Dom Miguel da Silva: o "Cardeal de Viseu" (1/2)
O "CARDEAL DE VISEU"
por Mons. José de Castro
(Da Academia Portuguesa de História)
in "Beira Alta", vol. IV, fascículo IV, (4º trimestre), 1945
Iniciaram-se, no dia 13 do corrente, em todo o mundo católico, as festas do 4º Centenário do Concílio de Trento que infelizmente não terão o brilho projectado pelo actual Pontífice Pio XII, devido às preocupantes circunstâncias do momento. E eu que há muito tempo quero bem à gente desta diocese, e por isso mesmo à diocese desta gente, gosto de ter a honra e o prazer de vir aqui discorrer àcerca de uma personagem de relêvo máximo na vasta e nobre galeria dos bispos desta histórica cidade, conhecido nos fastos pontifícios e romanos pelo nome de «Cardeal de Viseu».
Não se trata, evidentemente, do Cardeal Gil que de cónego da catedral subiu à púrpura do Sacro Colégio, nem muito menos do infeliz Dom Luiz do Amaral, cardeal do anti-papa Felix V, deposto da igreja de Viseu pelo grande pontífice Eugénio IV, aos quais muito se referiu António de Macedo na "Lusitania infulata purpurata". O Cardeal de Viseu, por antonomásia, é o bispo Dom Miguel da Silva, eleito a 25 de Novembro de 1526, pelo Papa Clemente VII, após a morte de Dom Frei João Chares. É aquele grande perseguido de El-Rei D. João III, a maior figura que tivemos lá fóra no século XVI, e sem dúvida a maior que em todos os tempos tivemos, exceptuando, já se vê, o nosso pontífice João XXI, na capital do mundo católico. Perseguido só por EL Rei? Também diminuido e caluniado pelos cronistas e historiadores. E fui eu, com grande satisfação o digo, que o arranquei ao pó dos Arquivos do Vaticano, ressuscitandn-o tal qual foi: o príncipe dos humanistas do tempo, o conquistador da intimidade de cinco Papas, o Bispo de Viseu julgado digno de se assentar no sólio pontifício.
O Cardeal de Viseu nasceu, em 1480, na cidade de Éver (Évora), filho de D. Diogo da Silva e Menezes, aio de D. Manuel quando duque de Beja, e era sobrinho carnal de dois santos: o Beato Amadeu (no século João da Silva) fundador de um ramo da Ordem Franciscana, e a Beata Beatriz da Silva, fundadora das Irmãs Concepcionistas, a primeira congregação religiosa, instituída para celebrar o privilégio da lmaculada Conceição de Nossa Senhora.
Paris, Siena e Bolonha foram as Universidades deslumbradas pelo talento de Dom Miguel, onde foi o primeiro entre os primeiros e onde pôde atar amizades com os futuros cardeais Paulo Jovio, Pedro Bembo e Tiago Sadoleto, sendo um príncipe entre os literatos, poetas e artistas como Beroaldo Junior, Guerino Veronesi, Parrhasio Consentini e Nicolau Perotti.
Graduado e laureado, regressou a Portugal. E Dom Manuel, em 1513, achou bem nomeá-lo embaixador junto de Leão X para, em seu nome, assistir ao Concílio Lateranense. principiado por Júlio II, em 1512, e concluído em 1517, sendo desta maneira o segundo embaixador com caracter permanente, depois do Dr. João de Faria, companheiro de Tristão da Cunha na embaixada do elefante ao Papa Leão X.
Partiu para Roma em 1513, assinou as actas das sessões do Concílio de 19 de Dezembro de 1516 e de 16 de Maio de 1517; e tanta impressão causou logo na côrte pontifícia que o Papa, a 27 de Fevereiro de 1515, se congratulou com Dom Manuel por lhe ter enviado um "embaixador optimo, cheio de bondade, de prudencia e inteligencia", êle quo fôra encarre gado de pedir o estabelecimento da Inquisição nas mesmas condições em que fora concedido à Espanha.
Em Roma, na esquina do palácio Fiano, habitado por Dom Pedro Melo Breiner em 1819, e pelo Conselheiro Miguel Martins Dantas desde 1896 a 1910, existe uma lápide a recordar o Arco di Portugallo que ligava as duas partes do palácio do em aixador Dom Miguel da Silva. Arco e palácio derrubados quando houve de se alargar a actual Rua de Humberto I.
Dom Miguel da Silva que era de "excelente índole e de sublime engenho", segundo Manuel Caetano de Sousa, que fôra "um dos homens mais sábios e eruditos do seu tempo", no dizer de Fonseca, que era "tão erudito nas humanidades como douto nas elegancias da latinidade, insigne na poesia, celebérrimo na matemática e versado em linguas e ciências" no conceito de Cardoso, teve a honra de vêr, com insistencia nos salões da embaixada, os grandes nomes da renascença italiana, de ser cortejado pelo Cardeal Medici de Florença, filho de Lourenço o Magnífico, de Piccolomini de Siena, dos príncipes Colona e Orsini, dos Cardeais Coltona, Petrucci, Agostinho Trivulzi, Santa Cruz e del Monte.
