sexta-feira, abril 22, 2005

Dom Miguel da Silva: o "Cardeal de Viseu" (2/2)

O "CARDEAL DE VISEU"

por Mons. José de Castro
(Da Academia Portuguesa de História)

in "Beira Alta", vol. V, fascículo I, (1º trimestre), 1946

(continuação do último número)

Evidentissimo que contra o Cardeal de Viseu estiveram os representantes portugueses em Roma e os frades da confiança régia. Há pouca gente no mundo, disposta a ter consideração pelo sol poente: e há muita gente habilíssima em bater palmas à ferocidade alheia, sobretudo quando esta ferocidade desce de um trono, e o ruído das palmas não é sentido pela vítima, no momento impotente. Isto não é um belo negócio: mas é um negócio, e é o que lhes importa.

Deram-se episódios que são de todos os dias. Pessoas da comitiva e das relações do Cardeal não queriam abandoná-lo, mas não tinham coragem para incorrer no desagrado de El-Rei, e consultavam Cristóvão de Sousa sobre as normas a seguir. Para Lisboa intrigavam com o Cardeal de Viseu, e com o Cardeal de Viseu intrigavam com o Rei. Os que levam fel e trazem fel, os que passam a vida em viagens de ida e volta a embrulhar e complicar a humanidade, constituiam uma raça, capaz de resistir a todas as bombas atómicas. . .

Dom João III quiz que Dom Miguel fosse expulso de Roma e se lhe não desse cargo algum fora da capital do orbe católico. O Rei acusou-o de infiel a si e ao Papa, de feito com os judeus contra o suspirado Tribunal da Inquisição. E, para prova, inventaram-se cartas cifradas de Dom Miguel que foram mandadas a Roma e lidas pelo embaixador ao Papa que as ouviu ler, toscanejando e... dormindo, dcpois de, a respeito delas, ter escrito a El-Rei a 10 de Agosto de 1542.

Pergunta-se: Qual o resultado desta campanha difamatória? Que impressão fez em Paulo III esta intriga contra o Cardeal de Viseu? A impressão foi tão profunda que imediatamente o incumbiu de uma altíssima e importantíssima missão diplomática. Carlos V estava em guerra com Francisco I, Rei de França. Esta guerra era o grande obstáculo à realização do Concílio de Trento. Urgentíssima a paz entre os dois reis. E Paulo III valeu-se de dois cardeais de grande merecimento: o Cardeal Tiago Sadoleto que enviou a Paris negociar com o Rei de França, e o nosso Cardeal Dom Miguel da Silva que mandou a Balbastro, perto de Barcelona, a negociar com o Imperador Carlos V. Porque? Por ser o Cardeal Dom Miguel da Silva, «Homem louvadissimo pelo entendimento, pelas humanas letras e pelo seu trato fidalguissimo». Ele partiu de Roma, a 31 de Agosto de 1542, e chegou a Balbastro no dia 4 de Outubro.

O Cardeal Dom Miguel não só procurou estabelecer a paz entre o Imperador e o Rei de França, como foi incumbido de convidar todos os prelados espanhois a tomar parte no Concílio de Trento e de redigir a norma pela qual se deveria reger, o que realmente fez, segundo foi declarado pelo Cardeal Marcelo Cervini, um dos presidentes do Concílio e mais tarde pontífice sob o nome de Marcelo II.

Sendo da maior intimidade de Paulo III, não se ignorava em Roma ser ele conviva frequente nas refeições dos palácios apostólicos, o que naquele tempo significava uma honra excepcionalissima , e toda a Italia o viu sempre ao lado do Pontífice nas suas frequentes jornadas político-religiosas.

Dera-lhe o título cardinalício dos Santos XII Apóstolos a 6 de Fevereiro de 1542. Dali a pouco, a 5 de Fevereiro de 1543, transferiu-o para o título de Santa Praxedes, bem mais rendoso por sinal. A 1o de Junho do mesmo ano, nomeou-o administrador da rica diocese de Massa Maritima, na Toscana, de onde se extraem os mármores de Carrara e de onde, por sua causa, resignara o Cardeal Bernardino Maffei, com latos poderes no governo temporal, como se fora Legado “por causa dos seus grandes merecimentos e virtudes que o Altissimo tão largamente multiplicou na pessoa do Cardeal Dom Miguel da Silva”, como se lê na Bula de nomeação.

