domingo, julho 03, 2005

Gil Vicente, beirão (2/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

Passaremos agora a análise da segunda parte do artigo.

Nêle há a considerar três pontos de vista.

1) a província da Beira não é na obra de Gil Vicente mais do que um elemento de arte;
2) nenhuma simpatia que o comediógrafo sentia por esta província;
3) meios de que se serviu para a aquisição dos seus conhecimentos àcerca da mesma província.

Vejamos cada um dêstes pontos em separado.

1) Diz o sr. Dr. Costa Pimpão que «adopção do pastoril português não pode limitar-se ao da inquirição da naturalidade de Gil Vicente nem nêste encontra a sua solução

Quem é que tal disse? Creio que no meu estudo não fiz nem poderia fazer, por absurda, a afirmação de que o gênero pastoril foi de espontânea criação de Gil Vicente. Se o dissesse, faria uma asserção gratuita contrária à evolução a que as literaturas de todos 0s países estão sujeitas sob o influxo da mais íntima interdependência social.

O que se afirma é que, sendo Gil Vicente natural da Beira, êle pôde, por êsse facto, melhor do que qualquer outro escritor, encarnar a corrente literária que a Renascença difundiu através de Sanazarro, pela França, Espanha e depois entre nós, se é que ela não vinha dum passado mais distante.

Tôdas as épocas literárias encontram no génio de alguns homen-s os seus máximos expoentes,

Se Gil Vicente não fôsse beirão, êIe nunca poderia dar ao seu teatro aquêle colorido e realismo provinciano.

Da Beira tirou êle a matéria plástica das suas criações e nunca o poderia ter feito com tanta evidência se fôsse um estranho a esta província.

Criou êle o estilo pastoril ou bucólico? Não. O que fez foi, guiado pelas suas altas qualidades de observador fundar o teatro português dentro dos moldes que a literatura da época lhe oferecia.

Caída a novela cavalheiresca com o fechar do siclo da Idade-Média, outras formas literárias surgiram em sua substituição que naturalmente se reflectiram, ainda que tarde, na literatura portuguêsa.

O berço beirão nunca foi por nós invocado como condição sine qua non para a admissão do pastoril português, mas, sim, o ambiente próprio para nêle melhor se objectivar êste genero de literatura.

Em conclusão: Gil Vícente não criou o que já estava criado nem ninguém tal afirmou, mas, sim, que as condições mesológicas que sôble o seu espírito actuaram o tornaram o melhor intérprete do pastoril português, que o seu génio alargou e desenvolveu. O rústico ambiente que lhe serviu de berço explica sem necessidade de outros meios a objectiva realidade da sua obra.

Não se façam confusões onde não há razões para elas. A Beira é para o sr. Dr. Costa Pimpão um elemento de arte. Absolutamente de acôrdo. A questão está em saber como Gil Vicente adquiriu êsse elemento e é ai que a nossa divergência começa.

Quere o sr. Dr. Costa Pimpão restringir o seu estudo a êsse elemento de arte e assim só colher a emoção estética que dêle advém?

Está isso fóra dos meus propósitos, pois as minhas investigações obedeceram a razões de ordem biográfica e não a razões de ordem emocional.

O elemento estético é decerto para a crítica científica duma singular importância, pois por êle se penetra mais profundamente na alma do artista e melhor se apreende tôda a sensivel beleza do seu génio criador, quer sob o ponto de vista emotivo, quer mesmo sob o seu ponto de vista formal.

Assim o pensa Guyau no seu livro "L'Art au point de vue sociologique", pág. 48, sem contudo pôr de parte as relações que prendem o artista ao meio em que o seu espírito se formou, e assim aquela série de princípios que condicionam a teoria Literária de Hipólito Taine.

Análise de uma obra de arte restrista ao elemento estético é incompleto pois só por si não consegue esclarecer todo aquêle conjunto de circunstâncias que levaram o escritor à realização da sua obra e que nêle actuaram, não só sob o ponto de vista psicológico, mas também sob o ponto de vista sociológico.

Se no estudo duma obra de arte puzermos de parte as determinantes que origináram a sua criação e nos limitarmos ao simples conceito estético, poderemos fazer crítica idealista, mas nunca uma critica cientifica.

É preciso ir mais longe, isto é, conhecer o criador da obra de arte, seus múltiplos aspectos e portanto as suas iniciais origens.

Desta forma a análise literária identifica-nos o autor com o meio donde provém. É o caso de Gil Vicente. Outras vezes é a biografia do escritor que nos dá a chave para a interpretação da sua obra; é o caso de Bernardim R.ibeiro.

Mas o sr. Dr. Costa Pimpão não quere ir tam longe, dizendo que "o determinismo do ambiente não é aqui de evocar, e por uma razão: é que a utilização das Beiras - como já tive ocasião de frisar no meu trabalho citado - não tem nada de lisonjeiro para esta província".

É uma afirmação sem fundamento que mais adiante apreciaremos.

Há um facto que eu quero já notar a absoluta contradição em que o ilustre Professor cai, quando afirma que só sob o ponto de vista estético lhe merece atenção a obra vicentista e não sob o ponto de vista biográfico, pois é-lhe indiferente que Gil Vicente seja da Beira, do Minho ou do Alentejo.

Sendo-lhe assim indiferente a solução do probema que eu me propuz tratar, porque razão tanto se preocupa em diminuir e quási querer pulverizar tôda a argumentação atinente a demonstrar a naturalidade heirã de Gil Vicente?