Ao génio de Tiziano, seu amigo de coração, ofereceu versos que tinham a magestade de Virgílio e a agudeza de Marcial; e ao Cardeal Farnesi, mais tarde Papa Paulo III, compoz um epigrama de tal merecimento literário que o Senado Romano o mandou gravar no mármore do salão nobre do Capitólio e que, ainda hoje, reclama os aplausos dos maiores e mais exigentes latinistas do mundo. Não há outros versos latinos no Capitólio. Epigrama e nome de Dom Miguel da Silva lá estao a chamar a atenção dos visitantes de todo o universo.
No palácio do Arco di Portogallo viviam como em sua casa o poeta florentino João Rucellai, o poeta romano Marcantonio Flamino, o grande humanista Giano Parrhasio, o poeta bucólico Guido Postumo Silvestri, o publicista Scipião Ammirate e o talento omnímodo de Leonardo de Vinci que lhe cedeu o seu bôbo de côrte, Tomás Masini de Peretola; e palpitava a admiração entusiasta de Alberto Pio di Carpi embaixador do Imperador, e do Conde Baltazar de Castiglione, embaixador do Marquês de Mantua, os dois nomes mais representativos da côrte de Leão X. Também entravam no palácio de Dom Miguel da Silva, com o á-vontade que dá a intmidade, o enorme Rafael Sanzio e o dificilmcnte acessível Miguel Angelo Buonarrotti.
Foi o Conde de Castiglione que ofereceu a Dom Miguel da Silva o seu "Il Corteggiano" que, na literatura portuguesa, corresponde à "Côrte na Aldeia", de Francisco Rodrigues Lobo, e que é, sem favor, a obra mais notável de Quinhentos, já pelo seu valor histórico e literário, já porque representa a vida e a cultura daquela sociedade palaciana. Este livro é o livro mais precioso do século XVI, o livro genial que todos os italianos, afeiçoados às boas letras, idolatravam, ao mesmo tempo que conhecem de nome o nosso imortal o imortalizado patrício, ao verem-lhe a simplicissima dedicatória
A Reverendo ed illustre Signor Don Michel da Silva vescovo de Viseo
completamente desguarnecido de adjectivos por serem desnecessários a quem era conhecido pela eminência rara das suas qualidades.
Dom Miguel da Silva era um rei na vida romana, e tanto que o Papa Leão X, com aplauso unânime do Sacro Colégio, e decerto de todo o Corpo diplomático que assim veria um embaixador enrolado na púrpura cardilalícia, quiz fazê-lo Cardeal no consistório de 1516. Mas Dom Miguel não aceitou por entender qne a púrpura deveria enfeitar, como enfeitou, um Infante da Casa de Portugal, o Infante Dom Afonso.
A Leão X sucedeu Adriano VI. E a Adriano VI sucedeu Clemente VII, o Cardeal Julio Medici, coroado a 6G de Novembro de 1523. Era amigo particularissimo do nosso Dom Miguel da Silva. Tão particular que, para lhe presenciar a eleição e adoração dos cardeais, o fez introduzir no conclave por um postigo; e tão dedicado que logo, a 2 de Dezembro imediato, escreveu a El-Rei Dom João III a informar dos grandes serviços e favores prestados por Dom Miguel. Ficou o Papa certo de que a sua amizade, assim manifestada, garantiria em Roma o embaixador português, dando-lhe logo para morada, em Fevereiro de 1524, o palácio de Campo di Marzio, destinado a João de Medici, o que deu à opinião pública a certeza de ser considerado Dom Miguel pessoa de família do Sumo Pontífice.
Dom João III tinha em seu poder uma carta de Dom Miguel da Silva, escrita a 25 de Maio de l523, no pontificado de Adriano VI, pedindo-lhe para recolher ao reino depois de uma estadia de 10 anos; e desconfiado, Dom João, de que esta amizade pontifícia levaria Dom Miguel à púrpura cardinalícia, ordenou-lhe o regresso ao reino, a cuja ordem Dom Miguel respondeu, a 8 de Julho de 1525, a dizer que partiria se bem que com grande perda da sua fazenda e desarranjo da sua casa.
O desgosto de Clemente VII foi imenso. Vêem-se lágrimas na correspondência do Pontífice para D. João III àcerca de Dom Miguel. Em Breves sucessivos que começaram a 7 de Julho de 1525, a nota dominante é o desgosto do vêr sair Dom Miguel, o amigo predilecto de Leão X, o embaixador dedicado a El-Rei que, por amor dêle, recusara a púrpura cardinalícia, êle que era “digno de se assentar na cadeira de São Pedro”. E já que o não deixava ficar, pedia-lhe, para bem da Igreja e da Pátria, que, ao menos em Portugal, lhe fossem dadas as honras que merecia, a mais alta dignidade junto de sua pessoa, o cargo do escrivão de puridade, equivalente hoje a ministro do Interior, lugar herdado de seu pai e conquistado por êle nos campos da batalha.