Dali a meio ano, de acordo com O Sacro Colégio, nomeou-o Legado das Marcas de Ancona, governador de Forli e Ascoli, uma província rica dos Estados Pontifícios, quase toda ela ao longo da costa azul do mar Adriático: um pequeno Rei e um pequeno Papa. Fez se esta nomeação a 9 de Janeiro de 1544, e, a 19 de Março de 1545, Paulo III nomeou-o Legado da província de Fermo, e, logo a seguir, Legado da maior província dos Estados Pontifícios, a província de Bolonha, a mais importante e a mais dificil, para a qual se exigia um grande tino, uma enorme cultura e especialmente uma enorme elegância social, pois não é de esquecer que Bolonha, na segunda renascença italiana, era sede respeitavel do humanismo, escola do direito romano, laico e juridico, a cidade por excelência das grandes famílias e dos grandes nomes que rivalizavam com as famílias e os nomes da cidade de Florença, a terra natal de Dante Alighieri.

Era uma grande receita que lhe deu para viver com o fausto da côrte romana e de maneira a poder legar à posteridade o magestoso palácio de São Calixto, junto da Basílica de Santa Maria de Trastevere onde hoje está instalada a Sagrada Congregação dos Seminários e das Universidades dos Estudos, construido no tempo em que lhe foi dado o título desta Basílica, o mais rendoso da cidade, a 11 de Dezembro de 1553, depois de ter sido titular de São Marcelo a 27 de Junho de 1552, e de São Pancrácio a 29 de Dezembro do mesmo ano.

Dotado pelo Santo Padre de rendas avultadas, não só construiu o palácio de São Calixto, como, em 1549, pôde comprar uma propriedade agrícola. à beira do rio Tibre, quasi dentro da cidade e com uma residência solene, própria a festas nas quadras primaveril e outoniça que pertencia à ilustre e rica familia Cesi, e junta de outra de Agostinho Chigi, da mais alta categoria romana, pois são de recordar os jantares em baixelas de ouro macisso que se lançavam logo ao rio pelos convivas, como era do protocolo, ignorantes de que no fundo do rio, já de si de aguas amarelas, existia uma rêde para guardar a baixela que, em ocasião noturna, era arrecadada, para servir como nova noutro banquete.

Esta propriedade agrícola, vinha como então se chamava, passou, depois da morte do Cardeal Dom Miguel, a ser do seu grande amigo e colega na diplomacia no tempo de Leão X, o Cardeal Pio di Carpi, como o palácio de São Calixto passou a ser residência dos monges beneditinos, filhos daquela congregação cassinense, aqueles beneméritos frades que ensinaram Portugal a ler.

Apesar destas prebendas e das manifestações de incontestavel riqueza, os diplomatas acreditados em Roma, com acentuado desejo de agradar a El-Rei, diziam para Lisboa que o Cardeal Dom Miguel estava desfavorecido do Pontífice e vivia mergulhado em dificuldades financeiras, ao mesmo tempo que El-Rei escrevia ao embaixador Baltazar de Faria cartas pejadas de ódio ao nosso Cardeal. Nesta altura, a 24 de Março de 1543, era já um odio com cinco anos de idade, portanto um ódio anormal, ou talvez fosse um ódio de natureza diplomática.

Uma explicação: Dom João III, neste episódio de Dom Miguel da Silva, encontrou um grande capital de queixa do qual entendeu tirar juros astronómicos em proveito da vesguissima má vontade contra os cristãos-novos, para os quais pretendia um Tribunal com poderes totalitários, como se diria hoje, e a favor das pretensões aos dinheiros das propriedades eclesiásticas, arrecadados, por esta ou aquela maneira, para este ou para aquele fim, pois que as receitas do erário público não eram de molde a satisfazer as necessidades da nação quer na sua vida interna, quer nas expedições em proveito do nosso domínio colonial ou daquelas que, por amor da fé e contra os infieis, a honra do país exigia avultados sacrificios de vidas e fazendas. Por outro lado, o Santo Padre Paulo III, no meio das hesitações dos Príncipes, a subordinar os interesses gerais do Concílio de Trento aos seus interesses nacionais, tinha necessidade de ser condescendente, tanto quanto e com as possíveis reservas do momento, com Dom João III que, desde a primeira hora e sempre, se mostram, se bem que mais com palavras do que com factos, o príncipe incondicional da vontade pontifícia a respeito do Concílio Ecuménico, Universal.

