segunda-feira, abril 11, 2005

VIRIATIS - vol. I, nº II, ano de 1957 (4/12)

O MUSEU RURAL DE VALENÇA DO MINHO

Pelo DR. LUÍS IBÉRICO NOGUEIRA

Quando sugeri à Câmara Municipal de Valença a conveniência de ser aqui criado o Museu Rural não era precisamente a organização dum museu etnográfico, em toda a extensão que tal designação comporta e na precisão que ela requer e deve ter, o que pretendia e tinha em mira, e que alguns julgam vai ser. É mais limitado o que se vai fazer, sendo mesmo um pouco diferente.

É museu para nele serem guardados e expostos os utensílios usados nos trabalhos agricolas da região, para bem dizer «a mecânica da cultura», reportando-nos a meio século atrás, quando esse trabalho era a festa de todas as estações e de todos os dias com aquelas alfaias primitivas, rudes, no entanto impregnadas de beleza, do encanto que a simplicidade traz e não exclui.

O Museu será lição viva em que muitos, em que todos, poderão aprender.

Lição para os que, pois o não viram, nada sabem do trabalho do campo - e essa será a menos importante - visto, na sequência que se lhe pretende dar na apresentação das espécies, ser possível ir compreendendo o seu uso desde o início de determinado trabalho até à sua term1nação completa.

O citadino, assim, poderá criar no seu espírito, visualizando-a, a rota que, por exemplo, o pão seguiu desde antes da germinação da semente no terreno que lhe foi preparado até à «boroa». recendendo sobre a toalha de linho a alvejar na mesa da ceia.

Lição para os artistas plásticos que nele encontrarão o documento imprescindível, a forma autêntica - pois só exemplares autênticos lá terão lugar, nada de miniaturas, cópias ou reconstituições fantasiosas - quando porventura tenham de fazer reviver com a sua arte o ambiente de qualquer antiga cena rural.

Lição para escritores e eruditos que nele virão encontrar a possibilidade de exactidão nas descrições ou a compreensão de textos antigos que se refiram a instrumentos desaparecidos há muito.

Lição para todos, pois todos, nele, alguma coisa poderão aprender.

E lição de humildade, tão necessária nestes tempos de orgulho, o que também não é para desprezar...

Quando a existência mais se materializa na ânsia louca de atingir um «nível de vida» que muitos julgam ser a felicidade, paraíso de que num sonho se abrem francamente as portas e onde reinará a alegria perpetuamente, é necessário mostrar donde vem esse progresso - se alguma vez lá chegarmos! - e que não foi o homem presente, o homem moderno, com o seu génio que tudo inventou, que tudo fez e tudo criou.

O homem de hoje não pode esquecer o que deve aos predecessores. Os inventores dos nossos dias tiveram precursores...

Desde a labareda do primeiro fogo - que foi a alvorada magnífica de todas as civilizações - o caminho do homem está marcado por inventos cuja importância não podemos minimizar ou esquecer.

E é exactamente nessas coisas, ao parecer tão simples que hoje as consideramos intuitivas, que o génio mais se marca e manifesta.

A alavanca, a roda, o tronco escavado, todas as máquinas simples, são lampejos de inteligência que iluminam e balizam a penosa via ascencional.

Estas primitivas máquinas agricolas, infantis, ingénuas, frágeis, de escasso rendimento, têm em si, no entanto, o germen das modernas.

É preciso que o não esqueçamos.

Olhando-as, a essas máquinas tão perfeitas e tão eficientes, com que nos tempos correntes se trabalha a terra, sem esforço veremos nelas as antigas, aperfeiçoadas embora.

E no entanto a centelha do génio persiste naquelas...

As nossas, o que ganharam em perfeição e eficiência de trabalho, em economia e outras mais qualidades utilitárias, perderam-no em beleza e o trabalho perdeu em poesia o que ganhou em facilidade.

Estes velhos utensílios, padrões veneráveis do esforço dos nossos avós, ajudaram a criar o pão que alimentou os cérebros dos inventores de agora.

Se mais não houvesse, só por isso os devíamos estimar com ternura. São monumentos.

Não tenhamos vãos orgulhos das nossas técnicas que se alicerçam todas nas rudes técnicas primitivas e sem elas nada seriam. Só elas as tornaram possíveis.

Por isso um museu assim, por mais estranho que tal pareça, é lição de humildade, lição que não nos deixa tomar de orgulho pelos poderosos meios dos tempos presentes que, afinal, só diferem dos antigos pelo desenvolvimento de certas qualidads com prejuízo de outras, geralmente a beleza que é sempre a mais sacrificada, chegando por vezes ao aniquilamento total.

São essas lições que museus assim nos podem dar e por tal mais museus deste género deviam ser criados, interessando-se mesmo, francamente, por todos os ramos de etnografia, fixando conhecimentos prestes a desaparecerem e que devem ser difundidos, marcando o viver das regiões e permitindo estudos comparativos.

Quando recebi o amável convite do Dr. Russell Cortez para eu dizer na «VIRIATIS» algumas palavras sobre a organização do Museu Rural fiquei a pensar: - Não será melhor dizer alguma coisa sobre o seu espírito?

E decidi-me por aí.

Valença, Novembro de 1957.
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