Dom João III ensurdeceu aos rogos pontifícios, e Dom Miguel houve de deixar pesaroso Roma, a cidade na qual tinha sido o centro e o astro de primeira grandeza da côrte papalina, e, debulhado em lágrimas, diz adeus ao seu grande amigo Clemente VII que jamais o esquecerá.
Em Lisboa Dom Miguel foi nomeado comendador e prior perpétuo do mosteiro de Landim dos cónegos regrantes, abade de Santo Tirso em Riba de Ave, e escrivão de puridade, cargo que desempenhara seu pai, e depois seu cunhado o 1º Conde de Linhares, e mais tarde bispo de Viseu, sucedendo a Dom Frei João Chaves. Em Viseu celebrou Sínodo Diocesano, deu, a 16 de Outubro de 1527, Constituições, instituiu o arciprestado da catedral, mandou construir o claustro da Sé, mandou fazer as cadeiras do côro superior, e ampliou o ornou a quinta da Mitra, chamada de Fontelo.
Mas a vida em Lisboa deveria constituir para êle um enorme desapontamento. Para êle e para os outros. A vida da capital portuguesa, em todos os aspectos - religioso, social, literário, artístico e até político - para êle, com uma formidável bagagem de cultura altissima e de refinadissima civilização, deveria ser uma autêntica pelintrice. Os seus homens, com as suas miudezas, as suas chinezices, os seus ódios grandes e interesses mesquinhos e invejas maiores, eram totalmente bem diferentes de todos aqueles astros que brilhavam nas salas dos palácios de São Marcos e do Vaticano, cheios de grandes ideias, providos de máxima elegância e de máxima generosidade que, por terem vivido naquele quarto de século, ficaram definitivamente com o nome gravado na história do humanismo. Não podia encontrar, em Lisboa, com tôdas as naus da India e carregações do Brasil, com tôda a pimenta e especiarias orientais, o seu clima próprio, enfim o seu paraíso onde, mais e melhor, se sentissem á-vontade as suas primorosas qualidades de diplomata e requintado artista. Por outro lado, os homens de Lisboa haveriam de considerá-lo um ser suspeito, um homem do outro mundo, apto a ser incompreendido, e por isso alvo de todas essas coisas de que Portugal é abundante e fértil quando se trata de um homem acima do estalão geral ou de um homem que, por isto ou por aquilo, pode magoar e ferir interesses remotos ou próximos. Ele inadaptavel ao meio; e o meio inadaptavel a ele.
Naturalissimo que o Bispo de Viseu, aborrecido com as intrigas da Côrte e com o desempenho do seu cargo de escrivão da puridade (mais de nome que de facto) exultasse com a hipótese de voltar a Roma, e rejubilasse com a carta saudosa de Clemente VII, escrita, na prisão do castelo de Sant'Angelo, consequencia dolorosa do inaudito e selvagem saque de Roma, feito pelos soldados de Carlos V, e datada a 12 de Julho de 1527, na qual se lê este periodo de amizade indefectivel: «Haja o que houver, Nós persistimos em querer-te bem, como sempre te quizemos».
Desde então reiniciou-se reciproca correspondência na qual se vê claramente uma ideia fixa: em Roma e para Roma, Dom Miguel da Silva.
Mas... o Pontífice Clemente VII morreu a 25 de Setembro de 1534.
Ao Papa Clemente VII sucedeu Paulo III, a 12 de Outubro do mesmo ano, o Cardeal Farnese que era compadre de Dom Miguel da Silva, pois que o nosso Dom Miguel era padrinho de um neto seu, ou o Cardeal Alexandre ou o Cardeal Guido Ascanio Sforza, porque o Papa Paulo III contraira matrimonio e enviuvara antes de ser eclesiastico. Vai ser o novo Pontífice que ha-de fazer Cardeal o nosso Dom Miguel da Silva, um prestígio que resistiu ao tempo e ao espaço, atravessou tres pontificados e aguentou-se firme, vigoroso e magnifico, não obstante a distancia respeitavel de Portugal e o movimento fulgurante e fascinante da côrte mais exigente da Europa - a côrte da renascença papalina.
O pretexto foi o Concilio que se pretendia realizar para valer às desgraças da reforma do protestantismo.
Dom Miguel, na qualidade de Bispo de Viseu, foi convidado para tomar parte no Concilio. Nem respondera ao convite, nem tinha aparecido. Paulo III, a 22 de Maio de 1538, mandou-lhe um Breve, cheio de indignação pela sua atitude inerte e ordenou-lhe que imediatamente se puzesse a caminho. Este Breve, escrito em Nice, foi em Portugal interpretado por pessoa de bons serviços prestados á historiografia, como a prova de que Dom Miguel em um réprobo para o Sumo Pontífice. E, no entanto, este Breve que dá a impressão de estar Paulo III irritadissimo e em absoluto desagrado com a pessoa do bispo de Viseu, era a santa irritação da amizade de quem não vê de perto quem se quer, ou melhor foi uma arma excelentissima, dada a Dom Miguel, para dela se servir junto de Dom João lII, um forte motivo para êle pleitear a saída do reino. Porque El-Rei não queria contactos directos e imediatos de Dom Miguel com a côrtc romana para o afastar do perigo do cardinalato, perigo de que se vira livre nos pontificados de Leão X e Clemente VII.