Só por um grande interesse de ordem politica e diplomática, é que se pode explicar este ódio que parece diferente de todos os ódios, pois em vez de emagrecer com o tempo, ganha com o tempo maior estatura. E os diplomatas portugueses procuram açular este ódio, dizendo coisas terríveis a respeito do seu prestígio sempre diminuido junto do Papa ou da sua calamitosa situação financeira.

Alvejado o Cardeal Dom Miguel em todos os ofícios e benefícios portugueses pelo decreto de desnaturalização e confiscação de todos os bens, ficou impedido de governar, por si ou por outrem, o bispado de Viseu. El-Rei quiz que resignasse a diocese e quiz que fosse preconizado outro, mas nomeado por ele.

Como se resolveu esta questão melindrosa e complicada que brigava com o capricho real ou criava sérias dificuldades à doutrina das liberdades eclesiásticas? Como se desatou este grande problema em que até entrou em cena a prestigiosa intervenção de Santo Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus? Dom João não quiz revogar o decreto contra Dom Miguel, e Paulo III não queria ofensa ao prestígio episcopal. Depois de muitas negociações, chegou-se a esta solução; o Cardeal Dom Miguel resignou no seu querido amigo Cardeal Alexandre Farnese, secretário d'Estado de Paulo III, sendo nomeado administrador e comendador perpétuo da diocese de Viseu e dos benefícios de Dom Miguel em Portugal, destinando as rendas, se bem que a ocultas, ao seu antigo bispo.

Dom João III cantou vitória? Não pode parecer a ninguem grande honra conceder um bispado a um bispo estrangeiro. Vitória para Paulo III? Não parece a ninguem grande honra a de ceder ao Rei na resignação de Dom Miguel. Só ha uma pessoa a cantar vitória: é o Cardeal Dom Miguel da Silva. Ele, antes, agora e depois, gosa o proveito e a honra de ser uma vítima; e estou certo de que esta qualidade de vítima muito concorreria para que, mais e melhor, lhe aproveitassem as suas eminentes qualidadcs nas altíssimas funções que houve de desempenhar.

Morre Paulo III a 10 de Novembro de 1549.

Dom João III pensou logo na candidatura do Cardeal Dom Henrique para o sólio pontifício e interessou nesta eleição o embaixador Baltazar de Faria junto dos Cardeais da Cúria, o embaixador Lourenço Pires de Távora para influir junto do Imperador Carlos V, e o embaixador Braz de Alvide para agir junto do Rei de França.

Com esta tríplice intervenção El-Rei sonhou com o triregno para o irmão, o Cardeal Dom Henrique. E, se em Balbastro e Paris, se pensou numa hora de cortezia ao Rei de Portugal, em Roma ninguem tomou a sério a candidatura do Cardeal de Lisboa, embora fosse considerado papavel o nosso Cardeal Silva. O proprio Pasquino não deixou de o tocar com uma gargalhada inofensiva, como era da praxe aos cardeais de prestígio, nas véspera de Conclave.

Non fate Papa il Cardinale Viseo
Il quale il piú che fasse pedante:
Ognum si faria dar nel Culiseo.


No conclave coube-lhe a cela nº 47, perto da capela sixtina, e o trono era o penúltimo do lado da Epístola. Levou como conclavistas dois portugueses de Viseu, os padres Manuel Correia e Aleixo de Sousa, dois soldados desconhecidos da amizade, dois voluntários do sacrifício que não tiveram medo do decreto de desnaturalização de Dom João III.

Enquanto que o Cardeal Dom Henrique teve o máximo, por cortezia, de 15 votos no dia 13 de Dezembro de 1549, o Cardeal Dom Miguel teve sempre votos para Papa em quasi todos os escrutinios, chegando uma vez a ser votado por 13 cardeais. Se tivera protecção oficial, teria subido, sem duvida, ao sólio pontifício.

Foi eleito o Cardeal João Maria del Monte, que tomou o nome de Julio III, também muito da intimidade do nosso Cardeal que frequentemente o acompanhava nas refeições nos palácios apostólicos, sobretudo e sempre nos dias em que o Papa tomava parte nas festas públicas, celebrando ou assistindo aos pontificais na Basílica de São Pedro.

Era então embaixador de Portugal Dom Afonso de Lencastre que, nas régias instruções, levou encomendado o ódio de Dom João III contra o nosso Cardeal.

