quarta-feira, junho 08, 2005

Orcas, dólmenes e antas

por Aquilino Ribeiro
in "Beira Alta", volume I, fascículo III, 1942, 3º trimestre

As casas orbiculares das citânias, sem frestas, com portas baixas ou sem portas, defendidas de largo por muralhas ciclópicas, estão em matéria de arquitectura à direita da orca, a nosso ver centro da povoação neolítica.

O têrmo orca deriva ao que parece do céltico e só por ludíbrio, provocado por uma série de aproximações de ordem gráfica, auditiva, de configuração e de sentido, foi defraudada pelo têrmo arca de seu domínio. Orca, no romance lusitânico, significa dólmen e arca, no latim, sepulcro. Todavia não conhecemos texto algum clássico que abone tal qui-pro-quo. É certo que o termo arca foi usado pelos gromáticos na terminologia das demarcações rurais. Alberto Sampaio cita um documento notarial onde se fala em archa petrinea ab antiquis constructa, tendo o cuidado de nos advertir que não se trata do monumento pre-histórico, dólmen. Em refôrço da sua maneira de ver define archa: “um marco especial, composto de quatro paredes, como as guardas dum poço, que os agrimensores edificavam nos quadrifínios e perto das nascentes”. Esta interpretação supomo-la errónea, pois dos exemplos que apresenta parece dever inferir-se o contrário: et inde ad archa qui sta super ipsa villa; et inde per illa archa; per archas antiguas; petra da arca quomo verte agua contra a Ameadela. Aquêles sta, illa, archa antigua reportam-se a coisa estabelecida, inamovível, fora do conceito de oscilação e de actual que há em demarcar a propriedade que se constitue, não se compreendendo tampouco na construtura das "quatro paredes” o que pudesse ser a “petra da arca”, nem de resto tal dispêndio arquitectónico na limitação dos agros.

Arca aqui devia ser orca, mas o facto não invalida o nosso juizo quanto ao emprêgo impróprio e acidental do vocábulo. O povo não o assimilou. Tendo aparecido aqui e além em vez de orca, julgamos a confusão de fresca data, os recta-pronuncia presumindo corrigir a palavra empregada pelo vulgo, estranha, univalente, sem pergaminhos nem certidão nos tombos da linguagem. Com o significado de orca - se não estamos em êrro, e dado que não houve inexactitude do copista trocando o por a, percalço em que, involuntàriamente podia incorrer, dado que nos textos tanto figura a escrita arca como archa, variante bem embora admitida pela morfologia - ficou confinado à nomenclatura dos agrimensores e mais longe, quando se entremostra, é por equivoco. Existe uma aldeola. no concelho de Oliveira de Frades chamada Arca, que Pinho Leal supõe, é verdade que sem outra fórmula de processo, dever o nome ao monumento megalítico que estaria perto da igreja “que sendo ara derivou por corruptela em arca”. Em compensação existe também a localidade de Orca, nas cercanias do Fundão.

O designativo mais popular no país, correspondente a dólmen, é orca, sendo seus sucedâneos: casa da moira e forno dos moiros. Quanto a chamar-se-lhe casa da orca, segundo menção de Leite de Vasconcelos, só por abastardamento ou ampliação arbitrária, irresponsável, da pessoa que o informou.

Se entre orca e arca há um determinado parentesco, o mesmo se não pode dizer de orca e anta, ou de anta e dólmen, homologados abusivamente. Antae é um vocábulo de boa estirpe latina e só a fortiori, deformado na sua estrutura, por-quanto o fizeram transitar do plural para o singular, se adapta ao objecto que pretende representar. Ao contrário do que se lê nas Religiões da Lusitânia, nem hoje nem antigamente tiveram os dólmenes de parte do povo a designação apelativa de antas. A enxertia deu-se mercê duma enganosa aplicação do têrmo. O léxico de Grapaldi De partibus aedium define-o dêste modo: Ipsa vero ostiorum laterae antae appellamus, pilares às portas, devendo entender-se que às portas das casas e das povoações. A palavra tinha a sua prosápia e não entrou no idioma corrente, o que reconhecido por Leite de Vasconcelos torna estranha a sua argumentação quando explana que “foi em virtude duma metáfora, devida à semelhança que a imaginação do nosso povo encontrou entre os rudes monumentos pre-históricos e as peças arquitectónicas chamadas antae que tal denominação se aplicou àqueles.”

