sábado, julho 02, 2005

Gil Vicente, beirão (1/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

O ilustre professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. sr. Dr. Costa Pimpão, houve por hem publicar em separata um artigo que foi inserido na revista Biblos e em que pretende destruir e quási reduzir a pó a tese que na Beira Alta sustentei sôbre a naturalidade do fundador do teatro português.

Passado algum tempo, depois da publicação do meu estudo, eu soube que o ilustre Professor escrevia para Chãs de Tavares a pedir informações sôbre a existência dos topónimos por mim empregados e em que alicercei as minhas afirmativas. Em uma das vezes, segundo me informaram, o pedido era feito com muita instância, acrescentando que, caso não recebesse as informações que desejava, ver-se-ia obrigado a vir de longada, até esta região da Beira.

Êstes propósitos do sr. Dr. Costa Pimpão impressionaram-me muito agradàvelmente, visto serem reveladores não só do interêsse que lhe mereceu o meu estudo, mas mais ainda da incerteza em que ficaram colocados os comentários que fez à Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla, na parte referente à naturalidade de Gil Vicente.

Quando publiquei o meu estudo na revista Beira Alta, eu não tinha conhecimento das eruditas notas do sr. Dr. Costa Pimpão, acumuladas em tôrno da Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla. Se as conhecera, não deixaria de a elas aludir na intenção de lhe significar o meu desacôrdo em relação, evidentemente, ao caso da naturalidade do dramaturgo. Só mais tarde, é que o livro me veio de Coimbra e assim não a tempo de as refutar.

Felizmente a separata da Biblos dá-me agora ensejo para o fazer e assim demonstrar quanto é vão e inâne o esfôrço empregado no sentido de negar, ou pelo menos pôr em dúvida, a afirmação de que Gil Vicente era da província da Beira.

É certo que não foi o meu estudo que deu origem à sua réplica, mas, sim, as aceradas ironias que lhe dirigiu o distinto director da revista da Beira Alta. Foi isso que, como o sr. Dr. Costa Pimpão confessa, o moveu a vir à disputa.

Só tenho que me felicitar peja benéfica intervenção do sr. dr. Alexandre de Lucena Vale, que, levando aquele ilustre Professor à réplica, me vai permitir mais uma vez pôr em destaque, não por um subjectivismo bairrista, mas pelo estudo objectivo da obra de Gil Vicente, a veracidade da minha tese.

Não é, porém, o comentário cheio de graça e ironia do sr. dr. Lucena Vale que está em causa; o que está em causa é o meu estudo que constitue o objecto principal da crítica do sr. Dr. Costa Pimpão.

Podemos dividi-la para melhor clareza e lógica interpretação em duas partes. A primeira é aquela que mais me interessa por dizer respeito à exactidão dos topónimos empregados por Gil Vicente e por mim identificados com alguns lugares da freguesia de Chãs de Tavares; a segunda terá por fim demonstrar o nenhum valor dos argumentos opostos à tese que defendemos.

Vejamos a primeira:

O sr. Dr. Costa Pimpão começa por afirmar que eu, servindo-me de «argumentos um tanto requentados, não deixo, porém, de o fazer com precisões mas que o são só na aparencia, cometendo erros de facto e que, acusando-me destas minhas faltas, o faz com pezar».

Antes de entrar na análise destas acusações, eu quero por minha vez, formular tamhém o meu libelo contra o sr. Dr. Costa Pimpão por alterar coisas que eu disse e atribuir-me outras que eu não disse, e faço-o também com pezar. Como se vê ambos somos pessoas dotadas de bons sentimentos...

O primeiro topónimo que vem à baila é - Pena Furada - que eu identifiquei com - Pedra Furada - visto a sinonimia dos vocábulos, pois se pena queria significar pedra e, se na evolução da língua muitos termos desapareceram para dar lugar a outros de equivalência verbal, não deveria haver dúvida sôbre a identificação do lugar.

O sr. dr. Costa Pimpão acha, porém, difícil de aceitar a mudança de pena em pedra. Se atendermos à origem céltica do vocábulo - penn - veremos que dela advém - penedo - e, sem dificuldade, compreendemos a transição para - pedra. Sempre em Portugal tal vocábulo, mesmo de origem latina - paena - teve o mesmo significado de penedo ou pedra.

Já no Livro de Linhagens aquele "Dom Diego Lopez ouuyo contar muyta alta voz huuma molher em çyma de huuma pena."

