precisamente pelo tempo do nascimento do Infante, uma coincidência ocasional -, a moçarabia de Coimbra provincial agitava-se. Há indícios em Lamego, cujo governador, de alcunha Mouro, ficou, mediante as gestas, como um então impossível "rei Mouro" dessa cidade e seu território (mas ainda hoje há gente de certa responsabilidade, ou considerada com ela, que o julga "rei" de facto, o que é o cúmulo). Não me custa tê-lo por filho de Martim Moniz, que governara Coimbra provincial pouco antes de D. Teresa receber a Terra Portucalense como dote e se exilara pela nova autoridade instituída naquela província (o mesmo que a historiografia, equivocada, confunde com um homónimo que era então tenente da pequena "terra" de Arouca): tudo indica um grande moçárabe conimbricense, como o havia sido seu sogro e antecessor. Viseu não aderiu, e D. Teresa há-de recordar e louvar sempre a sua fidelidade e os seus serviços a ela (como o fez no foral, anos depois). Sátão igualmente não (e também no seu foral, de 1111, o facto se menciona).

- Lavrava já em 1127 a revolta contra D. Teresa entre Ave e Lima e que a destronou. Inteligente como ela era, e ainda que no horizonte se lhe não perfilassem as azes infelizes de São Mamede, ela deveria ter previsto a eventualidade e tratado de prevenir-se para as piores consequências. Tudo indica que pensou conservar-se em Viseu, no caso destas: daí ter mandado arrolar, a um grupo de visienses e conimbricenses, presidido por um visiense, os seus avultadíssimos bens na cidade, seu aro e "terra": casas e casais, na maior parte feudalizados por ela nos lavradores visienses tal como já referi, pessoas todas de elevada qualidade popular. O que sucedeu foi que o desfecho em São Mamede passou muito além do previsto: D. Teresa teve de abandonar o País, não que dele expulsa, mas por vontade - forçada no entanto, por questões de dignidade e outras, afectivas. Dentro de pouco mais de dois anos, faleceria, fora da sua Terra Portucalense hereditária.

- Mas pela ocasião do seu óbito, ainda não ocorrido ou tão recente que se ignoraria, ocorre um facto que prova que os visienses não haviam quebrado na sua dedicação. Dois deles, de ambos os quais temos outras notícias como tais, revoltaram, em favor dela ou contra o Infante o castelo de Seia. Os outros faltaram, pois não é possível pensar que outros de facto não estivessem implicados: de contrário, um acto suicida. Foram submetidos, e os seus bens, meses depois, dados pelo Infante ao prócere encarregado de reprimir a rebelião. Estendiam-se de Aguiar a Seia, nomeadamente em Viseu e Sátão.

Não poderemos dizer que Viseu tivesse perdido com casos destes ante D. Afonso Henriques. De todo o modo, a banida era sua mãe, por quem ele, nos seus documentos, mostra toda a dedicação: o que de contrário se diz em antigos escritos é totalmente inverídico. Além disso, a tendência independentista somente existia no Norte - no Portugal propriamente dito, o inicial, a que Viseu havia sido sempre alheia. Eu felicitaria antes por isso, a fidelidade, desta nobre cidade, minha pátria distrital - sem suspeitos bairrismos, como da distante Lamego que sou.

4. As provas directas

Apresento, finalmente, as já quase dispensáveis circunstâncias, agora directamente documentais, do nascimento de D. Afonso Henriques em Viseu.

Relembremos os dois pontos básicos ou de partida, pontos esses igualmente de aferição da realidade se os escusássemos como provas ou directos: um, o tempo, o Verão de 1109; o outro, neste mesmo ano, a residência documentada de D. Teresa em Viseu.

Se provarmos que ela não se ausentava vez alguma de Viseu por então num número bastante de casos em que devesse normalmente fazê-lo, e esses tanto oficiais como particulares (este ponto seria mais um ponto básico a juntar àqueles dois) estaremos perante uma impossibilidade de carácter fisiológico que só poderia ser, nesse ano, provado para o nascimento de seu filho, uma gravidez no seu final, de um desenlace de um momento para o outro.

Compreende-se, assim, que toda a minha investigação directa (exposta a indirecta que de antemão a exprime) vá incidir nos meses cruciais: Junho - Agosto desse ano de 1109. Nestas condições, todas as precedências que me empenhei em apontar passarão a um papel de provas, mas provas estas já dispensáveis perante as directas, são as que seguem:

1ª Nos fins de Junho, Afonso VI, o pai de Teresa, chegava em Toledo ao fim da sua prolongada agonia. Henrique, o genro, marido de Teresa, posta-se-lhe descaroavelmente à cabeceira, insistindo por que a sucessão da coroa (não havia herdeiro masculino) se fizesse em Teresa - um carácter seguro, com um marido capaz, enquanto versátil o da irmã, Urraca, viúva e sem garantias de se impor. Ora Teresa não está presente à agonia do pai, a toda essa impiedosa insistência, que só deveria ser sua: por quê?

