Gil Vicente, beirão (1/2)
por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume II, Fascículo I, 1943, (1º trimestre)
O debatido problema da naturalidadc dc Gil Vicente não teve até hoje solução definitiva.
Se bem que já de todo fôssem arredadas as hipóteses de Lisboa e Barcelos, o mesmo não aconteceu com cidade de Guimarães, considerada, por muitos historiadores da nossa literatura, como sendo o berço do genial fundador do teatro português.
Ultimamente uma corrente se tem orientado no sentido de considerar Gil Vicente, não como minhoto, mas como um glorioso filho destas terras da Beira.
É no número dos que assim pensam que eu cnfileiro, tam forte é a convicção que neste sentido no meu espírito se formou.
Assim o pensa, também, o ilustrc publicista viseense, Dr. José Coelho, quando no seu livro, "Memórias de Viseu, (Arredores)" a pag. 406, dá Guimarães de Tavares, também conhecido por Guimarães da Serra, como terra da naturalidade do fundador do teatro nacional.
Da mesma forma os senhores Francisco Torrinha e Augusto Pires de Lima, no estudo com quc antecederam a Farsa de Inêz Pereira, se inclinam para a mesma opinião.
Não havendo documento comprovativo que nos indique a naturalidade de Gil Vicente, o que levou alguns críticos a dizer que não se podia passar de conjecturas, a que elementos elevemos recorrer para indagação dêste problema biográfico?
Eu creio que o mais seguro é o estudo da obra do escritor, pois dcla se poderá extrair, arrancar a verdade dum facto que a investigação histórica não nos permitiu alcançar.
Os processos da crítica cientifica são os únicos que no caso presente téem de ser aplicados à obra do escritor, pois, por meio deles, pode emergir o claro indício ou detalhe que se pretende averiguar.
Por combalidos que pareçam os métodos do autor da História da Literatura Inglesa, alguma coisa permanece intacta e que é a relação entre o ambiente em que a alma do artista, desde a sua tenra idade, se criou e dcsenvolveu e a obra por êle produzida.
Êste ambiente em que o artista se formou e que dcpois se vai refletir nas suas criações, chamado por Taine acção da região ou do habitat, não pode de forma alguma ser pôsto de parte nas investigações que se pretendam fazer sôbre a terra onde o escritor nasceu ou região em que viveu.
Foi por êste processo de análise que Sainte-Beuve, nas suas «Conferências de Segunda-feira», mais rigorosamente determinou a reacção do meio e assim a sua influência sôbre a obra dos seus biografados.
Podem pôr-se de parte, se quizerem, outros elementos sociológicos, apontados por Tainc na sua Filosofia da Arte, mas o que é indiscutível e por isso não sujeito a dúvidas, são as influências que o artista recebe do meio em que iniciou a sua vida de relação.
Sem dúvida, tôda a sua emotividadc começa logo na adolescência a embeber-se nas fortes ou delicadas paisagens quc o cercam, a sentir o efeito dos seres que o rodeiam e até do próprio ar que respira.
A receptibilidade da célula nervosa é, nesse período da formação indivíduo, dum tal poder absorvente que as imagens, aí recolhidas, ficam a alimentar todo o poder evocativo de que o artista é capaz e, mais do que êste, o seu poder descritivo, tam preso na retina da sua memória permanece o cenário que o rodeou.
Podem alargar-se novos horisontes à vida do criador da Arte e assim, pela variação de meios, êle dar aspectos diferentes à sua vibratilidade sensorial, mas nem por isso, a sua sensibilidade deixou, de estar enraizada ao ambiente donde exhauriu a fôrça emotiva das suas primeiras criações estéticas.
Postas em esquema as linhas gerais do influxo do meio sôbre o indivíduo, façamos uma análise das obras de Gil Vicente que mais interessem ao nosso ponto dc vista. Ninguém contesta e assim ninguém põe em dúvida que uma grande parte dos autos e farsas de Gil Vicente téem por inspiração a província da Beira onde êle vai buscar as suas personagens, desde o rude pastor da serra até aquela humilde guardadora de patos que, no Auto da Fama, descreve as glórias e façanhas do povo português.
