segunda-feira, julho 04, 2005

Gil Vicente, beirão (4/4)

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo II, 1944, 2º trimestre

3) Entremos agora na análise da terceira parte do artigo do artigo do sr. Dr. Costa Pimpão referente aos meios de percepção utilizados por Gil Vicente para conhecimento da província da Beira.

Diz êle, que Gil Vicente conhece a Beira, não por aí ter nascido ou vivido, mas simplesmente por via alheia.

Em Lisboa deveriam residir, muitos ratinhos (beirões) alguns armados em pagens, outros em criados que ao comediógrafo, facultariam os meios necessários para aquisição dos seus conhecfmentos sôbre a Beira.

É esta uma das fontes a que o sr. dr. Costa Pimpão, seguindo Oscar de Pratt, recorre, para a documentação de Gil Vicente.

Mesmo que tais parvónios fôssem tomados como tipos de estudo, eu creio que êles não poderiam fornecer tôda aquela soma de conhecimentos que a obra de Gil Vicente revela.

Como se pode admitir que uma obra de vulto, tam grande no detalhe, como grande na concepção das figuras, pudesse ser transmitida à laia de conversa e, demais, por pobres beócios?

Que largos conhecimentos êsses ratinhos não deveriam possuir para tam nítida e profundamente instruirem o autor do teatro português sôbre tantos e tam variados aspectos, como são os que por êle foram vincados em tôdas as suas comédias e autos?

Que grande saber os dêsses humildes serranos, ensinando a Gil Vicente a linguagem da sua província, os seus costumes, usos e as diferentes modalidades que constituem a sua etnografia; as suas trovas e cantares cheios do mais eternecido lirismo, os seus bailados que formam o folclore da Beira, a sua topografia disseminada pelos mais recônditos lugares, as suas indústrias caseiras, finalmente a profunda psicologia que ressalta das muitas e variadas figuras em que se decompõem o seu teatro.

Não tendo saído Gil Vicente, de Lisboa, como é que êle poude saborear o leite da Serra da Estrêla que o fez dizer:

Que tal leite como o meu
Não no ha em Portugal?
Que tenho tanto e tal,
E tão fino Deus m' o deu,
Que é manteiga, e não al..

Por certo que os meios de comunicação não permitiam que tal produto fosse transportado para aí a não ser que o almocreve Pero Vaz - o levasse na carga; mas em que estado lastimável êle não deveria lá chegar...

A hipótese pois de Gil Vicente se documentar pela forma aceita pelo sr. Dr. Costa Pimpão parece-nos, salvo o devido respeito, inadmíssivel à face da mais perfunctória crítica.

Só o contacto íntimo e permanente com uma região é que pode explicar o conhecimento de tantos elementos de tam variada natureza, como são aquêles de que lançou mão o fundador do teatro português.

A obra de Gil Vicente não aparenta um carácter fragmentário nem se afigura filho duma fugídia memória, mas antes é filtrada através dum estado de consciência intelectual que repele tqda a ideia de superficialidade.

Não pode, por iss0, ter sido colhida fóra do ambiente que a gerou, mas antes dentro dêle e só por quem nêle estivesse absolutamente integrado.

As razões expostas excluem em absoluto a preocupação de que Gil Vicente, através dos ratinhos pudesse ter feito o seu teatro.

Mas não é mais feliz a hipótese do comediógrafo ter dado as suas caminhadas pela Beira, a fim de colher impressões que o habilitassem à criação dos seus tipos montanhêses.

Já o ilustre director da Beira Alta impregnou duma graça cintilante tam bizarro pensamento.

Em primeiro lugar, é inadmissível que êle deixasse Lisboa só com o propósito de deambular pela Beira, calcorrreando os trilhos dos seus inhospitos caminhos, que foram apodados, três séculos mais tarde, pelos soldados de Napoleão de - caminhos dos diabos -. Depois, como era possível a um homem cuja actividade se desdobrava em muitas e variadas ocupações, abandoná-las para vir, ainda que, de fugida, palmilhar para cima das suas oitenta a noventa léguas!

Bastava isto, para fazer cair pela base tal suposição. Mas há mais e melhor: Gil Vicente era ourives lavrante da raínha D. Leonor, como se vê do alvará de D. Manuel, de 15 de Fevereiro de 1509 em que o nomeia ao mesmo tempo oficial e vedor, de tôdas as obras de oiro e prata mandadas fazer para o convento de Tomar, Hospital de Todos os Santos de Lisboa e Mosteiro de Belém.

Antes dessa nomeação, o mesmo rei o tinha incumbido do fabrico dessa maravilhosa obra de arte que é a Custódia de Belem e na qual se calcula ter gasto três anos.