2ª Morre Afonso VI antes de findar o mês, e às exéquias, com quantos o deveriam e poderiam, comparecem o primaz de Toledo e o conde de Trava, aio do seu neto (o futuro Afonso VII), filho de Urraca - a nova rainha, que o pai acabara por designar. Ora Teresa não comparece a um acto que nenhum filho declina, por muito agravado que se julgue de seu pai: por quê?

3ª O marido também não está nas exéquias: é que, antes de o sogro falecer, recebera à sua cabeceira a notícia da rebelião em Sintra contra a sua autoridade, com o perigo de propagar-se a todo o sul português, o do Tejo. Ficou memorável a ira com que ele saiu de Toledo quando o rei morria, e isso, precisamente, quando mais lhe convinha manter-se aí e insistir, sendo que Teresa não estava lá para tomar do marido essa insistência. Encerrados os funerais, o arcebispo metropolita e o conde aio transferem-se de Toledo para Viseu: por quê? Dou aqui eu a resposta:

- Quanto ao prelado: A parte de Portugal lato ao sul do Douro era eclesiasticamente reclamada para a metrópole de Toledo (representante de Mérida). Tornava-se indispensável ao arcebispo avistar-se com os govemantes portucalenses, dada a iminência de uma separação política de Portugal, cujo interesse, quanto a metrópole eclesiástica, estava em Braga. Tencionaria o prelado de Toledo acenar a Teresa e seu marido com um apoio às suas pretensões à coroa de Leão, como adversário ele também tanto de D. Urraca como do marido? Ela não casara ainda, mas não tardaria a fazê-lo: e com o rei de Aragão. O pior que poderia ter escolhido, mas o único que poderia opor-se ao marido de Teresa pretendente à coroa de Leão; e já corria o rumor da possibilidade de tal consórcio.

- Quanto ao conde de Trava: Ele estava encarregado pelo rei falecido de, no caso de Urraca voltar a casar, proclamar rei da Ga1iza o seu pupilo, filho dela (o futuro Afonso Vll). Ora Portugal lato era de jure uma parte desse reino da Ga1iza - e a verdade é que veio a fazer-se essa aclamação de que resultou o seu pupilo aparecer logo como rei entre nós reconhecido (o que, pela sua documentação, é um reforço à minha tese da subordinação que certos próceres, sem o conseguirem, pretenderam refutar-me): a iminência da separação política de Portugal teresiano não poderia convir, e daí o interesse imediato em convencer D. Henrique a não enveredar por uma insubmissão contrária ao direito do seu pupilo, e, piormente, por aventuras militares. Assim, o dito conde não larga D. Henrique, e tudo indica que entrou na expedição submissiva de Sintra, ao londo desse mês de Julho de 1109. Era um serviço prestado ao seu pupilo, desde que aclamado rei, visto que o seu reino se estendia até aqui.

4ª Sabida em Coimbra a presença do arcebispo de Toledo metropolitano, em Viseu, onde, junto de D. Teresa, aguardava o regresso de D. Henrique, o bispo eleito de Coimbra e o prior da sua sé passam a Viseu. Henrique e Teresa haviam prometido à dita sé a maior dádiva que ela alguma vez recebeu: a doação do mosteiro de Lorvão, talvez no intento de obter a protecção divina para a expedição a Sintra. É notável que, mesmo assim, o bispo eleito e o prior não ficassem em Coimbra, onde, no regresso, se faria a cerimónia da dita doação por traditio super altare: tal a importância da estada do primaz de Toledo em Viseu, fazendo avultar, ainda mais, Viseu nestas circunstâncias. Por quê, também aqui? Dou eu também a resposta: é que Teresa estava em Viseu, com o marido ausente dirigido a Sintra, e o prelado não tinha interesse algum em ir para Coimbra. Por quê, também isto? Obviamente porque D. Teresa não iria também - não poderia ir - e ao prelado era de todo necessário avistar-se tanto com ela como com o marido: aguardaria ele este junto dela.