A ilustre vicentista D. Carolina Michaelis, apesar de o fazer oriundo de Guimarães do Minho, não deixa de dizer que êle "foí rusticamente criado na Beira."
Admitindo a hipótese de êle ter vivido, na sua infância, entre a gente rude desta provincia, por que não tirar desta afirmação a sua lógica ilação, isto é, de que aí também deveria ter nascido?
Os novos elementos que vamos adiante apresentar parecem não deixar dúvida a tal respeito.
Carolina Michaelis estava presa ainda à ideia de Guimarães do Minho e, não podendo negar a influência que o ambiente beirão exerceu sôbre o artista, limitou-se a dizer que êle para aí quando criança deveria ter sido levado.
Não ha dúvida quc todos os escritores confessam as íntimas relações que existem entre Gil Viccntc e esta província e de que as suas obras são um nítido e claro espelho, quer sob o ponto de vista de linguagem, quer sob o ponto de vista etnográfico e até folclórico.
Aubrey Bell, como afirma Queiroz Veloso, na História da Literatura Portuguesa, também diz que a Beira ocupa um lugar à parte nas suas obras.
"Conhece todos os seus produtos, as diferentes especialidades desta ou daquela terra. Como que a traz sempre no pensamento."
Para o demonstrar não ha senão, agora, fazer referência a muitos dos seus autos e farsas.
Na Comédia do Viúvo, o compadre falando na dureza da sua mulher para a deprimir, faz alusões à vegetação da Serra da Estrêla.
No Auto Pastoril Português três pastores da Serra da Estrêla entram em cena com as suas três namoradas, e Vasco Afonso que os apresenta diz:
A Cristaleira
E o almotacel pequeno
Bailarão á derradeira
E tanger-lhe-ha o Moreno
Que sabe os bailos da Beira
Claro está que é às variadas danças desta região que Gil Vicente alude, pois era natural que as conhecesse e que delas tomasse parte na sua mocidade.
Falando dêste auto, Queiroz Veloso diz o seguinte: «Esta peça tem mais valor filológico do que dramático pelos termos que Gil Vicente põe na boca dos pastores beirões que nela entram.»
Essa linguagem era evidentemente a usada na Beira, como foi constatado por Leite de Vasconcelos, quando fez o estudo filológico das obras de Gil Vicente.
Em muitos outros autos é dêste provincianismo que Gil Vicente se serve, como no Auto da Festa, em que, no dizer de Aubrey Bell, «o falar das personagens é caracteristicamente beirão.»
Assim acontece também no Auto da Faa, de que adiante falaremos.
No Auto Pastoril a que nos estamos referindo, ha uma pastora que traz a imagem da própria Virgem no seu feixe de lenha e que "esta lhe tinha dado no sitio da Pena Furada áquem da Virgem da Estrêla".
Haveria alguma capela em que a Virgem fôsse invocada sob o nome de Nossa Senhora da Estrêla, como Gil Vicente não só o deixa ver nesta passagem e em uma ou outra do Auto da Feira?
São perguntas a que responderemos mais adiante.
De tôdas as peças de Gil Vicente é a Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrêla que mais deve merecer detida atenção.
Tôda ela está impregnada da vida desta província, pondo em destaque a riqueza dos seus produtos e até do temperamento amoroso dos seus pastores.
Determinoo logo essora
Ir a Coimbra assi inteira,
Em figura de pastora,
Feita serrana da Beira,
Como quem na Beira mora.
E levarei lá comigo
Minhas serranas trigueiras
Cada qual com seu amigo,
E todalas ovelheiras
Quc andão no meu pacigo.
Tôda a exuberância da riqueza agricola desta região é posta em absoluto destaque.
São os queijos de Seia feitos à candeia, são os bezerros, as ovelhas meirinhas, os cordeirinhos que, no dizer do poeta,
Taes, que em nenhuas serras
Não nas achem tão gordinhas.