Passemos ao das Corigas. Eu não afirmei que existisse hoje na toponímia local a expressão - Vale das Corigas mas, sim, Vale das Corgas. Identifiquei um com o outro, admitindo a síncope do - i - e assim a alteração fonética do termo - Corigas.

Se o sr. Dr. Costa Pimpão me objectasse que o - i ¬ sendo tónico, não poderia cair, eu teria de explicar a alteração fonética com algumas excepções, mas tal não fez, limitando-se a incluir na minha toponimia o vocábulo - Coriga, como se, de facto êle hoje existisse.

Não se esqueça o que no meu estudo afirmei àcerca das alterações a que estão sujeitos os nomes toponímia rural. Vou repetir o que então disse:

É preciso notar que Gil Vicente escreveu, já lá vão quatro séculos, e que em tam longo período a toponímia rural, naturalmente sujeita às leis da morfologia e fonética, se alterou senão no radical pelo menos na sua parte terminal.

Também se me atribue a afirmação da existência de - Vale de Penados. Tal não é verdade. Muito expressamente eu disse que tinha encontrado - Vale de Penedos e não - Vale de Penados. Não me pode pois ser atribuida a designação dum nome não identificado.

Passaremos agora ao Monte dos Três Caminhos.

Começa o sr. Dr. Costa Pimpão por dizer que nenhum dos seus informadores conseguiu achar rasto do Monte dos Três Caminhos, mas que, «no entanto, um dêles, julgou, por vagas informações recebidas, poder identificar tal local com um terreno cultivado, onde há vinhas, situado a nordeste de Matados, e hoje conhecido por Péguinhos e Paço Mourão

Felizmente os informadores do sr. Dr. Costa Pimpão lá foram dar com o sitio denominado Monte dos Três Caminhos, hoje cultivado de vinhas.

Foi o que eu afirmei no meu estudo, dando também por cultivado aquêle local. Conserva actualmente tal terreno a velha designação de Monte dos Três Caminhos se bem que nenhum já exista.

As alterações que a propriedade privada sofre através dos tempos, trazem consigo a mudança das vias de comunicação rural para outros lugares, ficando as extintas encorporadas na propriedade particular.

A designação do Monte dos Três Caminhos é tam antiga que ainda hoje se conserva apesar de por lá não passar caminho algum.

Confessa o meu ilustre opositor que, de facto, existe um Vale de João Viseu, mas acrescenta que «duvida da sua antiguidade» e isto, porque lá reside uma família com o apelido Viseu.

O que se deveria ter averiguado é se essa família tomou o nome de Viseu por ir habitar um local assim designado ou se aí se propagou através dos séculos. O sr. Dr. Costa Pimpão levanta a dúvida sem nenhuma razão de ser, pois o meu informador (eu também tenho informador que vai para além dos 80) afirma que conhece de visu tôda a freguesia das Chãs e sempre desde tempos imemoriais ouviu designar aquele local pelo nome de Vale de João Viseu.

O facto concreto e real é êste: Gil Vicente faz assobiar Mofina Mendes no Vale de João Viseu.

Não vale a pena insistir.

Alqueidão foi por mim identificado com - Aljão e vem agora o sr. Dr. Costa Pimpão falar-me em Alfão. Isto nos basta para não insistir nêste topónimo.

Segue-se agora o célebre Vale do Covelo, e célebre lhe chamo por muitas vezes aparecer na obra do comediógrafo. De facto, a expressão usada por Gil Vicente é - Vale de Cobelo - e não Vale de Covelo, mas não faça dúvida a diferença entre os dois nomes, pois na passagem do português arcaico para o moderno o - b - brando transformou-se em - v - brando. É uma regra fonética com algumas excepções, é certo, mas que não admite dúvidas. O professor Dr. José Joaquim Nunes, na sua Crestomatia Arcaica, LXVI, da introdução, assim o afirma, dizendo «b medial permuta com a continua branda correspondente v.»

Portanto era natural e lógico que Gil Vicente dissesse - Cobelo - e que na linguagem moderna se diga - Covelo.

O topónimo - Vilarinho - mereceu ao sr. Dr. Costa Pimpão o reparo de ser um nome vulgar em Portugal. Será, não digo que não, mas o caso é que êle foi empregado por Gil Vicente e também se encontra localisado na freguesia das Chãs. E aqui está a crítica feita aos topónimos espalhados entre as povoações da freguesia de Chãs de Tavares e que constituem, no dizer do ilustre Professor, um magro pecúlio por mim forrageado nos autos de Gil Vicente..

