sábado, setembro 17, 2005

Viriatis, vol. IV, ano de 1960 (2/9)

MISSÃO DO CONSERVADOR
por António Manuel Gonçalves

A orgânica dos Museus constante dos projectos legislativos insertos no Relatório da Comissão, nomeada por decreto de 10 de Novembro de 1875, para propor a Reforma do Ensino Artístico e a Organização de Serviços dos Museus e Monumentos Históricos e Arqueológicos (1), definiu pela primeira vez, no nosso país, as atribuições dos conservadores, incumbindo-lhes (2):

1º - A conservação, classificação e aumento das colecções.
2º - Fazer os Catálogos e Inventários descritivos das colecções de que estiverem encarregados.
3º - Fiscalizar o serviço dos seus subordinados.
4º - Propor e promover todos os melhoramentos necessários.
5º - Propor ao Conselho a aquisição de objectos para aumento das secções respectivas.

Assentava o projecto do Museu Nacional e central a instituir que um dos conservadores do quadro exerceria anualmente o cargo de director, por escala; como chefe do serviço teria de assumir, aliás, mera função administrativa.

Embora o decreto reformador das Academias de Belas Artes de 22 de Março de 1881 prometesse que uma lei especial viria a determinar o pessoal, serviço e dotação do Museu Nacional de Belas Artes que veio a inaugurar-se em 11 de Maio de 1884, o certo é que a galeria das Janelas Verdes só auferiu regulamento em 1916, sob a esclarecida direcção do Dr. José de Figueiredo.

Entretanto já o Doutor José Leite de Vasconcelos alcançara, dois anos antes, o Regulamento do Museu Etnológico Português, no qual se enumeram em dois extensos artigos as obrigações do director e do conservador. Dos nove requisitos do primeiro, importa salientar dois que bem condensam o rumo e a responsabilidade da função:

- Dirigir o Museu e o respectivo pessoal, fiscalizar a boa aplicação das verbas destinadas ao serviço do Museu, promover o aumento das colecções, superintender na disposição, classificação, conservação, numeração, arrolamento e catalogação dos objectos, e em tudo quanto respeitar ao Museu (- o 2.°).
- Facilitar quanto possa o estudo do Museu às pessoas que isso desejarem (- o 7.°).

E estabelecia um decálogo de obrigações do conservador, entre as quais as de:

2º - Velar pelo bom estado do edifício, e pelo asseio e boa disposição das colecções do Museu, e propor ao director as melhorias que nesse sentido julgar convenientes.

4º - O serviço da secretaria, da biblioteca, das contas e do expediente das publicações do Museu.
5º - Arrolar, numerar, rotular, catalogar os objectos do Museu.

6º - Auxiliar o director em tudo quanto concorrer para o aumento e importância das colecções do Museu e biblioteca.

7.° - Elucidar os visitantes que lhes pedirem informações acerca dos objectos do Museu.

Por outro lado, o artigo 10º do Regulamento do Museu Nacional de Arte Antiga, de Março de 1916 (3), que ainda vigora no essencial, dentro das quinze atribuições do director, exara as de:

- Superintender na descrição, classificação, conservação e inventariação dos objectos encorporados no Museu, competindo-lhe também, quando os catálogos não sejam directamente feitos por ele proceder à sua revisão e incumbindo-lhe ainda, em qualquer hipótese, dirigir a respectiva publicação.

- Velar pela conservação do edifício, mandando proceder às obras necessárias para esse fim, ou solicitando das estações competentes a execução dessas obras.

No artigo sequente (o 11º), articulam-se como obrigações do conservador:

2º - Propor ao director do Museu as medidas que julgarem convenientes à boa disposição e conservação dos objectos que lhes forem especialmente confiados por aquele funcionário.

5º - Conforme indicação do director e sob as ordens deste, executar trabalhos de inventariação, classificação, descrição e catalogação dos objectos encorporados no Museu.

6º - Auxiliar o director em tudo quanto possa concorrer para o incremento e valorização das colecções do Museu e da sua biblioteca.

7º - Acompanhar e elucidar os visitantes, quando, para isso, forem especialmente designados pelo director.

8º - Aux:iliar o director nas publicações do Museu.

10º - Informar o director da existência de qualquer objecto que se lhes afigure dever ser adquirido para o Museu ou nele encorporado...

E são os regulamentos dos museus centrais e normais do país - o de Belas Artes e o de Arqueologia - que, em verdade, melhor e mais pormenorizadamente legislam determinantes do mlÍnus de conservador.

Outros regulamentos foram publicados e cabe citar os dos Museus Nacionais dos Coches (de 31 de Julho de 1914) e de Arte Contemporânea (de 14 de Março de 1917) e os dos Museus Regionais de Grão Vasco (de 12 de Maio de 1921) e de Alberto Sampaio (de 26 de Julho de 1932).