Com o Breve pontifício na mão, o bispo de Viseu pediu licença ao Rei que o aconselhou a fingir-se doente. Que não, resistiu o bispo. Iria. Era a sua obrigação.
O tempo passa. No Consistório de 19 de Dezembro de 1539, Paulo III, com o aplauso de todo o Sacro Colégio, criou-o Cardeal, mas in petto. Quer dizer: criou-o. mas não o publicou, à espera da oportunidade. Não será ousadia presumir que o Sumo Pontífice lhe fizesse saber que já era Cardeal porque Dom Miguel declarou a El-Rei a obrigação de consciencia de ir na qualidade de bispo a tomar parte no Concilio Ecuménico e Universal.
Diante da insistencia de Dom Miguel, Dom João III ordenou que o prendessem e o encerrassem numa fortaleza. Mas não chegou a tempo. Dom Miguel fugiu de Viseu, a 22 de Julho de 1540, acompanhado de Antonio Godinho e do arcediago Manuel da Paz. E, chegado a Italia, o Sumo Pontífice, enquanto não vinha a oportunidade de o declarar membro do Sacro Colégio, deu-lhe a honra altissima de o nomear Legado junto da República de Veneza. Impossível a Paulo III dar ao seu velho amigo e compadre prova de maior apreço do que fazê-lo seu representante diplomático numa cidade e numa nação em pleno fastígio e em plena gloria, como era Veneza, senhora e dominadora. do Adriático e do Mediterraneo.
Não se contam aqui os processos de que Dom João III se valeu para fazer regressar a Portugal o bispo de Viseu. Ele são emissarios com cartas blandiciosas, êle são pessoas compradas para o prende r ou assassinar, êle são representantes diplomáticos que agem junto dos principes, êle é o embaixador Cristóvão de Souso que vai de Roma a Ferrara e a Veneza para o convencer ao regresso a Portugal, êle é o próprio Dom João III que escreve ao Papa sobre a saída de Dom Miguel da Silva.
A tudo e a todos Dom Miguel resistiu, ficando em Veneza durante o ano de 1541 ; a tudo e a todos resistiu o Santo Padre até que em 2 de Dezembro, o publicou Cardeal que havia reservado no último consistório, dando-lhe o chapeu cardinalicio no dia 23 de Janeiro de 1542, fechando-lhe a boca no dia 27, e dando-lhe,o titulo dos Santos XII Apóstolos no dia 6 de Fevereiro. É que o Papa “estava obstinado em o fazer Cardeal”, disse para Lisboa o Cardeal Santiquatro, protector da nação portuguesa. É que devia premiar “a singular prudência, doutrina, gravidade e peso dos anos” escreveu Paulo III ao Rei de Portugal. E que o Pontífice «devido à sua muito grande experiência de negócios, resolvera fazer o que os seus antecessores tinham pensado: criar e publicar Dom Miguel da Silva Cardeal da Santa Igreja Romana», elucidou o Cardeal Alexandre Farnese, Secretário de Estado, a Mons. Luiz Lippomano, Núncio Apostólico em Lisboa.
Muito grande sob todos os aspectos, deveria ter sido o grande Bispo de Viseu, para ser como foi, a grande preocupação de tres Papas que sucessivamente teimaram e porfiaram em fazer cardeal um homem que não contava com o aplauso da côrte de Lisboa, nem com a boa vontade de EI-Rei apesar de ser o colaborador de sempre na obra urgente do Concilio de Trento!
Logo que se fez a publicação do cardinalato de Dom Miguel, o embaixador Cristóvão de Sousa protestou junto do Pontífice e ameaçou-o de sair de Roma. Iguais protestos e ameaças fez El-Rei ao Papa e ao Cardeal Santiquatro. E ao mesmo tempo, a 23 de Janeiro de 1542, Dom João III publicou um decreto a desnaturalizá-lo, a despi-lo de todos os ofícios e benefícios, a privá-lo da liberdade de testar, a confiscar-lhe os haveres, a roubar-lhe o sagrado direito de se corresponder com a família e os portugueses, estendendo todas estas penas a todos os que o acompanhassem, lhe escrevessem e lhe mandassem dinheiro. A este decreto Dom Miguel da Silva respondeu desmentindo El-Rei dos motivos apresentados e protestando contra as régias sanções. É um documento admiravel que inseri no 1º volume do «Portugal no Concilio de Trento» que põe a limpo as intrigas da côrte lisboeta, a má fé dos áulicos de EI-Rei, o ciume e a inferioridade régia diante do prestígio incontestavel do novo Cardeal.
O decreto infeliz que faz lembrar o de Pombal contra os jesuitas, foi logo aplicado na pessoa de Dom Jorge da Silva sobrinho do Cardeal. Por ter tido relações epistolares com o tio, foi aprisionado na Torre de Belem de onde o tirou, em Outubro de 1543, a influencia de Dona Maria em vesperas de partir para Castela, sendo logo desterrado, primeiro para Mazagão e depois para Arzila.
