segunda-feira, junho 13, 2005

A etimologia de "Viseu"

e uma carta de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos
por A. de Amorim Girão
in "Beira Alta", volume I, fascículo I, 1942, 1º trimestre

Decorrendo a Primavera de 1921, travou-se na imprensa de Viseu renhida polémica sôbre a etimologia e grafia do nome da cidade, que valerá talvez a pena recordar agora, a tantos anos de distância. Presta-se ela a fazer um pouco de história, e a história é sempre mestra da vida, como usa dizer-se.

Um conhecido professor viseense, que usava o pseudónimo de Mário Diniz, em artigo publicado no “Notícias de Viseu”, fazia derivar a palavra de Vicellus, deminutivo de vicus; e, sendo assim, concluia, deveria escrever-se Vizeu com Z.

Sugerindo outra etimologia, que depois reconhecemos não ter defesa possível, com aquela maneira de ver manifestámos logo no mesmo jornal o nosso desacôrdo quanto à grafia, baseando-nos no seguinte: - Se em todos os documentos anteriores ao século XVI encontramos Viseu com S, e se, como está estabelecido entre os Mestres da ciência da linguagem, só depois dessa época se tornou possivel a confusão, na pronúncia, do S intervocálico e do Z, é óbvio que sempre se escreveria nesses documentos segundo a verdadeira etimologia da palavra, e que deve portanto preferir-se a forma Viseu, como hoje fazem todos os nossos escritores e filólogos.

Contra isto nada haveria, supúnhamos nós, a objectar. Mas surgiu então outro contendor (que já pagou o seu tributo à morte), a procurar demonstrar que seria possível a transformação fonética de Vicellus em Viseu, e que, portanto, era de admitir a etimologia e grafia propostas pelo primeiro. E dava como exemplo as palavras cisne, viso-rei e visconde.

Escrevia no “Jornal da Beira”, assinando-se Um Estudante de Latim, e guardou-se na redacção do semanário o mais rigoroso sigilo sobre a identidade do novo colaborador.

Ainda mesmo quando se procura discutir apenas as idéias, não há por certo tarefa mais inglória que esgrimir com um desconhecido.

A prosa logo revelava que o articulista do jornal católico mais devia ser Mestre que estudante; e a coisa entrou de complicar-se, porque se faziam já alusões pessoais, mais conducentes a exacerbar os ânimos que a esclarecer os problemas.

Quebrou-se todavia o mistério em certa altura. Veio a saber-se quem era o nosso antagonista; e a questão irritou-se a tal ponto que houve até ameaças de passar do rumo sereno das
idéias a tortuosas vias de facto.

Enchiam-se colunas e colunas de prosa inflamada, o respeitável público breve começou a aborrecer-se, e as redacções dos periódicos em litígio, à vista de tanta abundância de original, já nem sabiam como ver-se livres de colaboradores tão assíduos que ameaçavam não mais despegar.

Mas tudo, afinal, acabou em bem. Daquela acesa discussão não nasceu por certo muita luz, mas também não resultou, louvado Deus, a incompatibilidade das pessoas, que antes ficaram a estimar-se mais.

* * *

Quando agora, a vinte anos de distância, voltamos a passar a vista por sôbre o que então se escreveu, tudo aquilo nos traz ao espírito a imagem do “pó levantado e pó caído” do nosso Padre Vieira.

Tudo aquilo basta para nos fazer chegar à conclusão de que nada sabemos com segurança àcêrca da etimologia de Viseu : e faz-nos concluir também que as questões que às vezes apaixonam e dividem os homens só podem servir, afinal, para nos levar a exclamar como o Rei antigo: Vanitas vanitatum. . .

Daquela renhida polémica alguma coisa ficou, entretanto.

Ficaram, nas colunas de “O Comércio de Viseu”, uns versos de fino comentário que nos parece oportuno reproduzir, tirando-os do limbo onde cairam. Transcrevemos do seu nº de 22 de Maio de 1921 :

Z $ S

Ou a guerra do Alecrim e Mangerôna

Alecrim que, aliás. é
Mestre na especialidade,
Sustenta, não sei porquê.
Que o nome desta cidade
Se deve escrever com Z.

Mangerôna que parece
Saber, por egual, da póda.
Mostra, ao contrario, interesse
Em fazer vingar a moda
De escrever Viseu - com S.

Questão de lana caprina
Que apaixonou, todavia,
Muita gente que imagina
Pescar da regedoria . . .
Sem perceber patavina . . .

Alecrim e Mangerôna
Discutem serenamente:
Mas se o raio da sanfôna
Desafina... fatalmente
Teremos gróssa tapôna . . .