Mas tal não acontece, pois quem ler o seu artigo e os comentários que sôbre êste ponto bordou na Tragicomédis pastoril da Serra da Estrêla não pode deixar de concluir que o problema da naturalidade de Gil Vicente não o preocupa pouco mas muito...

Singular contradição que me leva, sem querer ser desprimoroso, a repeitr a cálebre frase de Horácio - quandoque bonus dormitat Homerus -.

2) Vejamos agora o valor da afirmativa de que Gil Vicente nenhuma simpatia tinha pela província da Beira.

Vamos demonstrar o contrário, começando pela análise dos argumentos aduzidos pelo ilustre Professor. Mas, antes de o fazer, eu não quero deixar de afirmar o direito que o escritor sempre teve pela história fóra, de recorrer ao epigrama, à sátira e a oatros processos de crítica no propósito de pôr em destaque os defeitos ou vicios dos seus conterrâneos. A naturalidade não importa renúncia nem limitação das facuIclades críticas do escritor.

Precisamente o conhecimento da região fornece ao artista mais ahundante e melhor material para a criação das suas personagens.

Já no teatro grego, o comediógrafo crivava de ironias 0s seus patricios de Atenas, não escapando o próprio Sócrates. Que diremos de Plauto, satirizando a sociedade romana!

A Idade-Média documenta duma forma inequívoca o direito que o escritor tinha de trazer para o palco todos os tipos grotescos, ainda que êles fôssem da sua provinda ou cidade natal.

Assim acontece com um dos fundadores da com:édia francêsa, Adam de La Halle que, a-pesar de ser da cidade de Arras, não deixou de crivar de ironias os seuS conterrâneos. Donde advieram a Molière os seus sofrimentos morais, senão daqueles parisienses que se viram visados pelo seu teatro?

Não se pode admitir a ideia de que o caracter de Gil Vicente fôsse diminuido pelo facto de ridicularizar a Beira, o que não é verdade, e engrandecido o de Sá de Miranda por tomar a defesa de Coimbra, em virtude dos desprezos que certos cortezãos por ela sentiam.

Creio que Sá de Miranda, ao escrever essa Carta não fazia teatro, mas, sim,praticava um acto de desafronta pessoal.

O paralelo,pois,é sôbre todos os pontos de vista inadmissível.

Que argumentos apresenta o sr. Dr. Costa Pimpão para nos mostrar a nenhuma simpatia que Gil Vicente sentia pela Beira? Temos de recorrer para isso não só ao seu artigo que estamos analizando mas também aos comentários da sua Tragicomédia pastoril da Serra da Estrêla.

O sr. Dr. Costa Pimpão diz que Gil Vicente se serviu de linguagem estranha ao trazer à côrte pela primeira vez, as graças dos pastores, não começando pela encenação dos costumes dos seus co-naturais, e acrescenta: "isto não é negar a sua origem beirã; é, simplesmente, opor uma dificuldade aos partidários dessa origem."

Os factos apontados são de tam fácil explicação que de forma alguma dêles se podem tirar os efeitos que o sr. Dr. Costa Pimpão pretende.

Pela mão de D. Leonor, viuva de D. João II, de quem Gil Vicente era ourives lavrante, foi êle introduzido na côrte a fim de representar o seu primeiro auto perante a Rainha D. Maria, mulher de D. Manuel, na ocasião do nascimento do príncipe que mais tarde deveria ser D. João III.

Por que razão o fez em língua estranha? Ouçamos o que a tal respeito diz o sr. dr. Queiroz Velozo. na História da Literatura Portuguêsa de Forjaz de Sampaio, pág. 29, vol. II.: "Em homenagem a esta rainha e para que ela bem o entendesse pois estava em Portugal há pouco mais de um ano e meio, foi o auto escrito, em castelhano, linguagem tam usada então no paço mercê dos sucessivos casamentos dos nossos príncipes com filhas dos reis católicos que no Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende, trinta e seis poetas portugueses se serviram dêste idioma."

O uso da linguagem espanhola e assim o bilinguismo tornou-se corrente entre os nossos escritores, sem contudo os desnacionalizar.

Gil Vicente, servindo-se pois do castelhano, fê-lo pela necessidade de se tornar compreensivel não só pela raínha, mas tamhém pela comitiva que com ela veio para Portugal.

Fala-nos o sr. Dr. Costa Pimpão na encenação dos costumes.

Eu não sei bem qual o significado que deva atribuir a tal expressão.

Se se pretende com ela aludir, como parece, ao Auto da Visitação não reflectir os costumes da Beira e não ser o espelho da sua própria etnografia, eu creio que o reparo não é de admitir, pois contra êle protesta a essência da peça.

Poder-se-há dizer que o monólogo dêste auto foi escrito sob a influência de Juan del Ensina, mas o resto da peça reveste modalidades distintas, que sem esforço, podemos integrar na vida pastoril da nossa região.

Com efeito Gil Vicente, encarnando a figura do vaqueiro, vem acompanhado de trinta pastores que oferecem à raínha presentes fundamentalmente regionais, como são ovos, leite e mel.

A figura principal da peça, que é o vaqueiro, foi sempre considerada, como representando um pastor da Beira.

Assim o entende Simões Dias, na Literatura Portuguêsa, a pág. 165, dizendo: "Gil Vicente representou de vaqueiro da Beira no quarto da rainha para a distrair".

Pelo exposto verifica-se que tais dificuldades se transformam em mais uma prova a favor da naturalidade beirã.
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