São as castanhas de Gouveia, é o leite que tôda a serra produz, êsse leite de que Gil Vicente faz apologia dizendo:
Que tal leite como o meu
Não no ha em Portugal,
Que tenho tanto e tal,
E tão fino Deos m'o deu,
Que he manteiga, e nã sal.
Depois vem a Covilhã, como centro já duma indústria de lanificios, trazendo muitos panos finos que lá se fazem.
Não esqueceram ao poeta as penas das águias riais que vivem, nos altos píncaros da Serra da Estrêla, pois elas servirão para - cabeçais -.
Seguem-se os forros de arminhos que outrá coisa não são do que as finas lãs das brancas ovelhas mcirinhas de Vale de Penados e Monte dos Três Caminhos.
Existem estcs dois lugares Vale de Penados e Monte dos Três Caminhos nesta região? É um ponto que mais adiante se averiguará.
Por último, fala Gil Vicente nas minas de ouro donde el-rei deve mandar extrair êste precioso metal.
Em que sitio da Beira se encontravam essas minas de ouro?
Veremos também adiante se elas existiam ou se não passavam de mera fantasia do dramaturgo.
Para fazer uina ideia nítida do lugar em que se trava o diálogo da serra com Gonsalo, é preciso atender ao facto de dois foliões do Sardoal, que aparecem no fim da peça, serem apontados como sendo lá debaixo, do extremo da montanha, isto é, daquela parte onde os beirões conhecidos pelo nome de ratinhos iam e vão ainda trabalhar o que equivale a dizer que Gil Vicente se refere ao Sardoal que fica perto de Abrantes, a caminho já do Alentejo.
Também para determinação do lugar do diálogo deve ter-se em vista o emprego do adverbio - lá - quando se fala da Covilhã, o que necessàriamente importa a ideia da distância entre êste local e aquela cidade.
Não passe também sem se notar que um dos foliões do Sardoal, canta arremedando os pastores da Serra o que significa diferença de pronúncia que existia entre uns e outros.
Ainda que pareçam de pequena importância estas anotações, creio que elas têem real valor para se fixar o palco onde Gil Vicente fantasiou êste auto e que não é outro senão a sul da Serra da Estrêla e a ela fronteiro. Por outras palavras, Gil Vicente coloca as suas personagens em lugar donde a vista abrange tôda a encosta da Serra que fica voltada para a provincia da Beira Alta.
Sempre Gil Vicente traz dentro do seu coração a Serra de Estrêla que em outras peças lhe continua a servir de tema, como por exemplo, no Triunfo do Inverno.
Com razão Aubrey Bell, referindo-se a êste auto, diz: "O primeiro triunfo obtem-no o inverno nas montanhas da Serra da Estrêla."
De facto, todo o rigor desta estação é aí descrito, por vezes, dentro dum grande lirismo.
Vem agora a propósito falar nas duas farsas passadas, na Beira, a que Gil Vicente deu os nomes de Clérigo da Beira e Juiz da Beira.
A primeira, se bem que seja uma charge ao seu antagonista Sá de Miranda que na Divisa da cidade de Coimbra continuou a ser fustigado pelo dramaturgo, não deixa de nos merecer especial atenção por as personagens serem figuras que se movem dentro do ambiente beirão, como o proprio nome da peça indica.
O facto do c1erigo ir para a caça sem fazer a coroa merece ao filho o seguinte reparo:
Vós haveis de celebrar
Missa de festa em pessoa,
E não fazeis a coroa
Antes que vamos caçar?
Pois, pae, nos haveis d'olhar
Que sois clerigo da Beira,
Porque a gente cabreira
Em tudo quer attentar.
Desta forma, o filho põe em relêvo o espírito religioso beirão que exige dos seus sacerdotes, uma natural compostura externa.
Na Farsa Juiz da Beira, dentro dum espírito de maliciosa graça, é posto em relêvo, no dizer de Queiroz Veloso, "a jocosa caríctatura dos Juizes Ordinários."
Pero Marques é o tipo escolhido por Gil Vicente.