Porque alguns dos radicais
Já andam pregando ás massas
Que as questões gramaticais
São invenção dos Talassas…
Embrulhando a coisa mais.

O que, em verdade, acho mau;
Pois, se intervem na questão.
Gente de faca e calhau . . .
Os Córvos da Reacção
Serão quem pagam o patau…

Enfim, parece iminente
Tormenta que bom seria
Conjurar rapidamente:
Decretando uma grafia
Imparcial, coherente.

Eu, se o Congresso Beirão
Quizer descalçar a bota,
Lembro-lhe esta solução.
A meu vêr tão patriota
Como cheia de rasão :
Voltar ao Vijeu com Jota.
Reatar a tradição. . .

S. M.

***

Ficaram estes versos em saldo positivo. E ficou também, na posse de quem estas linhas escreve, uma erudita carta da saüdosa Professora D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que em certa altura desejámos ouvir sôbre um ponto da questão em que surgiram dúvidas ao nosso espírito.

Essa carta bem merece ser publicada; e devemos fazê-lo em homenagem à memória da grande romanista, “fada que a Alemanha enviou a Portugal para ilustrar as letras pátrias” no dizer de um autorizado biógrafo.

Ela constitúi uma lição magnífica, profunda, sôbre o assunto em discussão; e demonstra bem, ao mesmo tempo, quanto a sua autora, que tanto ilustrou o ensino universitário português, se mostrava sempre disposta a esclarecer os que a ela recorriam, atraídos pelos tesouros do seu vasto saber filológico, arqueológico e histórico.

Aí vai o documento :

Porto, 25-III-21.

Ex.mo Snr.


- discutir a grafia de um vocábulo cuja etimologia desconhecemos é sempre arriscado. E eu começo por confessar que ignoro a de Viseu - como a de quasi todos os nomes topograficos pre-romanos (
Durius - Tagus - Munda -Braga - Coimbra - Lisboa).

Ainda assim entendo que tem razão V. Ex.a e todos quantos pugnam pela ortografia Viseu que sempre uso e usarei - com Leite de Vasconcellos, Herculano e todos os Humanistas do século XVI que se ocuparam quer da geografia do país, quer de ortografia como parte da linguistica.

A escrita Vizeu é do século XVIII sobretudo e provêm do sistema dos que, não distinguindo já z e s na pronuncia, entendiam que seria bom substituir s, intervocalico, brando, por z - escrevendo p. ex. formozo, generozo, etc. etc.

A identificação de z e s na pronuncia, claro que começara mais cedo, - generalizando-se pouco a pouco - mas nunca por completo como V. Ex.a sabe bem. O Transmontano ri-se ainda hoje do Portuense que não distingue coser (consuere) de cozer (coquere) - e paço (palacio) de passo (passu), etc. etc.

Na ortografia ha erros causados, em regra, por falsas etimologias: Cea (ou Ceia) por Sea (Seia) de Sena por causa da ceia (coena): Cintra por Sintra (por causa de Cinthia).

Outras vezes - como p. ex. em cenreira por senreira (de singlaria) - é apenas a ignorancia, o desconhecimento da origem da palavra que causa hesitações.

O que nos obriga a ter Viseu por correcto é o costume constante dos antigos de o escrever com s. Em inscrições antigas, em documentos arcaicos, é sempre a forma com s que encontramos: Veseu em moedas visigoticas (vid. Leite. Religiões de Lusitania);
Viseu Uiseu num documento de Lorvão de 961 (vid. Cortesão. Onomastico Medieval Portugues p. 561); Uiseu nos dois Foraes - o de 1123 e o de 1187 impressos nos Portugaliae Monumenta Historica – Leges, p. 360 e 460).
Isso deveria bastar!

Ha todavia entre os motivos alegados pelos que preferem a escrita Vizeu pormenores que exigem resposta.

A etimologia que tira Viseu de lat vicus é insustentavel.

Vicus (com i longo) no sentido de vila, aldeia, bairro de cidade, etc., existe no Onomastico de quasi todas as provincias do Imperio romano. Os Italianos tem Vico, os Espanhoes, Vigo, os Franceses Vic - formações absolutamente correctas foneticamente. Em regra Vicus ia acompanhado de um gen. no plural que designava a gens ou tribu que fundara o vicu/m/. O Vigo da Galiza era Vicus Spacorum. Em França ha Vic-aux-salins, - Vid. Orbis latinus, de Graesse. - Em Portugal prevaleceram outras designações (Villa - Casal - no Norte; Aldeia no Sul. Vid. Sampaio Villas de Portugal). Da pronuncia viccus por vicus veio o nosso beco, como demonstrei outrora. O sentido de rua estreita, rua sem saída liga-se tambem ao italiano vicolo, que designa o espaço entre duas camas, nos dormitorios.