(Conclue no próximo número)
por Mons. José de Castro
(Da Academia Portuguesa de História)
in "Beira Alta", vol. IV, fascículo IV, (4º trimestre), 1945
Iniciaram-se, no dia 13 do corrente, em todo o mundo católico, as festas do 4º Centenário do Concílio de Trento que infelizmente não terão o brilho projectado pelo actual Pontífice Pio XII, devido às preocupantes circunstâncias do momento. E eu que há muito tempo quero bem à gente desta diocese, e por isso mesmo à diocese desta gente, gosto de ter a honra e o prazer de vir aqui discorrer àcerca de uma personagem de relêvo máximo na vasta e nobre galeria dos bispos desta histórica cidade, conhecido nos fastos pontifícios e romanos pelo nome de «Cardeal de Viseu».
Não se trata, evidentemente, do Cardeal Gil que de cónego da catedral subiu à púrpura do Sacro Colégio, nem muito menos do infeliz Dom Luiz do Amaral, cardeal do anti-papa Felix V, deposto da igreja de Viseu pelo grande pontífice Eugénio IV, aos quais muito se referiu António de Macedo na "Lusitania infulata purpurata". O Cardeal de Viseu, por antonomásia, é o bispo Dom Miguel da Silva, eleito a 25 de Novembro de 1526, pelo Papa Clemente VII, após a morte de Dom Frei João Chares. É aquele grande perseguido de El-Rei D. João III, a maior figura que tivemos lá fóra no século XVI, e sem dúvida a maior que em todos os tempos tivemos, exceptuando, já se vê, o nosso pontífice João XXI, na capital do mundo católico. Perseguido só por EL Rei? Também diminuido e caluniado pelos cronistas e historiadores. E fui eu, com grande satisfação o digo, que o arranquei ao pó dos Arquivos do Vaticano, ressuscitandn-o tal qual foi: o príncipe dos humanistas do tempo, o conquistador da intimidade de cinco Papas, o Bispo de Viseu julgado digno de se assentar no sólio pontifício.
O Cardeal de Viseu nasceu, em 1480, na cidade de Éver (Évora), filho de D. Diogo da Silva e Menezes, aio de D. Manuel quando duque de Beja, e era sobrinho carnal de dois santos: o Beato Amadeu (no século João da Silva) fundador de um ramo da Ordem Franciscana, e a Beata Beatriz da Silva, fundadora das Irmãs Concepcionistas, a primeira congregação religiosa, instituída para celebrar o privilégio da lmaculada Conceição de Nossa Senhora.
Paris, Siena e Bolonha foram as Universidades deslumbradas pelo talento de Dom Miguel, onde foi o primeiro entre os primeiros e onde pôde atar amizades com os futuros cardeais Paulo Jovio, Pedro Bembo e Tiago Sadoleto, sendo um príncipe entre os literatos, poetas e artistas como Beroaldo Junior, Guerino Veronesi, Parrhasio Consentini e Nicolau Perotti.
Graduado e laureado, regressou a Portugal. E Dom Manuel, em 1513, achou bem nomeá-lo embaixador junto de Leão X para, em seu nome, assistir ao Concílio Lateranense. principiado por Júlio II, em 1512, e concluído em 1517, sendo desta maneira o segundo embaixador com caracter permanente, depois do Dr. João de Faria, companheiro de Tristão da Cunha na embaixada do elefante ao Papa Leão X.
Partiu para Roma em 1513, assinou as actas das sessões do Concílio de 19 de Dezembro de 1516 e de 16 de Maio de 1517; e tanta impressão causou logo na côrte pontifícia que o Papa, a 27 de Fevereiro de 1515, se congratulou com Dom Manuel por lhe ter enviado um "embaixador optimo, cheio de bondade, de prudencia e inteligencia", êle quo fôra encarre gado de pedir o estabelecimento da Inquisição nas mesmas condições em que fora concedido à Espanha.
Em Roma, na esquina do palácio Fiano, habitado por Dom Pedro Melo Breiner em 1819, e pelo Conselheiro Miguel Martins Dantas desde 1896 a 1910, existe uma lápide a recordar o Arco di Portugallo que ligava as duas partes do palácio do em aixador Dom Miguel da Silva. Arco e palácio derrubados quando houve de se alargar a actual Rua de Humberto I.
Dom Miguel da Silva que era de "excelente índole e de sublime engenho", segundo Manuel Caetano de Sousa, que fôra "um dos homens mais sábios e eruditos do seu tempo", no dizer de Fonseca, que era "tão erudito nas humanidades como douto nas elegancias da latinidade, insigne na poesia, celebérrimo na matemática e versado em linguas e ciências" no conceito de Cardoso, teve a honra de vêr, com insistencia nos salões da embaixada, os grandes nomes da renascença italiana, de ser cortejado pelo Cardeal Medici de Florença, filho de Lourenço o Magnífico, de Piccolomini de Siena, dos príncipes Colona e Orsini, dos Cardeais Coltona, Petrucci, Agostinho Trivulzi, Santa Cruz e del Monte.
