quarta-feira, junho 29, 2005

Gomes Eanes de Zurara

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo I, 1944, 1º trimestre

Já lá vai um bom par de anos que no meu espírito nasceu um especial interêsse pelo autor da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.

Fazia, então no velho liceu de Viseu, o meu curso d.e preparatórios, quando um dia na aula de literatura, o austero padre Côta, com a sua máscula voz de puro beirão, envolto na sua capa à espanhola, nos falava largamente dos primeiros cronistas de Portugal.

Depois de dar em traços vigorosos o valor da obra do primeiro historiador português - Fernão Lopes - logo, em seguida, a prelecção continuou, pondo em destaque os trabalhos históricos de Gomes Eanes de Zurara.

Recordo-me bem. O padre Côta fechou então a biografia do cronista, dizendo que não sabia donde êle era natural, pois uns afirmavam ser de Zurara da Beira, hoje concelho de Mangualde, outros de Zurara do Minho.

A ideia de que o cronista poderia ter nascido nas terras da Beira encheu-me dum vivo alvoroço e curiosidade, pois seria para nós motivo do mais desvanecedor orgulho. Assim ficaria a Beira, sendo o berço de três notáveis cronistas que, àparte F ernão Lopes, melhor documentaram as primeiras épocas da nossa história. Rui de Pina, da Guarda, Gomes Eanes de Zurara, do concelho de Mangualde e já num período mais adiantado, escrevendo a História da índia, João de Barros, de Viseu.

Ao agitar agora neste estudo a questão da naturalidade do segundo cronista português, eu não tenho a veleidade de trazer para a sua solução novos dados ou argumentos que não sejam aqueles que andam espalhados pelas obras de literatura portuguesa que do caso se teem ocupado.

Outro objectivo não me domina se não o de oferecer ao estudo da gente moça o problema que aqui deixo esboçado.

Onde nasceu Gomes Eanes de Zurara? Em Zurara da Beira como uns querem, ou em Zurara do Minho, como outros pretendem?

A dúvida ainda agora foi focada na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» que se está publicando, pois no volume 3º, a pág. 963, na parte dedicada a Azurara do Minho, lê-se o seguinte: "Duvida-se que Gomes Eanes de Zurara tenha nascido nesta freguesia (Azurara do Minho). Segundo alguns autores, seria natural de Azurara da Beira (Mangul1lde)".

Esta dúvida tem por isso permanecido entre os cultores da História da Literatura que, no apelido Zurara, filiam a naturalidade do cronista.

Ora, na Idade Média, estava êsse costume muito em voga, pois aos demais apelidos, senão, ao próprio nome, se juntava, por vezes, o da terra ou região do nascimento. Os exemplos demonstrativos desta asserção colhem-se não só na História da Literatura, como em outros ramos da vida social daquela época.

Assim citando ao acaso, podemos apontar o autor da "Diana" cujo apelido era a terra da sua naturalidade - Jorge de Montemor - e da mesma forma o mestre de D. Diniz - Domingos Jardo que tinha por apelido o nome duma povoação do Sabugal.

O célebre piloto - Pero de Alemquer, que acompanhou Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, foi buscar também o seu apelido à vila donde era oriundo. O mesmo aconteceu com Pero da Covilhã e tantos outros.

Na Idade Média esta individualização era comum a tôdas as classes sociais, como adiante veremos.

O facto de Gomes Eanes de Zurara ser de obscura origem, como êle expressamente confessa, quando nas suas «Crónicas dos Condes D. Pedro e D. Duarte de Menezes agradece a Afonso V a longa criação e muita benfeitoria que dêle recebeu, considerando-se obrigado àquele rei porque as suas migalhas o criaram e os seus benefícios o levantaram do pó em que nasceu», não quere dizer que a formação do seu nome não obedecesse aos mesmos processos a que estavam sujeitos os apelidos das outras classes sociais.

Confirma êste modo de ver o erudito escritor beirão, Dr. Amadeu F erraz de Carvalho, quando no seu interessante estudo intitulado «Da Actual Feição da Antroponimia Portuguesa», a pág. 13, diz: "Depois dos patronímicos, foram os nomes de terras de que se era senhor ou originário, os que mais largamente começaram a adoptar-se como nomes de família, ligando-se em geral ao nome do baptismo pela partícula - de».

Nêsse recuado período histórico a individualização era em regra limitada a dois nomes, ao onomástico seguindo-se-lhe o patronímico.

Quando, porém, além dêstes dois, um outro nome aparecia a êles ligado por aquela partícula, outra coisa, por via de regra, não traduzia senão o local do nascimento do seu possuidor.

Raros são, por isso. os onomásticos ligados a mais de um apelido e, quando um outro aparece, êle não apresenta outra ideia que não seja uma melhor identificação do indivíduo com a terra do seu nascimento ou a que estava ligado por algum direito senhorial.

Quem estuda a onomástica da Idade Média verifica que com excepção dos patronímicos terminados em es ou iz, tam vulgares entre nós. a grande maioria, senão a quási totaIídade de apelidos, é formada por nomes geográficos. Isto, como acima dissemos, tanto acontecia nas classes inferiores como nas da mais alta linhagem.