Em 4 de Fevereiro de 1513 é Gil Vicente nomeado mestre da balança, da casa da moeda, ocupação que lhe roubaria de certo muito tempo.

Por sua vez slabe-se que êle fazia parte da corporação de Artes e Oficios pois, como seu procurador, assina em 17 de Outubro de 1513, um contracto realizado entre a Câmara Municipal de Lisboa e o barão do Alvito. Em 6 de Março de 1516 ordena D. Manuel à Câmara de Lisboa, que ouça Gil Vicente sôbre uns apontamentos que tocadores e alfaiates lhe fizeram chegar às mãos, por intermédio do mesmo Gil Vicente. Em 29 de Novembro de 1520 comunica o mesmo rei, que se achava em Évora, à mesma Câmara de Lisboa que Gil Vicente seguia para aí a fim de, por sua ordem. se prepararem as festas destinadas à recepção da rainha D. Leonor.

Ainda sôbre o mesmo objecto nos diz Queiroz Veloso {obra cit.} que outra carta régia foi expedida em 10 de Dezembro do mesmo ano conteudo era o seguinte «ssobre o que tendes pasado com Gill Vycemte, e as pimturas que vos mostrou e as cousas e cadafalsos que vos dise que saão necesareos.»

Em vários diplomas concede-lhe D. João III benefícios dalgumas tensas e, a 19 de Janeiro 1525, expressamente se refere aos serviços que Gil Vicente lhe prestou e que espera continuar a receber dêle.

A par dêste intenso labor, escrevia a sua obra literária que à côrte ia representando, nas diferentes vilas e cidades, onde por causa da peste, a mesma estacionava.

Será preciso dizer mais para pôr em relêvo a impossibilidade em que Gil Vicente se encontrava de dar as suas passeatas pela Beira?

Creio que insistir será redundância da minha parte.

Falta, para completa análise da argumentação do sr. Dr. Costa Pimpão, referirmo-nos ao caso de Moliére fazer falar os seus rurais sem, contudo, ter ido à Suiça.

O sr. Dr. Costa Pimpão esquece-se de que não é só a linguagem que dá à obra de Gil Vicente um caracter de unidade regional. A linguagem é indiscutivelmente um factor de importância, mas não é só por ela que se caracteriza como beirã a obra vicentista.

Sôbre a linguagem usada por Molière e assim sôbre os diferentes patois com que enche o seu teatro, muito se me oferecia dizer.

A êste respeito, sem preocupações de erudição fácil, limitar-me-ei a citar Lanson, a pág. .516, da sua História da Literatura Francêsa.

E aqui terminamos a análise do artigo do ilustre Professor da Universidade de Coimbra, faltando-nos apenas falar do local do nascimento de Gil Vicente o que em seguida vamos fazer.

* * *

Sendo Gil Vicente da Beira e donde seria também a mãe, como deixa ver o sr. dr. Queiroz Veloso, na obra cit., pág. 23, em que lugar desta província teria vindo ao mundo? Eis a questão.

É preciso frisar que o comediógrafo ocultou sempre o local do seu nascimento, assim como a origem humilde dos seus progenitores.

Fazendo-se, no Auto da Lusitânia, oriundo da Paderneira e descendente de gente de baixa condição, êle não teve outro propósito em vista senão, como já notei no meu estudo, acentuar um estado de alma de depressiva tristeza e amargura por se ver deprimido num meio que êle defrontava, sem pergaminhos.

Fê-lo com ironia, que é um dos traços característicos do seu génio.

o local do seu nascimento deveria ter sido, pois, em lugarejo obscuro, perdido na encosta dalgum alteroso monte, fronteiro à Serra da Estrêla. Êsse lugarejo e seus arredores ficaram-lhe fatalmente gravados na memória, como lhe ficaram hábitos e costumes do meio que o cercava.

Eu expliquei sem necessidade de agora repetir, a acção do ambiente sôbre o indivíduo e assim a influência que êle exerce na sua formação psíquica.

Por esta razão, na memória do comediógrafo ficaram nitidamente gravados lugares, caminhos, encostas e vales por onde na sua infância andou e brincou, assim como linguagem, costumes e hábitos da gente que com êle conviveu.

Nesta ordem de ideias, pergunta-se quais os lugares da Beira que Gil Vicente revela conhecer nos mais minuciosos detalhes?

