quinta-feira, setembro 01, 2005

Viseu monumental e artístico (3/11)

por Alexandre Lucena e Vale
2ª edição, 1969
Junta Distrital de Viseu

II - O Adro da Sé

O Adro da Sé, com o elegantíssimo cruzeiro que o decora ao centro (século XVIII) e o conjunto arquitectónico que o emoldura - o Paço dos Três Escalões, a catedral, o corpo de varandas do claustro e a igreja da Misericórdia - constitui um dos mais evocativos recantos da cidade, e é no seu género um dos mais nobres e grandiosos do país.

O Paço dos Três Escalões, antigo Paço dos Bispos e Seminário, hoje Museu de Grão Vasco, é um vasto edifício de granito, com toda a nobreza que lhe vem da sua monumentalidade, do seu exterior severo, sem reboco, desnudo de lavores que não sejam os do pórtico central: duas colunas sem cânon, sustentando a clássica arquitrave e uma cartela epigrafada entre dois brasões episcopais, tudo rematado por uma imagem de Nossa Senhora da Esperança, recolhida em sua edícula.

Obra de vários prelados, ascendendo talvez em sua remota origem aos tempos de D. João Gomes de Abreu (1466-1482) ultimou-se pelos fins do século XVI, sob os pontificados de D. Nuno de Noronha (1586-1594) e Frei António de Sousa (1595-1597) servindo durante mais de dois séculos de residência episcopal e seminário diocesano.

Em 1810, quando da terceira invasão napoleónica, o bispo de então, D. Francisco Monteiro de Azevedo, retirando-se a Fontelo, cedeu-o generosamente para hospital do exército anglo-luso, ilustrando assim as venerandas pedras com mais esse título de nobreza.

Terminada a luta, o velho casarão ficou, como é de supor, inabitável, pelo que, desassistido de seus donos, serviu adiante, por todo o decurso do século, de instalação dos mais variados serviços: Quartel Militar, Governo Civil, Administração do Concelho, Câmara, Obras Públicas, Direcção de Finanças, Tesouro Público, Banco de Portugal, Polícia, Liceu... Hoje é o Museu de Grão Vasco.

A despeito, porém, das variadas serventias a que as vicissitudes do tempo o sujeitaram, nada sofreu felizmente a fisionomia exterior, a mesma que lhe imprimiram há quase quatrocentos anos os alvanéis da Beira do século XVI e apenas o sol de muito verão amorenou. À direita, no lado oposto ao do Paço dos Três Escalões, alça-se a parte exterior do cláustro, obra do século XVIII, que no ângulo sudeste abre sobre o respectivo muro ou pano sul do primitivo castelo e pela varanda alpendrada, nele erguida em substituição das respectivas ameias que o sobrepujavam, dá acesso como outrora à torre de menagem, hoje transformada em residência paroquial.

Entre os dois corpos referidos, o actual edifício do Museu de Grão Vasco e as varandas do claustro, ergue-se a catedral.

O frontispício, à parte os materiais que remontam ao românico da construção prímitiva, é obra do século XVII, em flagrante anacronismo com o interior. A fachada primitiva, embora alterada em parte na reforma ogival do bispo D. Diogo Ortiz de Vilhegas (1505-1518), perdurou até 1635, ano em que, após violenta tempestade, abateu ruidosamente com parte da torre sineira de norte.

Foi na grande vacância de 1639 a 1671 que a reconstrução se operou. Infelizmente, a traça românico-ogival da fachada derruída, com seu trabalhado pórtico de arquivoltas, a rosácea de finos e delicados lavores,...as torres maciças, sobrepujadas de ameias militares, não seduzia já os homens do século XVII sob o gosto imperante do lavor à romana, na hora alta do Renascimento. A reconstrução fez-se, assim, sobre risco do salamantino João Moreno, nos moldes pesados e desgraciosos do tempo, tal qual a vemos hoje, com seu clássico frontão, as janelas rectangulares, as arquitraves, as impostas, os baldaquinos, balaustradas e zimbórios, tudo em desacordo com a ancianidade e feição geral do templo.

Mas ainda assim, essa frontaria do século XVII, erecta entre as duas torres românicas primitivas, embora despojadas de seus merlões medievais e coroadas hoje anacronicamente de cúpulas e balaustres, forma com o Paço dos Bispos e o corpo lateral das varandas do claustro (séc. XVII e XVIII) um conjunto de rara harmonia arquitectónica e austera sobriedade de linhas e volumes, a que a simples monumentalidade dá, por isso mesmo, inusitada n~reza.

A Misericórdia de Viseu, uma das três primeiras do país, foi fundada em 1512, presumivelmente por iniciativa do seu primeiro provedor, aquele bispo cosmógrafo de D. João II e grande figura da corte de D. Manuel, D. Diogo Ortiz de Vilhegas, tão amiúde referido nas páginas de Resende, de João de Barros e Damião de Góis.

A actual igreja, construída no mesmo local da primitiva e modesta ermida que ali demorava desde o século XVI, talvez do mesmo ano da fundação da Irmandade (1512) é obra do século XVIII, sendo o então provedor, Bernardo de Nápoles Telo de Meneses, da Casa da Prebenda, desta cidade, que deu de empreitada a sua construção por sete mil cruzados, correndo o ano de 1775.

Fronteira à Sé, delimitando o adro por banda de poente, é-lhe desse lado magnífico fecho com sua nobre feição de solar D. João V, mais solar do que igreja certamente, se não fora a cruz simbólica do corpo central e as torres levantadas nas ilhargas do edifício.

O tempo requeimou já os lavores e abrincados de granito que enobrecem a fachada nos faustos do pórtico principal, nas molduras e varandas das elegantes janelas, na balaustrada que remata como cornija cimeira os altos da construção. E realçando na cal branca do reboco, esses lavores de pedra assim amorenada, gritam mais alto seu maneirismo galante e são nota graciosa e taful na gravidade discreta, quase severa, do nobre Adro da Sé, talvez no seu género o mais belo, o mais grandioso, o mais evocativo do País!


Na calada da noite, quando o silêncio repousado da calma provinciana envolve a cidade adormecida, o Adro da Sé, sob a luz dos holofotes, avulta mais a nobreza da sua feição antiga.


Elegante pórtico do antigo Paço dos Bispos, actual entrada do Museu de Grão Vasco.


A fechar de poente o nobre Adro da Sé, a Igreja da Misericórdia põe nele uma nota de maneirismo taful e é um dos melhores miradouros da cidade sobre a paisagem que se desdobra até aos confins do Caramulo.


Pormenor da parte central da Misericórdia
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