Ao génio de Tiziano, seu amigo de coração, ofereceu versos que tinham a magestade de Virgílio e a agudeza de Marcial; e ao Cardeal Farnesi, mais tarde Papa Paulo III, compoz um epigrama de tal merecimento literário que o Senado Romano o mandou gravar no mármore do salão nobre do Capitólio e que, ainda hoje, reclama os aplausos dos maiores e mais exigentes latinistas do mundo. Não há outros versos latinos no Capitólio. Epigrama e nome de Dom Miguel da Silva lá estao a chamar a atenção dos visitantes de todo o universo.
No palácio do Arco di Portogallo viviam como em sua casa o poeta florentino João Rucellai, o poeta romano Marcantonio Flamino, o grande humanista Giano Parrhasio, o poeta bucólico Guido Postumo Silvestri, o publicista Scipião Ammirate e o talento omnímodo de Leonardo de Vinci que lhe cedeu o seu bôbo de côrte, Tomás Masini de Peretola; e palpitava a admiração entusiasta de Alberto Pio di Carpi embaixador do Imperador, e do Conde Baltazar de Castiglione, embaixador do Marquês de Mantua, os dois nomes mais representativos da côrte de Leão X. Também entravam no palácio de Dom Miguel da Silva, com o á-vontade que dá a intmidade, o enorme Rafael Sanzio e o dificilmcnte acessível Miguel Angelo Buonarrotti.
Foi o Conde de Castiglione que ofereceu a Dom Miguel da Silva o seu "Il Corteggiano" que, na literatura portuguesa, corresponde à "Côrte na Aldeia", de Francisco Rodrigues Lobo, e que é, sem favor, a obra mais notável de Quinhentos, já pelo seu valor histórico e literário, já porque representa a vida e a cultura daquela sociedade palaciana. Este livro é o livro mais precioso do século XVI, o livro genial que todos os italianos, afeiçoados às boas letras, idolatravam, ao mesmo tempo que conhecem de nome o nosso imortal o imortalizado patrício, ao verem-lhe a simplicissima dedicatória
A Reverendo ed illustre Signor Don Michel da Silva vescovo de Viseo
completamente desguarnecido de adjectivos por serem desnecessários a quem era conhecido pela eminência rara das suas qualidades.
Dom Miguel da Silva era um rei na vida romana, e tanto que o Papa Leão X, com aplauso unânime do Sacro Colégio, e decerto de todo o Corpo diplomático que assim veria um embaixador enrolado na púrpura cardilalícia, quiz fazê-lo Cardeal no consistório de 1516. Mas Dom Miguel não aceitou por entender qne a púrpura deveria enfeitar, como enfeitou, um Infante da Casa de Portugal, o Infante Dom Afonso.
A Leão X sucedeu Adriano VI. E a Adriano VI sucedeu Clemente VII, o Cardeal Julio Medici, coroado a 6G de Novembro de 1523. Era amigo particularissimo do nosso Dom Miguel da Silva. Tão particular que, para lhe presenciar a eleição e adoração dos cardeais, o fez introduzir no conclave por um postigo; e tão dedicado que logo, a 2 de Dezembro imediato, escreveu a El-Rei Dom João III a informar dos grandes serviços e favores prestados por Dom Miguel. Ficou o Papa certo de que a sua amizade, assim manifestada, garantiria em Roma o embaixador português, dando-lhe logo para morada, em Fevereiro de 1524, o palácio de Campo di Marzio, destinado a João de Medici, o que deu à opinião pública a certeza de ser considerado Dom Miguel pessoa de família do Sumo Pontífice.
Dom João III tinha em seu poder uma carta de Dom Miguel da Silva, escrita a 25 de Maio de l523, no pontificado de Adriano VI, pedindo-lhe para recolher ao reino depois de uma estadia de 10 anos; e desconfiado, Dom João, de que esta amizade pontifícia levaria Dom Miguel à púrpura cardinalícia, ordenou-lhe o regresso ao reino, a cuja ordem Dom Miguel respondeu, a 8 de Julho de 1525, a dizer que partiria se bem que com grande perda da sua fazenda e desarranjo da sua casa.
O desgosto de Clemente VII foi imenso. Vêem-se lágrimas na correspondência do Pontífice para D. João III àcerca de Dom Miguel. Em Breves sucessivos que começaram a 7 de Julho de 1525, a nota dominante é o desgosto do vêr sair Dom Miguel, o amigo predilecto de Leão X, o embaixador dedicado a El-Rei que, por amor dêle, recusara a púrpura cardinalícia, êle que era “digno de se assentar na cadeira de São Pedro”. E já que o não deixava ficar, pedia-lhe, para bem da Igreja e da Pátria, que, ao menos em Portugal, lhe fossem dadas as honras que merecia, a mais alta dignidade junto de sua pessoa, o cargo do escrivão de puridade, equivalente hoje a ministro do Interior, lugar herdado de seu pai e conquistado por êle nos campos da batalha.
