domingo, julho 03, 2005

Gil Vicente, beirão (3/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

Passaremos agora a analisar os argumentos com que o sr. Dr. Costa Pimpão pretende exemplificar a nenhuma simpatia de Gil Vicente pela Beira.

Para êsse fim recorre às duas farsas - Juiz e Clérigo da Beira - onde no seu entender, é ridicularisada esta Província.

O que pretendeu Gil Vicente no Juiz da Beira?

Não foi de certo deprimi-la, mas sim, à organização judiciária dessa época, simbolisada na pitoresca figura dum juiz ordinário, sem contudo lhe diminuir a força do seu caracter e assim a coragem forte e sincera de que é dotada a gente da Beira.

A análise desta interessantíssima figura e assim o objectivo que Gil Vicente teve em vista com a sua criação foi com mestria descrita pelo ilustre director da Beira Alta, sr. dr. Lucena e Vale. Vamos transcrevê-Ia da brilhante conferencia realizada em Lisboa na Casa das Beiras, e cujo titulo é: "Beira Alta, Solar da R.aça".

Ouçamos o que êle diz e que como resposta oferecemos ao sr. Dr. Costa Pimpão;

"Dentre tantas figuras beiroas, que, desde Viriato ao Malhadinhas de Aquilino R.ibeiro, esmaltam as páginas da história e literatura nacionais, agora mesmo me acode uma, nêste ponto bem típica, que criou há mais de quatrocentos anos, um dos maiores gênios das letras portuguêsas. Todos a conhecemos: é o Pero Marques da farça vicentina, aquêle Juiz da Beira que, acusado de não saber ler a Ordenação e de sentenciar sem critério, Gil Vicente emprazara em nome de D. Joio III a fazer, em Lisboa, uma audiência na Côrte.
Homem da serra, com o seu julgado lá para as bandas de Viseu, Pero Marques é, como todo o serrano, rude de maneiras e de língua, mas esperto, ao menos espertalhão, tipo de ôlho aberto, com o seu quê de velhacaria bem intencionada, inofensiva, como o revela a sentença proferida naquela causa em que quatro irmãos irreconciliáveis pretendem, cada um para si, o jumento que haviam herdado do pai.


O juiz ouve-os pacientemente, àemoradamente. E não podendo - é obvio - partir o burro às postas nem deixar o pleito sem despacho, assim se livra maliciosamente do apêrto:

Julgo por minha setença
Que o asno seja citado
Para a primeira audiência.

Com ser homem rude, habituado aos alcantis da Beira, Pero Marques não deixa de ser homem desembaraçado, sem papas na língua. .
Nem desta feita o empeceram as galas e tafularias da côrte de D. João III.


Longe de se intimidar com elas, antes encarando sem enleio os circunstantes, logo desassombradamente se.confessa tal qual é:


Homem de boa ventura
Empacho nunca m' atura
E hei-de dizer o meu
Como «tuaIquer criatura.

E adiante, perante aquêle espadachim brigão, gabarola, implicativo, Pero Marques não se contém. E quando, em seu atrevimento, o homem chega ao desafôro de ameaçar:

O asno, Juiz, me dae.
E senão...

Pero Marques ergue-se, avança, e explode:

... Como se não?...

E logo o brigão, manso perante os pulsos cabeludos do rijo juiz da Beira:

Se não, não sei que vos diga.

E Pero Marques:
Cuidei que isso era briga. . .
Não sejais sandivarrão
Qu' eu tambem não sou formiga,
Tende vós em vós aviso,
Ou darei tantas em vós
Que vos faça ter mais siso.