Mas uma vez, a 22 de Fevereiro de 1553, nas festas do terceiro aniversário da coroação de Julio III, houve jantar de gala no palácio do Vaticano. Antes houve missa na capela Sixtina. Julio III apareceu de pluvial vermelho, debaixo do pálio' rubro com brocados de ouro, levando na cabeça a tiara preciosíssima onde as gemas e os diamantes raros fisgavam luz pela meiga e doce penumbra onde melhor se relevam as figuras impressionantes do genio de Miguel Angelo no fresco imenso do Juizo Final, diante dos cardeais escarlates de púrpura e alvíssimos de arminhos, dos embaixadores dos príncipes, ricos e coloridos nos seus vestidos de seda e ouro, da sua côrte civil, eclesiástica e militar, a mais hierática e deslumbrante do mundo, e das maiores figuras do patriciado romano onde se registam os maiores condutores da história, e os brazões cardinalícios e papais se misturam com outros de príncipes, marqueses e barões.

Depois da missa o almoço. De um lado, numa mesa solitária e mais alta, o Papa Julio III. Em frente, em mesa comprida e só de um lado, os cardiais e embaixadores. Entre eles o Cardeal Dom Miguel da Silva e o sobrinho de El-Rei, o embaixador Afonso de Lencastre. Dom Miguel, bastante velhinho, mais pequeno pela carga dos anos, de olhos azuis sempre vivíssimos, servidos pelo sorriso mágico que herdara da sua ilustrissima estirpe e da sua larga convivência na Italia.

De certo que os dois portugueses se olharam com simpatia, e talvez a escondessem, por consideração a El-Rei, na máscara de uma fina e gelada cerimónia. Para o Cardeal, aquele diplomata, fossem quais fossem as queixas do seu coração por quem lhe lançara um labeu de infâmia, representava a sua terra com o seu sol divino, com a paisagem de paraiso, aquele glorioso fio da história que o nome da sua família e da sua raça tisnara de vermelho; e, para o diplomata, aquele Cardeal era, apesar do mal rançoso e incompreensivel num homem e num cristão, o amigo íntimo de quatro Papas, o português que fora da sua terra subira mais alto, o Legado de Carlos V, o Senhor de Bolonha e das Marcas, o companheiro de Paulo III nas jornadas italianas, o expoente mais alto da cultura humanística do seu tempo, o centro incontestavel e incontestado dos intelectuais romanos, a pessoa prestigiosa que substituira o Rei de França na homenagem que o Conde de Castiglione lhe prestou com a oferta do «Il Corteggiano».

Estavam ali os dois. Dali a meses, o embaixador Afonso de Lencastre reforçou, junto de Dom João III, o pedido que o Papa Julio III fez, a 22 de Agosto de 1553, de se reconciliar com Dom Miguel, baseado em que Dom Miguel estava nos últimos anos da sua vida. Tinha o nosso Cardeal 73 anos. A idade, os desgostos, o reumatismo gôtoso e sobretudo a dôr de não poder sonhar com o eventual regresso à Pátria que na doença e na velhice, se aferra mais ao coração, deviam acabrunhar-lhe o espírito de seu natural limpidissimo. Velho e aleijado. Se ia a um consistório, não ia a vinte. A' capela sixtina ia duas vezes no ano e sempre amparado. Causava dó o Cardeal. E novamente, a 7 de Setembro seguinte, intercedeu outra vez junto do Rei, dizendo que "embicava muitas vezes e se cuidava que não viveria muito".

Que fez Dom João III diante do interesse duplo do Soberano Pontífice e do Embaixador? Que fez o Rei de Portugal diante de um homem velho, estropiado pelo reumatismo, corcovado pelos anos e pela doença? Que fez Dom João, mesmo admitindo que teve todas as razões e Dom Miguel todas as culpas? Abriu os braços à reconciliação, inspirado pela sua fé cristianissima? Deixou cair dos labios a palavra Paz, o supremo voto que a todos os mortos deseja um cristão ? Permitiu que sete meses passassem sobre o Breve pontifício para dizer que se não lembrava mais de Dom Miguel e que de Dom Miguel lhe não falassem mais.

Se me dizem que Dom João III foi uma pessoa séria, cristã e humana nesta antipática questão do Cardeal de Viseu, eu, pelo menos, declaro que o soberano português tinha ideias erradas do que é seriedade, cristianismo e humanidade. Mas se me dizem que ele foi habil e político e quiçá diplomático na exploração deste material de queixa, eu, repudiando esta habilidade, esta política e esta diplomacia, não digo que não, e confesso que sim, embora sem os entusiasmos de um convicto partidário de Maquiavel.