O raciocínio é falso e não é preciso grande esfôrço de análise para se lhe percutir a fútil base. Com efeito, se fôsse como pretende o criador da arqueologia nacional, ter-se-ia perpetuado a palavra no idioma com o significado próprio: a viviparição, digamos, que lhe atribuem seria então possível. Assim, repugna admitir que a “imaginação impressionada” não só lhe insuflasse sentido figurado, mas a desconjuntasse em sua forma original para a ajaezar do número singular que lhe repugnava.

Foi da nomenclatura geográfica, gerada nos limbos da língua, que o têrmo anta transitou por manifesto retorce para a linguagem dos arqueólogos. Há uma povoação chamada Antas de Penalva; há outra chamada Antas de Penedono. Há ainda certas pequenas localidades de Antas disto, Antas daquilo, e até univocamente, pelo menos no onomástico oficial, Antas, cujo orago é S. Tiago, no concelho de Famalicão.

Ora, Manuel Severim de Faria viajou um dia pela Beira e traçou relato do que viu. De Antas de Penedono escreveu: “Esta aldeia teve o nome, segundo parece, de muitas antas que por estas terras há, as quais antas constam de três pedras, duas delas que servem como pés e a outra em cima como mesa, em que, dizem, antigamente se faziam os sacrifícios gentílicos, e desta forma vemos muitas em outras partes dêste reino, principalmente na Estremadura e no território de Évora”.

O chantre era homem curioso e gostava de dar explicações de tudo o que lhe dava no goto. O que não reparou foi nos oiteiros singularmente empinados e a modo de plantão que se encontravam na mesma terra, chamados precisamente antas e que a meu ver determinaram aquêle título baptismal. Em sua objectividade pareceu-lhe que atinara com a bôa razão do nome locativo, sem investigar se era bem o próprio e correspondia ao conceito implícito na Tebaida Portuguesa, de Fr. Manuel de S. Caetano Damásio, o primeiro texto português que fala nas sepulturas pre-históricas da Serra de Ossa, com o nome de antas. Essa correspondência, a julgar pelos dados dum e doutro, era nula. Mas não era nariz de santo, embora versasse o assunto uma pena teológica. E assim recebeu o vocábulo alvará de correr.

Fazendo o inventário dos monumentos megalíticos descobertos até então entre nós, o académico Martinho de Mendonça de Pina, que compulsou o Itenerário do chantre da Sé de Lisboa, adopta o têrmo em questão. Provàvelmente não conhecia outro. Que nome lhe havia de dar quando havia aquêle acreditado? Os frades, que amam a erudição e detestam o linguajar do povo
consagraram-no em seguida. O século XX, em que a arqueologia portuguesa tomou notável desenvolvimento e foros de ciência, encontrou-se perante uma terminologia feita. Valeria a pena proceder à filtragem? Imaginamos que sim. Leite de Vasconcelos perfilhou-a, mas vê-se que andou à roda, desconfiado pela soma de argumentos que se viu obrigado a aduzir, alguns dêles forçados, outros especiosos, tudo aquilo querer endireitar a sombra da vara torta.

Mas vejamos as razões que induziram a êrro, na nossa humilde opinião, gente tão douta. Viterbo no Elucidario põe-nos na pista do deslize: “Anta, marco ou marcos grandes levantados ao alto, penedias, terras ou sítios, que ficavam na dianteira, à face, e como à frente de algum castelo ou povoação distinta. Neste sentido dizemos Antas de Penalva, Antas de Penedono, etc. Os antigos chamavam antae às colunas grandes e quadradas que guarneciam a entrada dos templos e palácios: bem pode ser que os monstruosos penedos, que estavam fronteiros de algumas terras notáveis, e por entre os quais corriam as estradas, metaforicamente se chamassem antas, como que faziam átrios, pórticos ou entradas às ditas terras. E, finalmente, se os antigos chamavam antes a qualquer coisa que estava na frente: (espanta) que muitos nomeassem antas as terras ou penhascos que imediatamente se encontravam antes de chegar ao têrmo da viagem, quando esta se dirigia a um certo e determinado lugar? . . ."