O pecúlio será magro de facto, e nem eu tive a preocupação de fazer um trabalho exaustivo sôbre a toponímia vicentista, mas colhido dentro duma freguesia perdida entre montes e vales ignorados, creio que é sufientemente elucidativo para o fim que temos em vista.

Os argumentos opostos pelo sr. Dr. Costa Pimpão no intuito de fazer vêr que na obra vicentista se encontram especificados muitos outros nomes, além daqueles que eu indiquei, não destroi de forma alguma nem sequer diminue a real importância da toponímia de Chãs de Tavares.

O que dá valor aos topónimos por mim invocados senão o facto de todos estarem próximos uns dos outros e assim localizados na mesma freguesia?

Qual a área administrativa que, em conjunto contenha mais topónimos referidos por Gil Vicente, do que a freguesia de Chãs de Tavares?

O que impõe veracidade à minha tese, sob o ponto de vista toponímico, não são referências singulares e isoladas, mas um conjunto de nomes rurais agrupados num espaço
de diminuta extensão.

Apesar do exposto, vamos acompanhar o sr. Dr. Costa Pimpão pelas povoações onde êle andou, também, forrageando elementos que destruissem as minhas asserções. Na Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla indica os versos:

Afonso Vaz
em fronteira e Maçarraz,
como vai o trigo lá?


e logo conclue que um alentejano deveria julgar Gil Vicente natural dessa província...

Creio que, em boa lógica, tal pregunta nunca poderia levar-nos a essa dedução. Seria o caso de alguém que não conhecendo a naturalidade do sr. Dr. Costa Pimpão, ao ouvi-lo informar-se dos trigos do Alentejo, ficasse convencido de que o ilustre professor era daí natural...

Não! A referência a Monsaraz é um caso singular, como tantos outros, espalhados pela obra de Gil Vicente.

Fala-nos na Farsa dos Almocreves para nos apontar as várias localidades por onde Pero Vaz andou com os seus mus. Êste Pero Vaz, note-se, era de perto de Viseu, o que mostra mais uma vez a preferência de Gil V icente por êstes recantos beirões.

Pois, sendo êle almocreve não deveria andar assim por muitos e variados lugares no cumprimento dos fretes 4ue tinha de executar?

A que propósito vem pois para a nossa tese o facto do almocreve dormir num lugar, ao outro dia seguir para outro, e assim seguidamente?

Um almocreve nunca foi um sedentário e era natural que percorresse montes e vales, visto ser, naqueles recuados tempos, o único meio de ligação entre as diversas províncias. Tipo curioso daqueles tempos e que, por muitos séculos, existiu na nossa província, cuja pintura magnífica foi pincelada com mestria no "Malhadinhas" de Aquilino Ribeiro.

Falta para concluir o estudo da toponímia, invocada pelo sr. Dr. Costa Pimpão, fazer referência a um artigo do sr. dr. António Dias, publicado no "Diário de Coimbra".

No concelho de Seia há dois topónimos iguais aos da freguesia de Chãs de Tavares -Pedra Furada e Covelo. Podem êles identificar-se com os empregados na obra vicentista? Creio que não.

Pedra Furada não está fronteira à Virgem da Estrêla como em Chãs, condição indispensável para a identificação ser completa, mas sim, na freguesia de Santiago. Nunca o penhasco que está fronteiro à ermida da Nossa Senhora da Estrêla foi conhecido por tal designação.

Também Covelo do concelho de Seia não se pode identificar com o topónimo de Chãs de Tavares, pois nesta freguesia a expressão usada é - Vale de Covelo - e é esta precisamente a que Gil Vicente empregou. Portanto Covelo e Vale do Covelo são diferentes, não havendo necessidade, por exigência métrica, de antepôr a Covelo o vocábulo - Vale.

E é tudo 4ue o sr. Dr. Costa Pimpão contrapõe aos topónimos da freguesia de Chãs de Tavares.

Com um pouco de boa vontade teríamos Gil Vicente natural de Seia, diz êle, com velada ironia... Se assim fôssse, nem por isso deixaria de seI beirão, facto que o ilustre Professor nega ou pelo menos põe em dúvida, pretendendo desprendê-lo da província a que pertence.
Site Meter