Não se distanciaram muito na morte Julio III e o Cardeal Dom Miguel. Morreu o Papa a 23 de Março de 1555 de um ataque de febre, e Dom Miguel ainda pôde participar na eleição de dois Papas: Marcelo III e Paulo IV. No dia 5 de Abril os cardiais entraram em conclave: e nele o nosso Dom Miguel com o título de Santa Maria de Trastevere, e no dia 9 foi eleito pontífice o Cardeal Marcelo Cervini com o nome de Marcelo II.

Mas Marcelo II morreu dali a 18 dias, a 27 de Abril de 1555.

Depois outro conclave que se iniciou no dia 15 de Maio. O Cardeal Dom Miguel era então o decano do Sacro Colégio, portanto o chefe da Igreja Católica, sede vacante, até à eleição do Sumo Pontífice que foi no dia 23 de Maio, sendo eleito o Cardeal João Pedro Caraffa que tomou o nome de Paulo IV.

A 12 de Outubro de 1555, o embaixador Dom Afonso de Lencastre escreveu a El-Rei: «Disseram-me que Dom Miguel está muito mal». Foi uma vida que, a pouco e pouco, se foi despegando da terra, uma luz em bruxoleios contínuos até que de todo se apagou no dia 5 de Junho de 1556, com 76 anos de idade. Morreu no palácio de São Calixto, pegado à Basílica do que ora titular e que edificou para estar mais perto de Nossa Senhora, e ao qual deu, pelo lapis de Luiz Cardi, uma fachada bela e severa, aquele estilo nu e grandioso chamado jesuítico. E o seu cadáver, aljotrado pelas lágrimas de alguns criados portugueses e de dois capelães também portugueses. os padres Manuel Correia e Aleixo de Sousa, foi repousar numa sepultura aberta na Basílica vizinha.

Longe da Pátria, proscrito e desnaturalizado pela crueldade de um decreto real, desterrado da terra que sempre teve no coração. a boa e santa e encantadora dedicação dos Zés-Ninguens das nossas aldeias e daqueles dois padres da diocese de Viseu, dar-lhe-iam a ilusão de que morria onde morava o seu espírito porque eram portuguesas as mãos que lhe ageitavam o leito, bem portuguesa, a luz daquelas lágrimas vertidas na agonia, e bem portuguesas também as orações desfolhadas sobre o seu cadáver.

Quantas vezes não entrei eu na Basílica de Santa Maria de Trastevere? Que fôra lá sepultado, garantiam-mo os historiadores e os cerimoniários pontifícios, lidos e relidos por mim pacientemente, vagarosamente. Eu pretendia descobrir a sepultura do nosso Cardeal. E por mais que indagasse, ao longo das naves e por dentro das capelas, o desapontamento era o prémio de tão cuidadosa investigação.

Mas num livro de heráldica tinha visto que o brazão dos Silvas era um leão de pé, empunhando um machado. Novas pesquizas sucedidas de novos desapontamentos. A sepultura tinha desaparecido, cuidava eu. Mas numa tarde, a chuva, impertinente e continuada, obrigou-me a entrar e demorar no pórtico da Basílica, forrado de lápides, coladas às paredes, lições e documentos de valor arqueológico. Um raio de sol, coado pela chuva, foi cair numa lápide de mármore branco que tem impertigado o leão heráldico dos Silvas, tendo na base tres letras maiusculas: M. C. S. Miguel, Cardeal Silva. Estava, e está no pórtico da Basílica, ao lado esquerdo, a sepultura do nosso imortal patrício, talvez o Bispo de Viseu mais ilustre de todos os seculos. Só tres iniciais? Só uma inicial tem Napoleão Bonapartc no seu túmulo dos Inválidos em Paris. Os grandes homens não necessitam de grandes letreiros, e os grandes prestígios não precisam da prosa derramada e sentimental dos epitáfios.