Dom João III ensurdeceu aos rogos pontifícios, e Dom Miguel houve de deixar pesaroso Roma, a cidade na qual tinha sido o centro e o astro de primeira grandeza da côrte papalina, e, debulhado em lágrimas, diz adeus ao seu grande amigo Clemente VII que jamais o esquecerá.
Em Lisboa Dom Miguel foi nomeado comendador e prior perpétuo do mosteiro de Landim dos cónegos regrantes, abade de Santo Tirso em Riba de Ave, e escrivão de puridade, cargo que desempenhara seu pai, e depois seu cunhado o 1º Conde de Linhares, e mais tarde bispo de Viseu, sucedendo a Dom Frei João Chaves. Em Viseu celebrou Sínodo Diocesano, deu, a 16 de Outubro de 1527, Constituições, instituiu o arciprestado da catedral, mandou construir o claustro da Sé, mandou fazer as cadeiras do côro superior, e ampliou o ornou a quinta da Mitra, chamada de Fontelo.
Mas a vida em Lisboa deveria constituir para êle um enorme desapontamento. Para êle e para os outros. A vida da capital portuguesa, em todos os aspectos - religioso, social, literário, artístico e até político - para êle, com uma formidável bagagem de cultura altissima e de refinadissima civilização, deveria ser uma autêntica pelintrice. Os seus homens, com as suas miudezas, as suas chinezices, os seus ódios grandes e interesses mesquinhos e invejas maiores, eram totalmente bem diferentes de todos aqueles astros que brilhavam nas salas dos palácios de São Marcos e do Vaticano, cheios de grandes ideias, providos de máxima elegância e de máxima generosidade que, por terem vivido naquele quarto de século, ficaram definitivamente com o nome gravado na história do humanismo. Não podia encontrar, em Lisboa, com tôdas as naus da India e carregações do Brasil, com tôda a pimenta e especiarias orientais, o seu clima próprio, enfim o seu paraíso onde, mais e melhor, se sentissem á-vontade as suas primorosas qualidades de diplomata e requintado artista. Por outro lado, os homens de Lisboa haveriam de considerá-lo um ser suspeito, um homem do outro mundo, apto a ser incompreendido, e por isso alvo de todas essas coisas de que Portugal é abundante e fértil quando se trata de um homem acima do estalão geral ou de um homem que, por isto ou por aquilo, pode magoar e ferir interesses remotos ou próximos. Ele inadaptavel ao meio; e o meio inadaptavel a ele.
Naturalissimo que o Bispo de Viseu, aborrecido com as intrigas da Côrte e com o desempenho do seu cargo de escrivão da puridade (mais de nome que de facto) exultasse com a hipótese de voltar a Roma, e rejubilasse com a carta saudosa de Clemente VII, escrita, na prisão do castelo de Sant'Angelo, consequencia dolorosa do inaudito e selvagem saque de Roma, feito pelos soldados de Carlos V, e datada a 12 de Julho de 1527, na qual se lê este periodo de amizade indefectivel: «Haja o que houver, Nós persistimos em querer-te bem, como sempre te quizemos».
Desde então reiniciou-se reciproca correspondência na qual se vê claramente uma ideia fixa: em Roma e para Roma, Dom Miguel da Silva.
Mas... o Pontífice Clemente VII morreu a 25 de Setembro de 1534.
Ao Papa Clemente VII sucedeu Paulo III, a 12 de Outubro do mesmo ano, o Cardeal Farnese que era compadre de Dom Miguel da Silva, pois que o nosso Dom Miguel era padrinho de um neto seu, ou o Cardeal Alexandre ou o Cardeal Guido Ascanio Sforza, porque o Papa Paulo III contraira matrimonio e enviuvara antes de ser eclesiastico. Vai ser o novo Pontífice que ha-de fazer Cardeal o nosso Dom Miguel da Silva, um prestígio que resistiu ao tempo e ao espaço, atravessou tres pontificados e aguentou-se firme, vigoroso e magnifico, não obstante a distancia respeitavel de Portugal e o movimento fulgurante e fascinante da côrte mais exigente da Europa - a côrte da renascença papalina.
O pretexto foi o Concilio que se pretendia realizar para valer às desgraças da reforma do protestantismo.
Dom Miguel, na qualidade de Bispo de Viseu, foi convidado para tomar parte no Concilio. Nem respondera ao convite, nem tinha aparecido. Paulo III, a 22 de Maio de 1538, mandou-lhe um Breve, cheio de indignação pela sua atitude inerte e ordenou-lhe que imediatamente se puzesse a caminho. Este Breve, escrito em Nice, foi em Portugal interpretado por pessoa de bons serviços prestados á historiografia, como a prova de que Dom Miguel em um réprobo para o Sumo Pontífice. E, no entanto, este Breve que dá a impressão de estar Paulo III irritadissimo e em absoluto desagrado com a pessoa do bispo de Viseu, era a santa irritação da amizade de quem não vê de perto quem se quer, ou melhor foi uma arma excelentissima, dada a Dom Miguel, para dela se servir junto de Dom João lII, um forte motivo para êle pleitear a saída do reino. Porque El-Rei não queria contactos directos e imediatos de Dom Miguel com a côrtc romana para o afastar do perigo do cardinalato, perigo de que se vira livre nos pontificados de Leão X e Clemente VII.