5ª Ficou assim confiada ao arcediago da sé a aparatosa cerimónia da traditio super altare da escritura, já preparada com as necessárias firmas de Henrique e Teresa mencionadas, mas ainda a serem realizadas. Estiveram presentes D. Henrique e os expedicionários - desde a alta nobreza à secundária (os seus nomes identificam-na facilmente) a homens de qualidade populares de Coimbra e um grupo dev treze de Viseu, dessa mesma qualidade popular elevada. Rui de Azevedo ficou intrigado com o caso destes, e acabou por confessar: "não sei explicá-lo". Sem me querer inculcar de inteligente, eu explicarei: esses visienses de qualidade eram feudatários identificáveis de D. Teresa na cidade e no seu aro e "terra", e constituíram uma deputação de D. Teresa em que os acompanhava à cerimónia de Coimbra o prior da igreja visiense e um seu presbítero notável (o futuro S. Teotónio). Note-se que o bispo eleito de Coimbra e o seu prior nem por isso deixaram Viseu, aonde tinham passado: é que estava aí o metropolita toledano, que até deveria sagrar aí então o referido eleito. D. Teresa, tão querida aos visienses, fez-se testemunhar e representar por eles: não foi lá e por quê?

Para a resposta, nem é preciso lembrar o seguinte: que a alta nobreza, e quase toda a outra, acabada a cerimónia de Coimbra, transitou para as suas terras nortenhas; que todo o clero conimbricense passou logo para Viseu, escusando-se dizer que, com ele, quase todos os conimbricenses populares presentes à cerimónia e os visienses a ela deputados por D. Teresa - para assistirem à nova cerimónia (sem traditio, porque já havia sido feita em Coimbra): a da robora de D. Teresa confirmante e de seu punho, que ela não pudera fazer pela sua ausência de Coimbra. O texto é o mesmo, mas diferente no escatocolo: é datado de Viseu. Todavia, nem todos os que foram de Viseu a Coimbra delegados por D. Teresa estão na nova cerimónia. Não se justificava que o estivessem obrigatoriamente (a delegacia não era para aqui) e, trabalhadores como eram, chamavam-nos as suas terras, ou premiam-nos os seus negócios.

E repetirei a pergunta: por quê isto - ou seja, por que não foi D. Teresa a Coimbra, e houve que fazer-se nova, ainda que mais simples, cerimónia? Se o meu leitor ou ouvinte quiser responder, di-lo-á comigo, depois de tudo isto: impedia-a o seu estado de gravidez no final. De facto, seu filho não viera ainda à luz. Isto de Julho para Agosto de 1109.

Pouco depois, nasceria - já certamente entrado o mês de Agosto, e até neste sentido nos não falta um indício. Se é que não mesmo prova, que ouso chamar-lhe depois de tudo isto.

De facto, é notável que Egas Moniz, a figura mais preponderante da nobreza, não figure, nem na expedição a Sintra nem nas cerimónias de Coimbra e de Viseu. Isto não o sabe o leitor ou o ouvinte, mas sabe que ele foi o aio do Infante (e não aquele que a tacanha historiografia da bonzaria ultimamente ressuscitou dos mortos, entre os quais ele estava em 1109 havia anos). Talvez até saiba de memórias medievais que o cargo de aio se lhe havia prometido de imediato ao nascimento. Eu não me referiria a isto se o que vou dizer, e de que aliás não preciso, não confirmasse isso mesmo.

No meu estudo de que esta comunicação é sumular, creio ter deixado provado que o foral dado por D. Henrique e D. Teresa a Mangualde (Zurara) foi passado precisamente nesta ocasião, e em Viseu, escrito aqui pelo próprio bispo eleito de Coimbra, que aí ocorrera com o prior. Henrique e Teresa tencionavam ou deveriam mesmo ir a Mangualde, tomar o juramento da outorga solene do diploma: não foram - e por quê? Respondo somente para ele, pois que para ela é já escusado: o nascimento estava tão iminente que Henrique não se dispôs a uma ausência que nem sequer era para longe. Enviou, em nome de ambos, expressamente "in vice", uma delegação composta por Egas Moniz, da alta nobreza, D. Rabaldo, da média, e Gonçalo Peres, da burguesia, um visiense indubitável, que até estivera com D. Henrique em Astorga. Aqui temos a presença de Egas Moniz em Viseu: aguardava também ele a todo o momento, o nascituro para recebê-lo de imediato, e levá-lo para Riba de Douro lamecense, onde governava e o criou.

Para quê mais? D. Afonso Henriques nasceu então em Viseu, Agosto de 1109.

Thdo concordantíssimo, e sem a mais leve falha.

Suponha-se um círculo, com seus raios: o círculo, o espaço destas situações históricas num tempo reduzidíssimo (Junho - Agosto); os raios, todos os acontecimentos e circunstâncias numerosos que as constituem. Tal como os raios convergem todos num ponto único, o seu centro, assim tais circunstâncias e acontecimentos, ou situações, para um só. Definem-no, pois em tempo (Agosto de 1109) e em espaço (Viseu).

A historiografia actual - a "história nova" antipositivista, inimiga do "sim" e do "não" históricos (atenda-se a esta restrição) e que de si mesma se diz ridiculamente "oficial" - não se manifestará?

Não a desafio: convido somente a dizer-me de sua justiça quem a sentir diferente.
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