Da Beira ele declara ser no começo da peça, tendo-lhe aí sido dado um julgado por ser casado com Inêz Pereira que lhe lia as Ordenações e lhe ditava as sentenças. Êste pitoresco Juiz que Gil Vicente descreve como tipo da manha popular, tam comum à gente do nosso campo, era, como todo ignorante, balofo e jactancioso. Outra coisa não significa o afirmar que "em Viscu ningucm o contradiz", isto é, que nesta cidade não havia letrado nem corregedor que puzesse em cheque as suas decisões.
Parte da rubrica que antecede esta farsa é do teor seguinte :
"Diz o autor que êste Pero Marques como foi casado com Inez Pereira se foram morar onde êle tinha sua fazenda, que era lá na Beira onde o fizeram Juiz."
Os senhores Francisco Torrinha e Pires de Lima veem na frase - a1i na Beira - a indicação da província donde era Gil Vicente.
Assim dizem: "Aquela palavra - lá - pode interpretar-se como uma simples particula reforçativa, ou como uma fórmula carinhosa de chamar a atenção para um objecto familiar: lá nas Beiras, como se dissesse - lá na minha terra - circunstância que não seria dcsconhecida dos contemporâneos de Gil Vicente."
Com esta farsa tem íntima ligação aquela a que o poeta deu o nome de Inêz Pereira, pois as figuras principais, tanto duma como de outra, são as mesmas.
Na Beira se passa também esta interessante comédia que é pela crítica considerada como das melhores produções do autor.
Pero Marques, com quem Inêz Pereira casa vem mais tarde a ser aquele Juiz que tinha - a sua fazenda lá na Beira, - e de quem sua esperta mulher que "mais preferia asno que a levasse do que cavalo que a derrubasse se torna mentora".
Uma natural correspondência existe, pois, entre as duas peças pela identidade de personagens e identidade de região onde as cenas se desenvolvem.
Da mesma forma, todo o sabor rural de que o Auto da Mofina Mendes está impregnado manifesta sem a menor dúvida o mesmo ambiente beirão.
Onde colocou Gil Vicente as personagcns dêste seu auto?
Basta atender à resposta quc o pastor André dá, quando Payo Vaz lhe pregunta pela Mofina Mcndes:
Mofina Mesdes ouvi eu
Assoviar, pouco ha,
No Valle de João Viseu.
Esse Vale de João Viseu será por nós adiante identificado.
Por agora, notaremos que Trancoso onde Mofina Mendes vai vender o seu pote de azeite, fica na direcção do local que serve de palco a esta comédia.
Diremos ainda que o Auto da Feira, além de sc falar na Virgem da Estréla, se alude às ladeiras da mesma serra, isto é, aos seus íngremes e dec1ivosos caminhos.
No mesmo auto se diz:
Porém bcm vos vimos nós
Quardar bois no Alqueidão.
No Auto da Barca do Inferno fala-se no adro de S. Gião. Se não foi força de rimar que levou o poeta a empregar a expressão - S. Gião - então êle quiz referir-se a um lugar certo que é o adro da igreja de Mangualde que tem por orago S. Julião que, outrora, se designava por S. Gião.
No Auto da Barca do Purgatório ha um pastor que se rcfere ao Vale de Cobelo e Vilarinho. São lugares certos? Creio que sim, como adiante se verá.
Mas ponhamos aqui ponto, pois continuar a respigar na obra de Gil Vicente referências à Serra da Estrêla, às terras da Beira, à sua vida pastoril e aos rudes campónios, seria alargar de mais êste inquérito e o apontado já basta para o propósito que nos anima.
O que se pode afirmar, sem risco de desmentido, é que a maior parte das figuras com que êle objectiva o seu teatro, são encarnações de viva realidade, arrancadas a esta parte da Beira que tem por pano do fundo a mais alta montanha de Portugal.
Ponham-se de parte aquelas peças de caracter abstracto e simbólico e ainda algumas outras em que as personagens revestem tipos duma comum generalidade, e logo veremos que a parte mais importante da obra do dramaturgo é puramente beirã.
in "Beira Alta", volume II, Fascículo I, 1943, (1º trimestre)
O debatido problema da naturalidadc dc Gil Vicente não teve até hoje solução definitiva.