Assim os apelidos Braganças, Sousas, Almeidas, Albuquerques, Maias, Silvas, Pereiras e tantos outros são indicativos dos lugares onde essas famílias tiveram a sua origem.

Não faça dúvida o facto dalguns dêstes apelidos não se encontrarem na nomenclatura corográfica, pois nem por isso deixam de referir-se a lugares certos em que se levantava a casa que servira de berço aos seus possuidores. Melhor expIícando esta adaptação, diz o citado escritor Dr. Amadeu:

«Êstes nomes geográficos tornados nomes de pessoas, podem, porém, revestir as formas mais diversas - assim, além de designarem a terra, a tôrre ou castelo, a propriedade de que era senhor ou originário, podem ainda indicar o país de origem ou como substantivo ligado por - de - ou na forma adjectiva ou ainda acidentes geográficos, formas de propriedade e até qualquer árvore que caracterizasse a morada familiar.»

A especificação individual durante tôda a Idade Média tornou-se assim duma grande simplicidade. Só mais tarde, principalmente depois da Renascença é que a evocação famiIíar se fez através duma extensa e complicada cadeia de apelidos, tam cruzados entre si se encontram já as famílias nobres de Portugal, mas mesmo ainda nesta época, um dos apelidos envolvia a ideia do local donde a família era oriunda. Isto se dá com o próprio nome do nosso épico, pois a palavra Camões é de origem geográfica como ensina Leite de Vasconcelos e largamente expõe o senhor Dr. António de Oliveira Matos no seu livro «Vida de Luiz de Camões», pás. 7.

Gomes Eanes de Zurara calcula-se ter nascido em 1410, época da transição da Média Idade para o novo ciclo da História Moderna, pelo que é lógico concluir que a palavra Zurara envolve consigo a ideia do local em que o cronista nasceu. A esta última conclusão se opõe Agostinho Fortes, na sua «História da Literatura Portuguesa», a pág. 81, como adiante aludiremos.

Desde que se aceite a ideia de que Zurara tem o significado de naturalidade, a dúvida limita-se em saber em qual das duas Zuraras ou Azuraras êle veio 'ao mundo. Foi em Azurara da Beira ou foi em Azurara do Minho ?

Eis a questão. Creio que boas razões militam a favor de Azurara da Beira, apesar de serem escassos os dados da primeira época da vida do cronista, pois a biografia dos seus primeiros anos está cheia de lacunas.

De facto, aqueles escritores que dão à palavra Zurara o significado do local do nascimento, mais se inclinam para a nossa velha terra da Beira do que para a sua homónima do Minho.

Alguns chegam até a determinar a povoação do concelho de Mangualde onde êle nasceu. Assim, o ilustre professor Agostinho de Campos, no seu belo artigo «Primeiros Cronistas» inserto na «História da Literatura Portuguesa Ilustrada», dirigida por Forjaz de Sampaio, a pág. 198, vol. I, diz: "Nada se sabe de positivo da naturalidade e data do nascimento de Gomes Eanes de Zurara. Conjectura-se que tivesse vindo ao mundo cêrca de 1410 e hesita-se ainda hoje sôbre se o seu apelido se refere a Azurara da diocese do Pôrto se a Azurara ou Quintela de Azurara do concelho de Mangualde".

Da mesma forma, na «História de Portugal» publicada sob a direcção de Damião Peres, (edição de Barcelos) vol. 4º, pág. 351, capítulo IV, se encontra idêntica versão de ter sido Quintela dêste concelho a terra da naturalidade do cronista. A especificação duma localidade como - Quintela - está dentro da expressão Azurara, pois convém notar que com tal nome nunca existiu povoação alguma mas sim a área territorial que constitue o actual concelho de Mangualde. É à região de Azurara e não a qualquer determinada localidade que o Conde D. Henrique e sua mulher D. Tereza concede em 1103 o seu primeiro foral. Esta expressão abrangeu sempre, por isso, todo aquele vasto territórió que vai do Mondego ao Dão e que levou Herculano a afirmar que «uma circunstância que contribuia para dar maior importância a Azurara, era a amplidão dos seus termos semelhantes aos das grandes municipalidades, pág. 102, vol. IV.»

A designação geográfica duma grande extensão de território sem corresponder à povoação certa e determinada é um facto muito comum na Beira. Assim nunca houve localidades conhecidas pelos nomes de Sátão, Lafões, Besteiros, Tavares e Sinfães mas sim regiões designadas por êstes nomes.

Afirmar portanto que o autor da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné era natural da região de Azarara, é evidentemente localizar o seu nascimento dentro da mesma região o que levaria ao emprêgo daquele apelido.

Donde nasceu a ideia de que Quintela do nosso concelho poderia ter sido berço de Gomes Eanes de Zurara?

Não conhecemos os elementos que originaram esta conjectura, mas é certo que ela" é referida por vários autores da «História da Literatura Portuguesa».

A especificação duma aldeia dá ao facto do nascimento uma mais lógica precisão e reveste-a aos olhos da critica dum certo grau de veracidade.