Este vícolo mostra que o deminutivo viculus era usado; embora não o fosse na topografia. E não se pode negar que dele podia sair o duplo ou reforçado vicellus - Não subsistem todavia representantes dele em neo-latim.

Se houvesse um em português, deveria ser vizelo (o Vizela não é vicellus viculus; é Avïcella por avicula, dem. de ave - é, como afluente do Ave, uma avezinha) Viculu dava Vigoo – Vigo - e o simples Vicus dava igualmente Vigo.

O Visense Oppidum de Plinio (V, 4, 4) estava na Africa - nada tem com a cidade portuguesa!

O suposto vicellus fazia grupo com o nosso martelo, bacelo, cutelo, novelo, tabela, vitela, etc.

De Viseu provêm correctamente Viseense - que em pronuncia familiar passa a Visense ; e em escrita culta aparece às vezes como Visiense.

Os exemplos cisne, visorei, visconde não provam nada para o caso de Viseu.

Em cisne e visconde a sibilante não era intervocalica : a sua pronuncia antes de consoante era e é diversa - como todo o mundo sabe. De resto, cisne veio-nos da Provença; e visconde do francês arcaico.

Quanto ao antiquado visorei, ele veio-nos de Espanha! E lá houvera confusão entre dois elementos prepositivos diversos. O vice latino nunca foi popular. Por isso houve substituição - de visogodo, usado a par de visigodo - tiraram o obscuro mas usado viso e disseram visorei! Ou então: vi-rrei. E nós imitamo-los.

Outro ponto ainda. Se Viseu fosse romano - e não pre-romano - o tema seria incontestavelmente Vis – Viso - o partir de videre. - Viso existe em neo-latino com o significado de sonho, visão; e com o de cara, visagem. Ambos não servem para designações topograficas. Só no sentido de pequena altitude, outeiro, de onde se gozam vistas - é que servia. E serviu realmente como nome de lugar.

Em Espanha ha quinze Viso-s, nove na Galiza (segundo o
Dic. Geogr. de Vidal).

E entre nós ha no concelho de Setubal a serra e o alto do Viso, quatro povoações desse nome; e uma que se chama Visos.

Mas... não me explico a derivação em - êu. (a forma Visaeensis, que li em qualquer parte, conduziria a Viseu.)

Ainda ha outra designação que me faz scismar. Li - mas tambémnão sei dizer onde - civitas visentina.

E encontro no Orbis latinus - Vicente da Beira como sinónimo de Viseu! Vicente a par de Viseu ? ?

Vagamente me lembro de já ter exposto em carta as minhas opiniões sôbre Viseu a alguém, mas não tomei nota do nome do consultante.

Desculpe o desalinho destas notulas e aproveite delas apenas o que lhe parecer bem. - Uma porção de opusculos sôbre nomes de lugar que possuo estão ha meses entre mãos de um professor portuense -; e outro, da Coruña, já mos pediu: é possivel que entre as observações que escrevi nas margens haja algum material util.

Em Goimbra talvez nos vejamos depois da Pascoela? Até lá com afectuosas lembranças

Carolina Michaëlis de Vascoacellos

Gomo nada diz da sua saude, suponho ser boa.

Fechada a carta, para acentuar melhor a impossibilidade de o nome Viseu derivar de qualquer deminutivo, ainda D. Carolina Michaëlis escreveu no envelope estas palavras: “eu (de ellus) só seria possível se viesse de França. Mas Viseu não é um chapeo”.

Tudo o que acrescentássemos agora a êste documento sôbre a etimologia do nome da cidade nada seguramente adiantaria, e poderia parecer pretensioso. Limitamo-nos, por isso, a deixar
aqui o erudito depoimento da insigne Mestra, que assim, mesmo depois de morta, continuará a ensinar.

Coimbra, Março de 1942.

A. DE AMORIM GIRÃO

N. R. - Devidamente autorizados pelo autor dêste artigo e ilustre Prof. universitário, Doutor Amorim Girão, podemos informar que o Estudante de Latim que no “Jornal da Beira” tomou parte no pleito foi o seu saüdoso director Cónego Inocêncio de Noronha Galvão, e que o autor dos versos foi o também já falecido Hipólito de Vasconcelos Maia, um dos mais nobres e' cultos espíritos do Viseu de há 20 e tantos anos.
Site Meter