Se bem que já de todo fôssem arredadas as hipóteses de Lisboa e Barcelos, o mesmo não aconteceu com cidade de Guimarães, considerada, por muitos historiadores da nossa literatura, como sendo o berço do genial fundador do teatro português.
Ultimamente uma corrente se tem orientado no sentido de considerar Gil Vicente, não como minhoto, mas como um glorioso filho destas terras da Beira.
É no número dos que assim pensam que eu cnfileiro, tam forte é a convicção que neste sentido no meu espírito se formou.
Assim o pensa, também, o ilustrc publicista viseense, Dr. José Coelho, quando no seu livro, "Memórias de Viseu, (Arredores)" a pag. 406, dá Guimarães de Tavares, também conhecido por Guimarães da Serra, como terra da naturalidade do fundador do teatro nacional.
Da mesma forma os senhores Francisco Torrinha e Augusto Pires de Lima, no estudo com quc antecederam a Farsa de Inêz Pereira, se inclinam para a mesma opinião.
Não havendo documento comprovativo que nos indique a naturalidade de Gil Vicente, o que levou alguns críticos a dizer que não se podia passar de conjecturas, a que elementos elevemos recorrer para indagação dêste problema biográfico?
Eu creio que o mais seguro é o estudo da obra do escritor, pois dcla se poderá extrair, arrancar a verdade dum facto que a investigação histórica não nos permitiu alcançar.
Os processos da crítica cientifica são os únicos que no caso presente téem de ser aplicados à obra do escritor, pois, por meio deles, pode emergir o claro indício ou detalhe que se pretende averiguar.
Por combalidos que pareçam os métodos do autor da História da Literatura Inglesa, alguma coisa permanece intacta e que é a relação entre o ambiente em que a alma do artista, desde a sua tenra idade, se criou e dcsenvolveu e a obra por êle produzida.
Êste ambiente em que o artista se formou e que dcpois se vai refletir nas suas criações, chamado por Taine acção da região ou do habitat, não pode de forma alguma ser pôsto de parte nas investigações que se pretendam fazer sôbre a terra onde o escritor nasceu ou região em que viveu.
Foi por êste processo de análise que Sainte-Beuve, nas suas «Conferências de Segunda-feira», mais rigorosamente determinou a reacção do meio e assim a sua influência sôbre a obra dos seus biografados.
Podem pôr-se de parte, se quizerem, outros elementos sociológicos, apontados por Tainc na sua Filosofia da Arte, mas o que é indiscutível e por isso não sujeito a dúvidas, são as influências que o artista recebe do meio em que iniciou a sua vida de relação.
Sem dúvida, tôda a sua emotividadc começa logo na adolescência a embeber-se nas fortes ou delicadas paisagens quc o cercam, a sentir o efeito dos seres que o rodeiam e até do próprio ar que respira.
A receptibilidade da célula nervosa é, nesse período da formação indivíduo, dum tal poder absorvente que as imagens, aí recolhidas, ficam a alimentar todo o poder evocativo de que o artista é capaz e, mais do que êste, o seu poder descritivo, tam preso na retina da sua memória permanece o cenário que o rodeou.
Podem alargar-se novos horisontes à vida do criador da Arte e assim, pela variação de meios, êle dar aspectos diferentes à sua vibratilidade sensorial, mas nem por isso, a sua sensibilidade deixou, de estar enraizada ao ambiente donde exhauriu a fôrça emotiva das suas primeiras criações estéticas.
Postas em esquema as linhas gerais do influxo do meio sôbre o indivíduo, façamos uma análise das obras de Gil Vicente que mais interessem ao nosso ponto dc vista. Ninguém contesta e assim ninguém põe em dúvida que uma grande parte dos autos e farsas de Gil Vicente téem por inspiração a província da Beira onde êle vai buscar as suas personagens, desde o rude pastor da serra até aquela humilde guardadora de patos que, no Auto da Fama, descreve as glórias e façanhas do povo português.
