domingo, setembro 04, 2005

Viseu monumental e artístico (11/11)

por Alexandre Lucena e Vale
2ª edição, 1969
Junta Distrital de Viseu

X - Arredores de Viseu

O alfoz de Viseu - ou não fosse Viseu o Coração da Beira - é todo ele um apetecível e remansoso lugar de pitoresco e de calma em que se sente viver na paisagem e na gente, a própria alma da terra beiroa, terra dentre Estrela e Caramulo, caprichoso embrechado de toda a terra portuguesa.

Abraveses, Gumirães, Rio de Loba, Ranhados, Repeses, São Salvador, Paradinha, Orgens, Santo Estêvão, lindas aldeias do arredor de Viseu, recolhidas entre a carqueija da serra e o milheiral de regadio, são locais de encantamento que não mais esquecem a quem os viu um dia...

Marzovelos é um pequeno lugar da freguesia de S. Salvador que vizinha de Viseu um quilómetro se tanto; para a cidade, porém, Marzovelos é sobretudo a antiga residência de verão que foi dos Condes de Prime, a sua casa senhorial de um só andar, seus jardins de balaustres e lagos ensombrados, sua frondosa mata de penumbrosos recantos de frescura e calma.

Não tem história esta encantadora vivenda, com sua varanda airosa aberta ao sol da tarde, sobre o formoso vale que se desdobra até a mancha azulada da serra do Caramulo.

Era duma velha família de Viseu, os Costas Homens que os nobiliários locais apontam de boa cepa e as actas camarárias registam como homens-bons do concelho na govemança da cidade em dilatados e repetidos períodos da vida municipal. Na volta dos tempos passou pelos fins do século XVIII aos Teixeiras de Carvalho, ascendentes dos Primes da casa de Cimo de Vila, de Viseu, num ramo de cuja família anda ainda de presente a linda e solarenga morada.

Para os poucos que hoje, no declínio da vida, conheceram e foram parte da boa sociedade de Viseu de há cinquenta e tantos anos, ainda em tempos dos Condes de Prime e seus numerosos filhos, a Casa de Marzovelos parece ter, na crónica das suas saudades, páginas inesquecíveis pelas festas de descuidoso passatempo e copiosa merenda que a gente moça e distinta da cidade, atraída pelo pitoresco e poesia do local, frequentemente ali realizava nas tardes calmosas de Junho e Julho do século passado.

Do vasto terreno que constituia a quinta e se estendia até as portas da cidade, desmembrou-se o novo bairro citadino de Marzovelos, que domina o actual Liceu, recentemente construído. Felizmente que a casa com seu secular e delicioso jardim escapou a mais esta avançada da cidade e continua a ser um dos mais belos e poéticos recan¬tos de Viseu.

Vil de Moinhos é uma corruptela de Vila de Moinhos, que assim se chama ainda nos documentos dos séculos XVII e XVIII, esta antiquíssima e laboriosa povoação, hoje quase integrada no âmbito da cidade.

Atravessada pela ribeira do Pavia, tira dela, das suas margens ali declivosas e fundas, com chapadas verdes de lameiro por entre fragas e penedos desconformes, a servir de coradouro à roupa das lavadeiras, o mais gracioso da sua fisionomia alegre, cheia de colorido e de luz.

É viveiro de artífices, de todos os mesteres que a cidade emprega, e que, às horas do começo e cessação do trabalho, são formigueiro infindo pela estrada fora.

Artistas de apreciadas indústrias rurais, cesteiros, tapeceiros, tecedeiros, não o são menos no arranjo de festas regionais, com canções e bailados folclóricos que já os termos camarários do século XVI apontam como as melhores pélas, danças e chacotas da festa do «Corpus Christi».

De tanto são ainda índice as Cavalhadas de S. João que, modernizadas, transformadas em imponente cortejo de carros alegóricos, percorrem todos os anos as ruas da cidade na manhã alacre e festiva de 24 de Junho, constituindo um espectáculo inesquecível para quantos nesse dia acorrem a Viseu e pejam as ruas do percurso, formando moldura animada ao corso colorido e variado.

A Ponte de Vildemoinhos, sobre a estrada antiga de Vouzela, é, mesmo à beirinha da cidade, um local de pitoresco que compensa bem o passeio que se fizer até lá.