O de Viseu que deve considerar-se o primeiro regulamento conferido a Museu Regional, insere no Capítulo II um articulado de onze atribuições do supremo responsável, criteriosamente designado como Director-Conservador. Muito interessa recordar que o obriga a:

- Exercer sobre os objectos expostos uma cuidadosa e assídua inspecção, a fim de atenuar, quanto possível, as danificações que o tempo neles exerça e de poupá-los a malefícios de qualquer origem.

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Porquanto um estágio oficial se tivesse empreendido e regularizado vai para três décadas, - e ainda remoçado há meia dúzia de anos - certo é que as exigências do mister se delimitam ao âmbito administrativo geral, não meramente burocrático, antes concretizado nas progressivas e necessárias satisfações técnicas dos serviços.

A vária legislação relativa a museus, que possuimos, é juridicamente mais incisiva quanto às atribuições e regulamentação institucional do que discriminadora de exigências profissionais. Nem importa ambicionar sequer uma adequada minudência legislativa de obrigações museológicas; o problema é de ética profissional.

Digamo-lo abertamente: há uma deontologia do conservador, um condicionamento moral e social do exercício da função que trasmuda a conduta técnico-administrativa numa vocação, num sacerdócio.

Sucedendo na carreira aos abnegados pioneiros e organizadores dos museus que mantemos e valorizamos, aos prestigiosos responsáveis do património artístico nacional, qualquer conservador dos de antanho ou desse punhado que serve nas instituições actuais é bem «esse velho tipo de funcionário» que o Prof. Oliveira Salazar um dia apontava «que conhece todas as minúcias do seu trabalho, só pensa no desempenho da sua função, se entusiasma com a boa ordem e aperfeiçoamento dos serviços, é progressivo, é zeloso, é exacto, não tem horas de serviço por que são todas, se é necessário, e sobretudo tem o espírito de justiça e o amor do povo. (...) Vive do seu lugar, porque vive para o seu lugar; é respeitado porque se respeita; sente-se digno porque se sabe útil, e mesmo no mais baixo da escala, nos mesteres mais humildes ele pode tocar a perfeição». (4)

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Não seria difícil extrair da legislação portuguesa que referimos - e vigora - as coordenadas essenciais da missão do conservador. Parece-nos antes preferível, por agora, tendo em conta o que examinámos, ajuntar sumárias considerações deontológicas.

O museu definiu-o Georges Salles il est un laboratoire et il est un thêatre, fórmula que sintetiza as actividades essenciais do organismo e condiciona as do conservador: conservar e encorporar; expor; documentar; divulgar.

A primeira demonstração profissional que o público exige ao conservador - e constitui obrigação indeclinável de quem organiza ou dirige um museu - é saber dispor e apresentar as espécies numa ordem coerente, com tabelas precisas, e num arranjo estético que denuncie evidente sabedoria e tacto museológicos.

O conservador tem de afeiçoar-se de tal maneira aos objectos que lhe estão confiados e de entusiasmar-se na sua contemplação e estudo que acaba por auferir o senso e o gosto de os expor - expor pouco, expor bem, expor bom - conveniente e sugestivamente, de modo a despertar no público iguais entusiasmos.

Ao analisar a formação e especialização dos servidores técnicos dos museus, verificou Douglas Allan que, suposta a formação teórica indispensável que um adequado ensino possa conferir, a formação profissional do conservador só é garantida pelo trabalho que desempenhar no museu. Fora dos museus - sem apaixonado entusiasmo e aplicado exercício nas instituições próprias do mester - não há conservadores.

 acção do conservador abrange um campo muito vasto que vai dos estudos eruditos às preocupações de administrador e de monitor: desempenha uma função estética, científica, pedagógica. Evidentemente que a formatura universitária vem sendo exigida como um mínimo pressuposto para cultivar esta difícil e complexa carreira, mas não a garante, porque as condições primordiais são: o espirito de serviço (a devoção total, fervorosa, e, em determinado sentido, desinteressada) e o dom inefável de bom senso e bom gosto, insubstituível, tão dos nossos conservadores, autodidactas e profundos connoisseurs - com ou sem títulos de cursos superiores - que tanto honraram e dignificam a museologia portuguesa.

Importa porém é que seja qual for a importância do museu que lhe seja confiado - como assevera igualmente o tratadista Douglas Allan (5) - o director ou conservador deve ser equiparado ao nível, pelo menos, do professor especializado e competente do ensino secundário. E tem de ser um sujeito sabedor, investigador permanente e transmissor de concretas «ideias gerais». Convém-lhe, na verdade, uma certa experiência. ou trato pedagógico, visto o seu labor se desenvolver em grande parte num âmbito educativo.

Para Edouard Michel é preciso que o conservador seja simultâneamente um santo, um consciencioso coleccionador, um avisado diplomata, um hábil administrador. Pode não reunir todas estas expressivas qualidades, mas pode alcançá-las, umas e outras com os vagares atinentes, na medida da sua equação pessoal - se trabalhar com afinco e obedecer à exigentissima condição moral que sobreleva comodismos e fáceis triunfos: - deve estar resolvido a servir, na total acepção do termo.