A ilustre vicentista D. Carolina Michaelis, apesar de o fazer oriundo de Guimarães do Minho, não deixa de dizer que êle "foí rusticamente criado na Beira."
Admitindo a hipótese de êle ter vivido, na sua infância, entre a gente rude desta provincia, por que não tirar desta afirmação a sua lógica ilação, isto é, de que aí também deveria ter nascido?
Os novos elementos que vamos adiante apresentar parecem não deixar dúvida a tal respeito.
Carolina Michaelis estava presa ainda à ideia de Guimarães do Minho e, não podendo negar a influência que o ambiente beirão exerceu sôbre o artista, limitou-se a dizer que êle para aí quando criança deveria ter sido levado.
Não ha dúvida quc todos os escritores confessam as íntimas relações que existem entre Gil Viccntc e esta província e de que as suas obras são um nítido e claro espelho, quer sob o ponto de vista de linguagem, quer sob o ponto de vista etnográfico e até folclórico.
Aubrey Bell, como afirma Queiroz Veloso, na História da Literatura Portuguesa, também diz que a Beira ocupa um lugar à parte nas suas obras.
"Conhece todos os seus produtos, as diferentes especialidades desta ou daquela terra. Como que a traz sempre no pensamento."
Para o demonstrar não ha senão, agora, fazer referência a muitos dos seus autos e farsas.
Na Comédia do Viúvo, o compadre falando na dureza da sua mulher para a deprimir, faz alusões à vegetação da Serra da Estrêla.
No Auto Pastoril Português três pastores da Serra da Estrêla entram em cena com as suas três namoradas, e Vasco Afonso que os apresenta diz:
A Cristaleira
E o almotacel pequeno
Bailarão á derradeira
E tanger-lhe-ha o Moreno
Que sabe os bailos da Beira
Claro está que é às variadas danças desta região que Gil Vicente alude, pois era natural que as conhecesse e que delas tomasse parte na sua mocidade.
Falando dêste auto, Queiroz Veloso diz o seguinte: «Esta peça tem mais valor filológico do que dramático pelos termos que Gil Vicente põe na boca dos pastores beirões que nela entram.»
Essa linguagem era evidentemente a usada na Beira, como foi constatado por Leite de Vasconcelos, quando fez o estudo filológico das obras de Gil Vicente.
Em muitos outros autos é dêste provincianismo que Gil Vicente se serve, como no Auto da Festa, em que, no dizer de Aubrey Bell, «o falar das personagens é caracteristicamente beirão.»
Assim acontece também no Auto da Faa, de que adiante falaremos.
No Auto Pastoril a que nos estamos referindo, ha uma pastora que traz a imagem da própria Virgem no seu feixe de lenha e que "esta lhe tinha dado no sitio da Pena Furada áquem da Virgem da Estrêla".
Haveria alguma capela em que a Virgem fôsse invocada sob o nome de Nossa Senhora da Estrêla, como Gil Vicente não só o deixa ver nesta passagem e em uma ou outra do Auto da Feira?
São perguntas a que responderemos mais adiante.
De tôdas as peças de Gil Vicente é a Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrêla que mais deve merecer detida atenção.
Tôda ela está impregnada da vida desta província, pondo em destaque a riqueza dos seus produtos e até do temperamento amoroso dos seus pastores.
Determinoo logo essora
Ir a Coimbra assi inteira,
Em figura de pastora,
Feita serrana da Beira,
Como quem na Beira mora.
E levarei lá comigo
Minhas serranas trigueiras
Cada qual com seu amigo,
E todalas ovelheiras
Quc andão no meu pacigo.
Tôda a exuberância da riqueza agricola desta região é posta em absoluto destaque.
São os queijos de Seia feitos à candeia, são os bezerros, as ovelhas meirinhas, os cordeirinhos que, no dizer do poeta,
Taes, que em nenhuas serras
Não nas achem tão gordinhas.