Quintela de Azurara é uma das mais antigas povoações dêste concelho como se vê das Inquirições de D. Afonso III (1).

Fôsse nessa aldeia ou em qualquer outra, o facto é que a esta parte da Beira é mais atribuido o nascimento do sucessor de Fernão Lopes do que a Azurara do Minho. Resta-nos analisar a opinião daqueles que negam à palavra Zurara o signi6cado que lhe temos atribuído, pois afirmam que ela deve apenas ser tomada no sentido patronímico, isto é, como designando apelido de família.

Os que assim pensam, vão buscar esta interpretação ao sobrenome do pai do cronista, João Eanes de Zurara, cónego que foi da Sé de Coimbra e Évora.

Dando esta filiação ao cronista como certa, o que para alguns, porém, é duvidoso, cremos que, nem por isso, se pode pôr de parte a ideia de que a palavra Zurara não tenha também o significado de naturalidade.

Por que é que o pai usava o apelido de Zurara? Por ser talvez da mesma região em que o filho veio ao mundo. O cronista seria assim descendente duma família que, usando o apelido de Zurara daqui fôsse oriunda.

Se o pai usava o apelido de Zurara e, se este topónimo se refere, como ninguém põe em dúvida, a região certa e determinada evidente é concluir que êle daí era oriundo, como seria o filho que também o adoptou.

Temos nêste caso de admitir uma família originária do concelho de Mangualde a que pertencia o segundo cronista português.

A expressão geográfica - Zurara - não admite, à face da individualização mediévica, outra interpretação.

Zurara será, se quizerem, apelido de família mas nem por isso deixa de manter o seu caracter gentílico, isto é, determinativo da região donde a família era oriunda.

Interpretado nos termos expostos o vocábulo Zurara, a dúvida apontada não tem razão de existir, pois a maioria dos escritores são concordes em dar ao cronista como sua naturalidade as terras de Azurara da Beira e não simplesmente pelo facto de o pai aí ter também nascido.

Não há, infelizmente, porém devo confessá-lo, elementos que nos levem a um definitivo juízo.

O estudo minucioso da documentação histórica da época em que viveu Gomes Eanes de Zurara pode mais tarde levar o historiador a uma rigorosa e lógica conclusão. Por agora, estamos no campo das hipóteses que mais militam a favor desta região da Beira que a favor de qualquer outra terra do país. Nas poucas vezes que tenho ido ao Museu das Janelas Verdes, eu nunca deixei de silenciosamente, me quedar diante das famosas tábuas do Mestre Nuno Gonçalves, tam emotivamente elas evocam ao meu espírito tôda a pujante vitalidade do nosso período quatrocentista.

Depois, os meus olhos mais fitos ainda do painel da Adoração de S. Vicente, descobrem num dos lados a máscula figura de Gomes Eanes de Zurara. De cabeça encafuada numa negra gôrra, quási à laia de tiára, tam alta ela se eleva, de olhos penetrantes de observador, de facies vincado em firmes linhas, de todo o retrato, enfim, surge indiscutivelmente a figura dum homem forte, lembrando o tipo da gente das nossas serras.

É êste o único retrato que temos do cronista, feito, por certo, depois do seu regresso de África, onde fôra colher elementos para a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné e onde recebera aquela nobilíssima carta de Afonso V que muito o honrando, honrou também o rei que a escreveu. Assim, quando me encontro naquele Museu, prêso fico da sua figura, como que a procurar novos elementos que podessem vir em auxílio da minha tese.

Mas, infelizmente, não falam os retratos. É certo que, por vezes, êles são reveladores do caracter e traços psicológicos dos retratados, indo até pelo seu conjunto somático à afirmação dum tipo físico oriundo de certa região ou província.

Ora a impressão que se colhe dêste retrato, quer no detalhe, quer no conjunto fisionómico, é de facto a dum homem que, dentro do seu condicionalismo telúrico, mais está subordinado ao tipo mesológico desta província da Beira do que ao de qualquer outra região.

É incontestável e não faz dúvida, hoje, ter a Etnologia demonstrado a existência dum tipo étnico de linhas inconfundiveis como habitante desta região da Beira, caracteristicamente individdualizado do resto das outras populações do país, mergulhando as suas raízes etnológicas na estrutural ancestralidade lusitana.

Por esta razão, entre as populações que constituem a nacionalidade portuguesa, o beirão se destaca por características bio-psíquicas que o tornam portador duma somatologia própria que o retrato do Gomes de Eanes de Zurara reflete duma forma inconfundível.

Por mais que pareça vago e impreciso na escala dos valores interpretatios, o argumento iconográfico, o facto é que nunca deixou de constituir, como processo de análise e de identificação um precioso elemento de que a crítica com sucesso por vezes se serve.

(1) No século XVII nasceu em Quintela da Azurara, Ignacio de Figueiredo Cabral, filho de Pedro de Albuquerque e que, pela sua inteligencia e saber, foi, naquela época, um dos mais notáveis lentes da Universidade de Coimbra.

VALENTIM DA SILVA
Site Meter