É manifesto que Gil Vicente, ao dar-nos um tal Pero Marques, não pretendeu caricaturar apenas o juiz rústico e labrego das comarcas sertanejas do Portugal de quinhentos; quis também. uma vez que o juiz era das bandas de Viseu, dar-nos algumas das feições mais acentuadas do homem da Beira: o seu ânimo franco e desembaraçado que o leva a dizer o que pensa sem rebuço nem empachos, e o génio alevantado. assomadiço que acode a castigar sem demora embófias de fanfarrão. E acertou, confessemos. Num defeito? Numa virtude?
Talvez numa e outra coisa afinal, porque se através dos tempos esta rópia de tesuras esmocou muita cabeça por feiras e arraiais, também obrou maravilhas em muitos lances da história
."

Êste tipo de juiz sagaz mas ao mesmo tempo inteiriço no cumprimento da sua missão ainda no século XVIII ou principios do século XIX o encontramos encarnado naquêle célebre juiz de Barrelas que tam típico se tornou pela bizarra forma da sua sentença.

Como o sr. Dr. Costa Pimpão vê não há desprimores para a Beira mas apenas afirmação de qualidades que apesar de rudes, não deixam de ser honrosas.

Por sua vez, o Clérigo da Beira nada tem de magoante também para esta província. A crítica literária tem-o sempre olhado como uma charge a Sá de Miranda, inimigo de Gil Vicente e, como talo exprimi no meu estudo.

O furto da lebre e dos capões - note-se - não é feito por gente da província da Beira, mas sim, por moços do Paço.

Onde está, pois, o propósito de a deprimir nas duas farsas - Juiz e Clérigo da Beira?

A sua análise não comporta, de forma alguma tais conclusões. Mas há mais factos apontados no sentido de tornar risível a província da Beira?

Referindo-se ao Triunfo do Inverno cita os seguintes versos:

Que mas cousa sam vilãos
e a gente popular,
que nam sabem desejar

senam hus desejos vãos,
que nam sam terra nem mar.
De nenum bem dizem bem,
nem o sabem conhecer
mormuram sem entender
e ainda o peor que tem,
que seu dano he seu prazer.

O traço psicológico dos vilãos, descrito nestes versos, é incontestávelmente duma grande realidade e traduz não o desejo de ocultar defeitos comuns a tôda a natureza humana, mas apenas pintar o caracter da gente popular.

É a tôda a província da Beira que Gil Vicente se refere? Evidentemente que não. As suas censuras não vão para tôdas as classes constituitivas da sociedade de então, mas apenas para os vilãos, gente popular com a qual êle esteve em intimo contacto e que, por isso, desde a infância melhor observou.

Ainda hoje o fundo moral das classes inferiores da nossa província, se enraíza nos mesmos depressivos sentimentos que Gil Vicente lhes notou.

Dizer isto é set magoante para a Beira?

Creio que a conclusão afirmativa nos levaria a um êrro de lógica que seria o de tomar a parte pelo todo.

A beira no século XVI não era já só constituida por vilãos mas sim por outras classes que o condicionalismo social formara dentro duma elaboração lenta mas progressiva.

No Auto da Feira destaca o ilustre Professor o facto de nove moças dos montes não quererem comprar virtudes, porque não dão motivo a um bom casamento.

Creio que nada há de mais positivo. A santidade é, na verdade, um estado de alma muito apreciável mas, só por si, não satisfaz à realidade objectiva da vida e foi isto que Gil Vicente quiz significar pelo conhecimento que tinha do caracter prático do beirão.

A religiosidade da gente da serra surgiu sempre através duma materialidade grosseira, pois a sua primária cerebração não comporta concepções de ordem abstrata; Não se pode, pois, inferir da resposta que as nove moças dão ao Serafim do Auto da Feira, desprimor para os naturais desta província, mesmo sob o ponto de vista religioso.

Parece que o sr. Dt. Costa Pimpão pretende tirar partido dos amores loucos e dos casamentos a furto, sem consentimento paterno e sem benção da Igreja. . .