São as castanhas de Gouveia, é o leite que tôda a serra produz, êsse leite de que Gil Vicente faz apologia dizendo:
Que tal leite como o meu
Não no ha em Portugal,
Que tenho tanto e tal,
E tão fino Deos m'o deu,
Que he manteiga, e nã sal.
Depois vem a Covilhã, como centro já duma indústria de lanificios, trazendo muitos panos finos que lá se fazem.
Não esqueceram ao poeta as penas das águias riais que vivem, nos altos píncaros da Serra da Estrêla, pois elas servirão para - cabeçais -.
Seguem-se os forros de arminhos que outrá coisa não são do que as finas lãs das brancas ovelhas mcirinhas de Vale de Penados e Monte dos Três Caminhos.
Existem estcs dois lugares Vale de Penados e Monte dos Três Caminhos nesta região? É um ponto que mais adiante se averiguará.
Por último, fala Gil Vicente nas minas de ouro donde el-rei deve mandar extrair êste precioso metal.
Em que sitio da Beira se encontravam essas minas de ouro?
Veremos também adiante se elas existiam ou se não passavam de mera fantasia do dramaturgo.
Para fazer uina ideia nítida do lugar em que se trava o diálogo da serra com Gonsalo, é preciso atender ao facto de dois foliões do Sardoal, que aparecem no fim da peça, serem apontados como sendo lá debaixo, do extremo da montanha, isto é, daquela parte onde os beirões conhecidos pelo nome de ratinhos iam e vão ainda trabalhar o que equivale a dizer que Gil Vicente se refere ao Sardoal que fica perto de Abrantes, a caminho já do Alentejo.
Também para determinação do lugar do diálogo deve ter-se em vista o emprego do adverbio - lá - quando se fala da Covilhã, o que necessàriamente importa a ideia da distância entre êste local e aquela cidade.
Não passe também sem se notar que um dos foliões do Sardoal, canta arremedando os pastores da Serra o que significa diferença de pronúncia que existia entre uns e outros.
Ainda que pareçam de pequena importância estas anotações, creio que elas têem real valor para se fixar o palco onde Gil Vicente fantasiou êste auto e que não é outro senão a sul da Serra da Estrêla e a ela fronteiro. Por outras palavras, Gil Vicente coloca as suas personagens em lugar donde a vista abrange tôda a encosta da Serra que fica voltada para a provincia da Beira Alta.
Sempre Gil Vicente traz dentro do seu coração a Serra de Estrêla que em outras peças lhe continua a servir de tema, como por exemplo, no Triunfo do Inverno.
Com razão Aubrey Bell, referindo-se a êste auto, diz: "O primeiro triunfo obtem-no o inverno nas montanhas da Serra da Estrêla."
De facto, todo o rigor desta estação é aí descrito, por vezes, dentro dum grande lirismo.
Vem agora a propósito falar nas duas farsas passadas, na Beira, a que Gil Vicente deu os nomes de Clérigo da Beira e Juiz da Beira.
A primeira, se bem que seja uma charge ao seu antagonista Sá de Miranda que na Divisa da cidade de Coimbra continuou a ser fustigado pelo dramaturgo, não deixa de nos merecer especial atenção por as personagens serem figuras que se movem dentro do ambiente beirão, como o proprio nome da peça indica.
O facto do c1erigo ir para a caça sem fazer a coroa merece ao filho o seguinte reparo:
Vós haveis de celebrar
Missa de festa em pessoa,
E não fazeis a coroa
Antes que vamos caçar?
Pois, pae, nos haveis d'olhar
Que sois clerigo da Beira,
Porque a gente cabreira
Em tudo quer attentar.
Desta forma, o filho põe em relêvo o espírito religioso beirão que exige dos seus sacerdotes, uma natural compostura externa.
Na Farsa Juiz da Beira, dentro dum espírito de maliciosa graça, é posto em relêvo, no dizer de Queiroz Veloso, "a jocosa caríctatura dos Juizes Ordinários."
Pero Marques é o tipo escolhido por Gil Vicente.