As satisfações que dá o mester são modestas, situam-se no plano intelectual: viver em contacto com as coisas belas; estudá-las, compreendê-las um pouco melhor em cada dia; exercer uma acção pessoal; desvendar à juventude um mundo que ela ignora.

Outra condição essencial: o conservador «devra posséder une sensibilité d'oeil et de gout qui lui permettra de juger la qualité d'une oeuvre, quelles que soient la signature, l'école et l'époque. Il y a là un don que rien ne peut remplacer. A notre avis le candidat qui en serait privé ne devrait pas être dirigé vers ces carrieres, quels que soient, par ailleurs, ses mérites d'érudition et de caractere.» (6).

E se é vantagem excepcional para o conservador ter bom gosto e sólidos conhecimentos em todos os domínios, é todavia indispensável que procure aprofundar um determinado assunto ou actividade artística. É o conservador especializado que o público e os estudiosos mais procuram. Uma especialização firma ainda seriamente uma carreira de saber geraJ e bom senso técnicos. Este sector é aquele onde usa da sua competência para identificar os objectos e perscrutar o seu estudo, de modo a registar as fichas, organizar os catálogos, redigir as notícias, elaborar as monografias pertinentes. O possuir ainda conhecimentos práticos, extensos e pormenorizados, noutros domínios, factor sobremaneira vantajoso, não obriga porém à infalibilidade em tão exigente e complexa função.

Sendo as aquisições de obras de arte acontecimento permanente na maior parte dos grandes museus, afirma o Dr. João Couto que "esta é a mais delicada e difícil função do conservador. Empenhando por vezes grandes capitais, a decisão de adquirir uma obra de arte ou de recomendar a sua compra constituí um pesadelo que passa despercebido ao visitante despreocupado.
"Nesta missão e na de dar paternidade à obra quando ela não é evidente, estão os escopos do ofício e é aquí que o saber, o gosto, o escrúpulo, e, de certo modo, a segurança em si próprio do conservador são nitidamente postos à prova.
"Não nos podemos submeter aos dizeres do público frequentador das galerias, mas ainda menos podemos confiar cegamente nas lições dos críticos de arte, sempre embalados e levados a formular as hipóteses mais ousadas, tantas vezes destituídas de alicerces seguros.
"Não podemos, nós os conservadores, enganar o público ou tão pouco conduzi-lo por caminhos obscuros. Por isso a tabela que pomos ao lado da obra de arte, síntese dos conhecimentos exactos obtidos até um certo momento, é a mais grave das provas a que somos submetidos". (7)

E nesta palavra me detenho, palavra de Mestre, do guia esclarecido que formou toda uma geração de responsáveis pelo património artístico nacional, o Mestre de todos nós, exemplo vivo e constante do autêntico conservador.

António Manuel Gonçalves

NOTAS

(1) - V. Relatorio dirigido ao Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios do Reino, pela Commissão nomeada por decreto de 10 de Novembro de 1875 para propor a Reforma do Ensino Artistico e a Organisação do Serviço dos Museus, Monumentos Historicos e Archeologia, I Parte - Relatorio e Projectos, Lisboa, 1876, pp. 9-12 e 33-39.

(2) - Id., p. 36 (Artº 96º).

(3) - Publicado no Diário do Governo, I série, nº 51, de 16 de Março de 1916; e rectificado no nº 71, de 12 de Abril do mesmo ano.

(4) - António de Oliveira Salazar. A função pública e a burocracia (Discurso de 5 de Setembro de 1940), in Discursos e Notas Politicas, vol. III (1938-1943), Coimbra, 1943, pp. 284-285.

(5) - v. Douglas Allan, «Le personnel», Capº III de L'Organisation des Musées - Conseils pratiques, UNESCO, Paris, 1959, especialmente: Les Conservateurs, pp. 55-65.

(6) - Edouard Michel, Musées et Conservateurs - Leur rôle dans l'Organisation Sociale, Bruxelles, 1948, p. 68.
«Le conservateur c'est le Maitre Jacques, le polyvalent de la science contemporaine. II doit être un érudit imbattable sur les noms et les dates, un spécialiste de l'histoire de l'art et des civilisations, un expert qui sache évaluer l'authenticité des objets qui lui sont proposés à l'examen ou à l'achat, un financier au courant de la cote de chaque artiste, un administrateur gérant le budget d'une grande maison, un technicien qui utilise les plus récentes découvertes à la conservation des objets à lui confiés, un décorateur qui les présente dans un cadre harmonieux, original et suggestif, un professeur capable d'enseigner ses jeunes visiteurs, un diplomate qui cultive des belles relations pour obtenir des amateurs les dons ou legs sans lesquels son musée ne saurait s'enrichir, un écrivain enfin s'il lui reste assez de temps et de talent pour rédiger des articles ou des livres». (Luc Benoist, Musées et Muséologie, Paris, 1960, p. 6).

(7) - João Couto, As Exposições de Arte e a Museologia, Lisboa, 1950, pp. 5-6.
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