E quantas vezes não entrei também no palácio de São Calixto? E confesso que, ao subir-lhe, as escadas altas e ao percorrer-lhe salas em séries, como no Congresso Jurídico Internacional a celebrar o 7.° centenário das Decretais de Gregorio IX, sentia que tudo aquilo tinha voz, que aquelas pedras me tratavam como a patricio, que tudo aquilo era da minha casa, tudo era da minha família. Ao passo que todos viviam os minutos do presente, o meu espírito passeava pelo ano de 1556 e parecia-me viver as horas vividas por aquele grande português que nem liberdade teve em Roma para deixar a Santo Antonio dos Portugueses os seus haveres e os seus livros.

Abençoadas pedras de São Calixto! Como eu as via, as ouvia e as compreendia! À luz de ouro do céu romano, ao som do repuxo da água a cantar na taça larga, e sobre quatro séculos de história, parecia que surgia a meus olhos a sombra do Cardeal Dom Miguel da Silva que em Roma se enfiou pela imortalidade a dentro para nunca mais sair, e imaginava a dôr da boa e pobre gente portuguesa ao ver-se fora daquele palácio, testemunha de tanta dôr em conta-gotas de saudade. E depois, vendo, do outro lado do Tibre, o palácio maravilhoso da casa Farnese, um dos mais apreciados palácios romanos, apenas inferior aos da Chancelaria e do principe Porlonia, onde se instalou a embaixada francesa junto do Quirinal, sentia-me consolado; eu recordava que os livros do Cardeal Dom Miguel foram deixados ao Cardeal Alexandre Farnese que tinha como seu bibliotecàrio outro eborense como ele, ilustríssimo e de fama imorredoura, o cónego da Catedral de Evora, o sempre grande Aquiles Estácio.

Se ao Cardeal Dom Miguel da Silva se negou em Roma a admiração dos literatos e dos estudiosos, temos de confessar que, em Portugal, a justiça da história chegou muito
tarde; onze anos antes de cumprir o quarto centenário da sua morte. Os cronistas régios eram turíbulos permanentemente acesos para enrolar nas espirais dos elogios os nossos reis. Não tinham a seu cargo a coragem de dizer a verdade nua e crua que, por ser nua, nem sempre é agradavel, e, por ser crua, é dificil de ser mastigada e engulida. Alem disso Dom Miguel da Silva, se bem que Cardeal, era um padre que não podia interessar muito aos historiadores de pensamento contrário, tivessem sido eles liberais ou republicanos, embora o grande Alexandre Herculano lhe tivesse consagrado palavras de indiscutivel simpatia. Vieram depois, os chamados revisores da história. E, para estes, o Cardeal Dom Miguel não passou de um ambicioso, desleal e rebelde às ordens e desejos de um Rei.

Mas a verdade é que todos estes historiadores, azuis, vermelhos ou brancos, não tiveram à mão os materiais para um trabalho de reconstituição histórica, o que em muito os desculpa.

Eles não tiveram, como eu, a oportunidade de procurar e encontrar os materiais inéditos que se acham disseminados no livro «Portugal no Concilio de Trento; e com eles fiz esta modesta conferência que me parece ter envol vido em luzes novas, certas e justas, o Cardeal de Viseu. Os Arquivos do Vaticano são, pois, os beneméritos deste trabalho de reivindicação que se me afigura próprio a provocar, nesta hora de ressurgimento bairrista, uma duradoura manifestação de apreço.
Infelizmente não sou viseense, e sou um pobre de Cristo, duas qualidades, ambas negativas que se não ageitam à realização de uma ideia se bem que bela e adquada. Elas permitem-me apenas a liberdade de sonhar. Com que?

Principiam agora as comemorações do quarto centenário do Concílio de Trento. Cometeria a Câmara Municipal de Viseu um pecado se désse a uma praça ou a uma rua o nome do seu bispo Cardeal Dom Miguel da Silva, que por amor ao Concílio, foi Legado de Paulo III ao Imperador Carlos V? A 5 de Junho de 1956, daqui a onze anos, celebrar-se-á o quarto centenário da morte do grande Cardeal. Será feio e sem propósito que o patriotismo viseense lhe inaugure uma estátua como a deu a Dom Antonio Alves Martins, esse grande bispo, caluniado por amigos e inimigos, cuja memória está a reclamar um processo de revisão histórica?

Eu que tenho pelo Cardeal de Viseu uma amizade quase pessoal, talvez pelo muito trabalho que me deu, limito-me a dizer esta coisa quase digna de Mr. de la Palisse: Viseu entrou na imortalidade romana ligado à pessoa do Cardeal Silva, e o Cardeal Silva entrou na história com o nome de Cardeal de Viseu.
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