Da Beira ele declara ser no começo da peça, tendo-lhe aí sido dado um julgado por ser casado com Inêz Pereira que lhe lia as Ordenações e lhe ditava as sentenças. Êste pitoresco Juiz que Gil Vicente descreve como tipo da manha popular, tam comum à gente do nosso campo, era, como todo ignorante, balofo e jactancioso. Outra coisa não significa o afirmar que "em Viscu ningucm o contradiz", isto é, que nesta cidade não havia letrado nem corregedor que puzesse em cheque as suas decisões.
Parte da rubrica que antecede esta farsa é do teor seguinte :
"Diz o autor que êste Pero Marques como foi casado com Inez Pereira se foram morar onde êle tinha sua fazenda, que era lá na Beira onde o fizeram Juiz."
Os senhores Francisco Torrinha e Pires de Lima veem na frase - a1i na Beira - a indicação da província donde era Gil Vicente.
Assim dizem: "Aquela palavra - lá - pode interpretar-se como uma simples particula reforçativa, ou como uma fórmula carinhosa de chamar a atenção para um objecto familiar: lá nas Beiras, como se dissesse - lá na minha terra - circunstância que não seria dcsconhecida dos contemporâneos de Gil Vicente."
Com esta farsa tem íntima ligação aquela a que o poeta deu o nome de Inêz Pereira, pois as figuras principais, tanto duma como de outra, são as mesmas.
Na Beira se passa também esta interessante comédia que é pela crítica considerada como das melhores produções do autor.
Pero Marques, com quem Inêz Pereira casa vem mais tarde a ser aquele Juiz que tinha - a sua fazenda lá na Beira, - e de quem sua esperta mulher que "mais preferia asno que a levasse do que cavalo que a derrubasse se torna mentora".
Uma natural correspondência existe, pois, entre as duas peças pela identidade de personagens e identidade de região onde as cenas se desenvolvem.
Da mesma forma, todo o sabor rural de que o Auto da Mofina Mendes está impregnado manifesta sem a menor dúvida o mesmo ambiente beirão.
Onde colocou Gil Vicente as personagcns dêste seu auto?
Basta atender à resposta quc o pastor André dá, quando Payo Vaz lhe pregunta pela Mofina Mcndes:
Mofina Mesdes ouvi eu
Assoviar, pouco ha,
No Valle de João Viseu.
Esse Vale de João Viseu será por nós adiante identificado.
Por agora, notaremos que Trancoso onde Mofina Mendes vai vender o seu pote de azeite, fica na direcção do local que serve de palco a esta comédia.
Diremos ainda que o Auto da Feira, além de sc falar na Virgem da Estréla, se alude às ladeiras da mesma serra, isto é, aos seus íngremes e dec1ivosos caminhos.
No mesmo auto se diz:
Porém bcm vos vimos nós
Quardar bois no Alqueidão.
No Auto da Barca do Inferno fala-se no adro de S. Gião. Se não foi força de rimar que levou o poeta a empregar a expressão - S. Gião - então êle quiz referir-se a um lugar certo que é o adro da igreja de Mangualde que tem por orago S. Julião que, outrora, se designava por S. Gião.
No Auto da Barca do Purgatório ha um pastor que se rcfere ao Vale de Cobelo e Vilarinho. São lugares certos? Creio que sim, como adiante se verá.
Mas ponhamos aqui ponto, pois continuar a respigar na obra de Gil Vicente referências à Serra da Estrêla, às terras da Beira, à sua vida pastoril e aos rudes campónios, seria alargar de mais êste inquérito e o apontado já basta para o propósito que nos anima.
O que se pode afirmar, sem risco de desmentido, é que a maior parte das figuras com que êle objectiva o seu teatro, são encarnações de viva realidade, arrancadas a esta parte da Beira que tem por pano do fundo a mais alta montanha de Portugal.
Ponham-se de parte aquelas peças de caracter abstracto e simbólico e ainda algumas outras em que as personagens revestem tipos duma comum generalidade, e logo veremos que a parte mais importante da obra do dramaturgo é puramente beirã.
<< Home