Com o Breve pontifício na mão, o bispo de Viseu pediu licença ao Rei que o aconselhou a fingir-se doente. Que não, resistiu o bispo. Iria. Era a sua obrigação.
O tempo passa. No Consistório de 19 de Dezembro de 1539, Paulo III, com o aplauso de todo o Sacro Colégio, criou-o Cardeal, mas in petto. Quer dizer: criou-o. mas não o publicou, à espera da oportunidade. Não será ousadia presumir que o Sumo Pontífice lhe fizesse saber que já era Cardeal porque Dom Miguel declarou a El-Rei a obrigação de consciencia de ir na qualidade de bispo a tomar parte no Concilio Ecuménico e Universal.
Diante da insistencia de Dom Miguel, Dom João III ordenou que o prendessem e o encerrassem numa fortaleza. Mas não chegou a tempo. Dom Miguel fugiu de Viseu, a 22 de Julho de 1540, acompanhado de Antonio Godinho e do arcediago Manuel da Paz. E, chegado a Italia, o Sumo Pontífice, enquanto não vinha a oportunidade de o declarar membro do Sacro Colégio, deu-lhe a honra altissima de o nomear Legado junto da República de Veneza. Impossível a Paulo III dar ao seu velho amigo e compadre prova de maior apreço do que fazê-lo seu representante diplomático numa cidade e numa nação em pleno fastígio e em plena gloria, como era Veneza, senhora e dominadora. do Adriático e do Mediterraneo.
Não se contam aqui os processos de que Dom João III se valeu para fazer regressar a Portugal o bispo de Viseu. Ele são emissarios com cartas blandiciosas, êle são pessoas compradas para o prende r ou assassinar, êle são representantes diplomáticos que agem junto dos principes, êle é o embaixador Cristóvão de Souso que vai de Roma a Ferrara e a Veneza para o convencer ao regresso a Portugal, êle é o próprio Dom João III que escreve ao Papa sobre a saída de Dom Miguel da Silva.
A tudo e a todos Dom Miguel resistiu, ficando em Veneza durante o ano de 1541 ; a tudo e a todos resistiu o Santo Padre até que em 2 de Dezembro, o publicou Cardeal que havia reservado no último consistório, dando-lhe o chapeu cardinalicio no dia 23 de Janeiro de 1542, fechando-lhe a boca no dia 27, e dando-lhe,o titulo dos Santos XII Apóstolos no dia 6 de Fevereiro. É que o Papa “estava obstinado em o fazer Cardeal”, disse para Lisboa o Cardeal Santiquatro, protector da nação portuguesa. É que devia premiar “a singular prudência, doutrina, gravidade e peso dos anos” escreveu Paulo III ao Rei de Portugal. E que o Pontífice «devido à sua muito grande experiência de negócios, resolvera fazer o que os seus antecessores tinham pensado: criar e publicar Dom Miguel da Silva Cardeal da Santa Igreja Romana», elucidou o Cardeal Alexandre Farnese, Secretário de Estado, a Mons. Luiz Lippomano, Núncio Apostólico em Lisboa.
Muito grande sob todos os aspectos, deveria ter sido o grande Bispo de Viseu, para ser como foi, a grande preocupação de tres Papas que sucessivamente teimaram e porfiaram em fazer cardeal um homem que não contava com o aplauso da côrte de Lisboa, nem com a boa vontade de EI-Rei apesar de ser o colaborador de sempre na obra urgente do Concilio de Trento!
Logo que se fez a publicação do cardinalato de Dom Miguel, o embaixador Cristóvão de Sousa protestou junto do Pontífice e ameaçou-o de sair de Roma. Iguais protestos e ameaças fez El-Rei ao Papa e ao Cardeal Santiquatro. E ao mesmo tempo, a 23 de Janeiro de 1542, Dom João III publicou um decreto a desnaturalizá-lo, a despi-lo de todos os ofícios e benefícios, a privá-lo da liberdade de testar, a confiscar-lhe os haveres, a roubar-lhe o sagrado direito de se corresponder com a família e os portugueses, estendendo todas estas penas a todos os que o acompanhassem, lhe escrevessem e lhe mandassem dinheiro. A este decreto Dom Miguel da Silva respondeu desmentindo El-Rei dos motivos apresentados e protestando contra as régias sanções. É um documento admiravel que inseri no 1º volume do «Portugal no Concilio de Trento» que põe a limpo as intrigas da côrte lisboeta, a má fé dos áulicos de EI-Rei, o ciume e a inferioridade régia diante do prestígio incontestavel do novo Cardeal.
O decreto infeliz que faz lembrar o de Pombal contra os jesuitas, foi logo aplicado na pessoa de Dom Jorge da Silva sobrinho do Cardeal. Por ter tido relações epistolares com o tio, foi aprisionado na Torre de Belem de onde o tirou, em Outubro de 1543, a influencia de Dona Maria em vesperas de partir para Castela, sendo logo desterrado, primeiro para Mazagão e depois para Arzila.
(Conclue no próximo número)
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