Sim, poderia ser isso, retrucar-se-á, o que é ainda possível verificar pela topografia da região, mas em Antas de Penedono, se não há, houve dos tais monumentos megalíticos, em Penalva do Castelo, no sítio do Rancozinho, também existe um pelo menos, e por sinal avantajado. Coincidências, responderemos. Antas de Penedono fica a 14,5 km de Penedono e seria absurdo que se formasse o onomástico, associando o nome da coisa a localidade a tal ponto distante; sendo certo que o monumento megalítico não representava circunstância de tanto relêvo para refranger sôbre ela. Quem se importava na alba do nosso povo com os dólmenes que exameavam pelos descampados? Ter-se-iam sequer apercebido dêles? É até certo ponto legítimo conjecturar que não, tendo em vista quanto o onomástico rural é prolixo e miüdinho, cambiando de nome de quinhentos em quinhentos metros. Mais lógico seria que a admitir o fenómeno de impressionação, a que se refere Leite de Vasconcelos, as denominações se fizessem indo buscar o primeiro elemento da combinação à orografia: assim, Oiteiro das Antas, Vale das Antas, Portela das Antas, etc. Nos cadastros prediais da Beira são freqüentes as designações como esta: Vala da Orca, Chã da Orca, etc.

O que se argumentou quanto a Antas de Penedono se aplica a Antas de Penalva, que dista cêrca de uma légua de Penalva, devendo acrescentar-se o que Martins Sarmento confessa por descargo de consciência, está-se mesmo a ver, no relatório Expedição Científica à Serra da Estrêla quando dá conta dos dólmenes que vai encontrando: “Não vimos que o nome de anta fôsse conhecido”. Seria o cúmulo que subsistissem o objecto nomeado e o nome locativo motivado pelo objecto, e o povo não soubesse estabelecer nenhuma espécie de relação entre uma e outra coisa. A custo se poderia explicar tal anormalidade por obliteração ou degenerescência das palavras.

Estácio da Veiga aponta na sua carta arqueológica do Algarve o sítio de Antas da Luz como devendo o nome a anta. Mas parte do demonstrado para o demonstrando, não havendo desde então até agora aparecido provas de que ali existam megalitos. Antas, antinhas e antão devem ser a mesma coisa com o diferencial no tamanho. Na estrada de Moimenta da Beira para Barrelas está Stº Antão em cima do monte, oiteiro soberbo, insulado na planínie.

Pode ainda acrescentar-se que em Antas, de Famalicão, não se sabe o que seja anta com a significação megalítica, nem monumento megalítico, devendo considerar-se que a localidade está no pináculo duma colina. Note-se ainda que seria para estranhar, dado o desenvolvimento lingüístico paralelo de Portugal e Espanha, que o dicionário castelhano não registasse o termo com o significado que lhe atribuem os nossos arqueólogos. Até o século XVII pode dizer-se que o património vocabular é comum. As divergências são de ordem gramatical, mas não léxica. Essa apenas começou com a influência da francesia.

A palavra portuguesa e naturalmente popular que dispensa dólmen é orca. Assim aparece empregada em todo o Norte. O povo do Alentejo serve-se da palavra anta? Permitimo-nos crer que, não tendo ali curso a palavra orca, tampouco o tem a palavra anta, a menos, a menos de aclimatação artificial, provocada pelas investigações arqueológicas que parece têm revestido ali um incremento que fêz época. O próprio Leite de Vasconcelos, que a olha como intrometida, acaba por reconhecê-la no prólogo das Religiões da Lusitânia, manifestamente de factura posterior à composição do trabalho:... “explorei umas dezassete orcas ou dólmenes da idade da pedra polida. . .”

O onomástico não teria grande importância se esta palavra orca não fôsse tão misteriosa como o objecto que representa, e ser possível que a certidão de baptismo, baptismo primevo,
pre-romano, contribua a derramar alguma claridade sôbre o lusco-fusco do assunto. Dever-se-á procurar a origem da palavra no gaélico? Haverá alguma analogia entre orca e Órcades, as ilhas Órcades, tão afamadas pelas suas construções megalíticas, se bem que Reclus lhes dê uma etimologia, embora dubitativamente, que contraria a aproximação?

E terá algum parentesco, próximo ou remoto, com orca, talha de barro, ou com orcus, inferno?