Entre os lugares mais convidativos do alfoz de Viseu, tem, porém, sua primazia o do antigo cenóbio de capuchos, o Convento de S. Francisco do Monte de Orgens, a que os descalabros do tempo e as injúrias dos homens não arrancaram ainda a doce poesia que se evola das suas próprias ruínas.

Ascende a origem do humilde conventinho à mais remota antiguidade, se atendermos a que desde tempos imemoriais ali existia um hospício ou albergue para os religiosos seráficos que passavam à esmola.

Andando o tempo, em 1410, decidiu-se a Ordem a erigir o convento, o qual, pelas virtudes de seus religiosos, veio a ser casa de noviciado, muito da devoção dos reis portugueses, dos bispos da diocese, e da nobreza e povo da cidade.

Como o geral das casas franciscanas, era de modesta fábrica: igreja ampla mas simples, de um só corpo, hoje paroquial da freguesia de Orgens; claustro de dois pisos, talvez o antigo claustro românico do hospício primitivo, de colunas cilíndricas e arcos de meio ponto; e a residência com suas celas minúsculas e pobres, sobre o refeitório e mais quadras terreiras.

Também aqui o vendaval de 34 impôs seu signo de destruição e ruína: foi-se parte do claustro, e o que dele ficou mal se apercebe, entulhado com a alvenaria dos estábulos que nele se improvisaram; na casa, as celas servem de palheiro e arrecadação; o refeitório, onde, praticado na espessura da parede, se vê ainda, numa doce evocação, a estante e o escabelo de granito à espera do irmão leitor, é hoje a adega e o lagar da quinta; a mata... desapareceu quase toda, transformada em terra de cultivo!...

Mas em meio de toda esta desolação, canta ainda como outrora a bica da água que jorra no tanque, e sobre ela, poupada milagrosamcnte ao descaminho, continua aquela preciosa pedra que já em 1754 o cronista da Ordem estranhava ali - um pequeno monólito, certamente um sarcófago, de forma rectangular e falso tampo de masseira, com toda a face anterior adereçada com esta legenda em gótico maiúsculo:

Domine Deus Meus In Te Speravi, Jesu

Ainda aqui e além, uma porta de rejas, um baldaquinho, uma tribuna, um oratório são, com seus lavores de talha e reflexos de ouro velho, nota evocativa do tempo que passou. Também, na igreja, o rodapé de ladrilhos de desenho solto, alguns de um realismo... inofensivo, o largo coro-alto com sua grade rotulada, os altares pri¬vilegiados com as armas dos padroeiros e dos benfeitores, recordam os humildes capuchos que tudo construíram devotada e confiadamente...

E cá fora, ao topo da calçada, lajeada e íngreme, o cruzeiro da entrada, ainda de pé, continua sendo um símbolo de paz, anunciador do silêncio e recolhimento do lugar, como no tempo em que os irmãos de S. Francisco, após matinas, subiam até ali em via-sacra, ao sol de cada manhã!


Entrada do antiquíssimo Convento de S. Francisco do Monte de Orgens


Curiosa arca de relíquias da Fonte do Convento de Orgens


Ponte de Azenha sobre o Rio Pavia

***

Imagens antigas e imagens novas, estampas de arte e natureza, de tudo aqui há e tudo é Viseu - dissemos ao princípio. Acrescentemos agora que se de tudo falámos o pouco que era lícito, muito mais deixámos por mostrar e por dizer...

Só a Sé e Museus dariam dois volumes de texto e gravuras; tudo o que respeita a diplomática e espécies bibliográficas, arrecadadas na Biblioteca Municipal e no Arquivo Distrital, desde o preciosíssimo original da Virtuosa Benfeitoria, do Infante D. Pedro, até a colecção dos mais valiosos incunábulos, bem merecia um capítulo desta resenha de valores e curiosidades de Viseu; o rico mobiliário, porcelanas, marfins e objectos de arte que se guardam ainda em muitas casas particulares, há muito reclamam o devido inventário; os próprios pormenores da cidade, em velharias, belezas, pitoresco, dariam matéria para muito mais!...

Mas não foi nem poderia ser nosso desígnio relacionar aqui todos os valores e formosuras de arte de Viseu.

O que aí fica é apenas uma amostra para aviso de desprevenidos e indoutos daquela
sentenciosa máxima do adagiário local:

Quem nunca viu Viseu
Não sabe o que perdeu!...
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