Apontando factos desta natureza, Gil Vicente pretendeu amesquinhar os seus co-naturais? Podem eles traduzir outra coisa que não sejam fenómenos duma amorosa sensibilidade ? A amorosidade foi alguma vez um defeito ou não será antes uma rácica qualidade que está dentro dos preceitos da própria Bíblia? E os casamentos, feitos por meio de formas simples sem intervenção sacerdotal, não estavam dentro da ingénua simplicidade da nossa provincia ?

Trazendo para a cena essas singelas uniões, quiz Gil Vicente amesquinhar o caracter religioso dos beirões? Concluir pela afirmativa não será apreciar um facto histórico por um critério diferente da sua época?

Na Beira era muito comum na Idade Média esta forma de constituir família, forma sancionada pelo próprio direito consuetudinário e a que largamente se refere no seu Elucidario Santa Rosa de Viterbo (pag. 80), quando descreve aquelas formas de casamento apelidadas de maridança.

O que era um marido conuçudo ? Por que séculos tais costumes se prolongaram? D. Manuel não os pretendeu evitar com a sua lei de 14 de Julho de 1499 que se acha encorporada na sua Ordenação de 1514 ?

Tão arreigados estavam nos costumes portuguêses estes casamentos sem intervenção sacerdotal que apesar de mais tarde serem proibidos pelo Concílio Tridentino, ainda no século XVII, D. João IV pela sua lei de 13 de Novembro de 1651 se viu obrigado a determinar que «podiam ser desherdados os filhos que contraíssem matrimónios clandestinos

E são estas bagatelas que o ilustre Professor nos oferece para demonstrar a pouca ou nenhuma simpatia que o autor do teatro português tinha para com os seus co-naturais...

Pelo contrário, Gil V icente, trazendo-os para o seu teatro, não os fez nem melhores nem piores do que êles são. Não os deformou, criando-lhes defeitos ou vícios que lhe fizessem perder aquela natural simpatia que inspira sempre a rude gente das montanhas.

O cómico ou pitoresco com que os pinta ou mesmo a solerte malícia dos seus intentos não lhes diminue a sinceridade da sua rudeza nem lhes apaga a ingénua simplicidade dos seus sentimentos.

Gil Vicente transplantou-os para a cena tal como os conhecera e observou durante o tempo que com êles conviveu, por certo bastante, visto ter já perto de 40 anos, quando pela primeira vez se apresentou na Côrte a representar o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro.

O que direi dos seus tipos femininos, por via de regra, tam cheios de graça e frescura, não só pela ingenuidade dos seus dizeres, como pelo lirismo das suas encantadoras serranilhas?

Ponho de parte muitas citações que neste sentido se podiam colher para aqui apenas repetir um dos estribilhos da Farsa dos Almocreves:

A serra he alta fria e nevosa
Vi venir serrana gentil graciosa.

Resta-nos falar do Auto da Fama que, como demonstrei no meu estudo, é a prova mais eloqüente da simpatia que prendia Gil Vicente à Beira. Não repito por desnecessário o que então disse, mas sempre acrescentarei que a didascália dêste auto nos oferece uma prova irrecusável da naturalidade beirã de Gil Vicente.

Com efeito, falando da Beira, simbolizada numa mocinha, emprega a seguinte expressão - nossa província. A quem se refere o possessivo - nossa - ? Evidentemente que a Gil Vicente e assim também para esta interpretação se inclina Brancamp Freire.

Se êle não quizesse traduzir a ideia de que à Beira pertencia, desnecessário era empregar o possessivo - nossa.
Êste possessivo não deixa dúvidas sôbre as suas intenções.

Conclusão: o facto dum escritor ter nascido em certa e determinada região não lhe coarcta o direito de a criticar sem que com isso o seu caracter fique diminuido. Gil Vicente utilizando a Beira, como objectivo do seu teatro, não teve em vista depreciá-la; mesmo que o fizesse o determinismo do ambiente em que o seu espírito se formou não podia ser posto de parte na análise da sua obra.
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