Só os cegos desconhecem qual seja a feição comum das orcas : uma lapa artificial, mais ou menos subterrânea conforme o desnudamento do montículo de terra que lhe fizerem à volta, composta duma câmara sôbre o trapezoidal, com dois a três metros e meio de diâmetro, e da galeria comunicante, por via de regra entulhada, de seis a oito metros de extensão. Tanto a galeria como a câmara são formadas por grandes lajas erguidas a pino, capeadas por outras, mais altas as da câmara, pois que esta sobrepuja a edificação e a galeria rompe do sopé da mamôa, ao nível do solo, o nível ante, com entrada portanto rasteira, de cova de bicho. A câmara é coberta por uma só lancha de proporções descomunais, sirva de exemplo a orca da Barroza cuja cobertoira mede de área 10 m2,50, e foi calculado o seu pêso em mais de doze toneladas. Também os esteios são de bruta conformação, a grandeza das peças tendo contribuído de modo eficaz para que o homem na sua sordidez e ignorância não tenha destruído de todo a obra ciclópica dos antepassados. Nalgumas orcas, que foram demolidas e aproveitada a pedra, perdura a memória no onomástico campestre; jazem outras meio destroçadas, falhas mormente da galeria ou das lanchas que a cobriam, por serem mais maneirinhas e fàcilmente conciliáveis com as necessidades do patego. Esta circunstância teria induzido Bosch Gimpera, e com êle Mendes Correia, a classificar na fase final do neolítico uma pretensa orca sem corredor, o que nos custa a compreender, dado que a mamôa constitui o aparelho sine qua non do edifício megalítico e o corredor a imprescritível via de acesso à câmara através da mamôa.

Embora avaliando à priori, necessàriamente, não andará fora de acêrto supor que apenas tenha chegado aos nossos dias menos que uma décima parte das orcas que existiam ao fim da idade da pedra. É arbitrário fantasiar um povo especificamente construtor de dólmenes. Estava na determinante da evolução que se edificasse assim, como mais tarde se haviam de erguer castelos, modernamente chalés suíços, e o engenho do homem e a sua pertinácia exerceram-se nêsse sentido. Foi uma longa e decerto morosa fase. Quando essa fase ocludiu com acolher-se o homem às citânias muradas, provido do seu machado de ferro, da sua lança, talvez da sua sachola e isqueiro, desenvolvido o instinto do clan, a mole que erguera prevaleceu vazia e misteriosa ao passo dos séculos. Ainda lá está e nós preguntamos : que era?

A construção das orcas, com os seus volumes tão fora de medida para a fôrça do homem e os meios mecânicos de que dispunha, assombra, e nada mais simples e exequível. Exigiria o concurso de muitos braços, centenares de braços, mas se a obra era de interêsse colectivo, como tudo parece inculcar, uma vez na vida o solitário individualista quebraria os seus hábitos e viria associar-se com os próximos na tarefa planeada. Energia muscular sempre o homem teve na mesma proporção, segundo emite a fisiologia. Lajas maciças encontrava-as desagregadas nos oiteiros ou à superfície das pedreiras. Nas aldeias do Norte ainda recentemente se construíam casas de dois pisos e muros de cêrca com as chamadas pedras de arranque. Estas pedras, em geral de granito, encontram-se em jazigos laminares à flor do solo; separadas por lezins tão impecàvelmente geométricos que dão a impressão de terem sido aparelhadas. Daí o equívoco estabelecido com algumas orcas em que olhos menos experimentados viam trabalho manual de pico. Descosidas de seus leitos por obra da corrosão geológica, ou desligadas ao forte impulso, não havia mais que removê-las para o lugar escolhido. Ainda aqui, o problema não requeria mais que esfôrço e paciência. Esfôrço para deslocar, rolando-a sôbre rôlos de pau, empurrando-as com pancas e a ombro, a bisarma colossal; paciência para percorrer o longo caminho, comparada à da formiga a acarretar dezenas de vezes o seu pêso. Mas o homem daquelas idades tinha todo o
tempo por seu.

Quem quiser pode ainda assistir na povoação sertaneja ao transporte de grandezas similares, lareiras por exemplo, pelos mesmos processos, salvo o emprêgo duma ou doutra alavanca de
ferro, que em ültima análise não é de necessidade absoluta e da qual o entendimento pode abstrair sem sacrificar a viva realidade.

A lancha - chamam-lhe lancha por se tratar de pedra achatada - tanto vem ao arrastão e aos tombulões do oiteiro como corsada na zorra por duas ou três juntas de bois. Uma vez dentro do recinto próprio, há que içá-la a poder de braço ao pilar, que se lhe fêz de alvenaria sôlta à altura do primeiro piso, que não se sabe o que seja guindaste ou sarilho. É o mais árduo da obra. Mas passa-se palavra pela aldeia; pouco a pouco vão acudindo quantos homens àquela hora se encontram disponíveis no lugar. É uma turba-multa; cospem às mãos; em voz cantada o mestre dá a cadência para que ajustem todos o alento ao mesmo ritmo - e a pedra lá vai. Em breve espaço fica arrumado o leixão, à custa, quando muito, da cabeça dum dedo e, sem dúvida alguma, dumas canadas de vinho, bebido à roda pela mesma caneca, como já referia Estrabão.
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