Creio não se poder pôr em dúvida serem os da circunscrição administrativa de Chãs de Tavares. Julgo necessário sôbre êste ponto reproduzir o que disse no meu estudo:

«Apontar cidades, vilas e mesmo aldeias está dentro dum lógico e compreensível conhecimento da corografia do país, mas ir mais longe, isto é, descer até à minúcia de montes e vales, ora perdidos entre acidentados caminhos, ora ocultos na sombra de ignorados outeiros, não é indubitàvelmente pôr em nítido relêvo a ideia duma prolongada permanência em todos êsses lugares?»

Temos de aceitar, sem mais delongas, a ideia de Gil Vicente ter nascido na freguesia de Chãs de Tavares.

Acrescente-se a tudo isto o facto desta freguesia ser caracterizada, desde os mais remotos tempos, por um intenso labor pecuário.

Mas dentro da sua área em que lugar se daria o nascimento do fundador do teatro português?

Inclinei-me, sem querer ocultar a dificuldade da resposta, pois assim me impõe a lealdade com que estou discutindo, para a povoação de Guimarães, e isto por uma série de razões que resumidamente passo a expôr.

1) o equívoco que se poderia ter dado no espírito do linhagista D. António de Lima que a Guimarães do Minho atribue a naturalidade de Gil Vicente; 2) ao facto de alguns escritores tomarem Guimarães - da Beira como sua naturalidade; 3) ao facto de Gil Vicente em tôda a sua obra não fazer a mínima referência àquela cidade minhota ; 4) ao facto de querer amesquinhar a sua naturalidade, dizendo-se da Paderneira, o que decerto não faria se tivesse nascido em Guimarães do Minho; 5) o nascimento nesta cidade seria para êle motivo dum natural e justo orgulho, atento os gloriosos títulos que a História lhe tem conferido; 6) o nenhum conhecimento que êle mostra ter da vida minhota, pois a ela não faz alusão.

Esta série de considerações dão à hipótese de Guimarães de Tavares um maior ou menor grau de probabilidades, desde que se ponha de parte a afirmativa do linhagista D. António de Lima.

Que são os nobiliários senão, por vezes, um amontoado de inexactidões que uma ligeira análise lança por terra?

Não obedeceria o filho do alcaide-mor de Guimarães a preocupações de ordem bairrista? Pois não vemos nós, no século XVII, Fr. Pedra de Poiares, no seu Tratado panegyrico em louvor de Barcelos, afirmar que o comediógrafo era daí? Bramcamp Freire, apesar de pôr em relêvo a afirmação do genealogista de Guimarães, não se inclina para a sua naturalidade beiroa e quási a perfilha, à face da linguagem que êle emprega e ainda da didascália do Auto
da Fama?

Tudo se conspira contra a informação de D. António de Lima.

O sr. Dr. Costa Pimpão considera absurda a naturalidade de Guimarães de Tavares. Creio que não se pode, duma forma tam peremptória dar tal classificação à nossa hipótese, visto o número de probabilidades que militam a seu favor.

Que a naturalidade de Gil Vicente pertence à freguesia das Chãs de Tavares não admite, no meu entender, dúvida alguma.

A confusão entre os dois homónimos, isto é, entre Guimarães do Minho e Guimarães da Beira, favorece a ideia de nesta povoação. se ter dado o nascimento de Gil Vicente.

O que é interessante é que o sr. Dr. Costa Pimpão anatematize de absurda a hipótese de Guimarães de Tavares e não o faça com o mesmo vigor quando em nota se refere a Guimarães de Tôrres Vedras.

O sr. dr. Queiroz Veloso demonstra (obra cit.) que o dramaturgo não possuia quinta alguma em Guimarães de Tôrres Vedras e assim nenhumas probabilidades podem ser invocadas em defesa da Estremadura.

Estão três Guimarães em causa: uma no Minho, outra na Estremadura e a última na Beira.

Pergunta-se qual das três regiões espelha e reflete, traduz e simboliza a obra de Gil Vicente?

Um dia virá que o ilustre Professor da Universidade de Coimbra despido de dúvidas e assim firme nos seus juizos, abrace a tese que defendemos.

Nêsse dia, a Beira contará um alto valor intelectual em defesa dos seus pergaminhos.

É certo que o ilustre autor do magnífico estudo sôbre Fialho de Almeida, e que há tempos ouvi ler com tanto interêsse, se encontra já num estado de alma muito apreciável, que é o da dúvida.

Foi pela dúvida que Descartes chegou à certeza, é pela dúvida que o ilustre Professor de Coimbra, ganhará a inabalável convicção de que Gil Vicente era beirão.

Até lá continuarei a afirmar:

- Creio que a Beira, por tudo que deixámos dito, tem justificado direito de esculpir no friso dos seus varões ilustres a figura dêste homem de gênio.

VALENTIM DA SILVA
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