quinta-feira, setembro 01, 2005

Viseu monumental e artístico (4/11)

por Alexandre Lucena e Vale
2ª edição, 1969
Junta Distrital de Viseu

III - A Catedral

A Sé de Viseu se não é anterior à reconquista cristã da cidade aos mouros por Fernando Magno (1058) é pelo menos coetânea do conde D. Henrique (1094-1114) que a terá construído ou simplesmente reformado, dando-lhe a feição românica que ainda hoje mantém, a despeito das posteriores sobreposições que a desfiguram.

Remonta, pois aos séculos XI a XII a estrutura geral da catedral de Viseu. As sucessivas reformas, operadas em épocas diferentes sob o domínio de novas correntes e gostos - o ogival, o renascentista, o barroco - é que atingiram de tal modo a feição primitiva e deixaram tão assinalados resíduos que a amálgama de estilos e confusão de pormenores arquitectónicos não deixam de surpreender de pronto o observador menos atento.

Transposta a entrada principal, de arco abatido, decorada de motivos clássicos, surge-nos a primeira rubrica de gótico na abóbada que suporta o coro alto e cobre o vão ou átrio de ligação das três naves. Despretensiosa e sóbria no emoldurado da arcatura, no ornato dos bocetes e mais elementos decorativos, é, todavia, pelo arrojo da sua horizontalidade, um primor de construção e de técnica, comparável à da famosa salà do Capítulo do Mosteiro da Batalha, pois que o fecho central se afigura mais baixo do que o dos arcos farmeiros do topo das cabeceiras.

Igualmente ogival, da reforma operada sob o pontificado do bispo D. Diogo Ortiz de Vilhegas (1505-1518) é a alterosa abóbada de cobertura do templo, a consagrada abóbada dos nós, assim designada por a aresta cimeira da intercepção das nervuras e ogivas ser revestida como que duma corda de espaçados nós que corre longitudinalmente a todo o comprimento das naves e respectivo transepto.

Barrocos são os arcos da boca da capela mor e dos absidíolos de S. Pedro e de S. João, que a reforma do século XVII preferiu aos primitivos ogivais, coetâneos da abóbada. A inovação infeliz ficou a denunciar-se num anacronismo visível, pois houve de deixar no alto, para remate, o resto das colunas e capitéis anteriores cuja altura não atingiram os novos arcos clássicos.

Assim, do primitivo românico, no interior do templo, serão apenas as paredes, porventura as colunas, embora adaptadas ao gosto e características do gótico imediato, algumas das janelas recentemente desentulhadas na obra de reparação dos Monumentos Nacionais, e o pórtico lateral que da nave da epístola abre para o cláustro.

A despeito do que fica referido, de todos os hibridismos e sobreposições que ficam denunciados, convenha-se que há no conjunto uma doce e aliciadora harmonia, que faz da Sé de Viseu, pela sobriedade da sua arquitectura, pela elegância das suas linhas, pela feliz fusão de estilos e proporções, pela luz discreta, quente, acariciadora do seu ambiente, pela homogeneidade inesperada da diversidade de formas e cambiantes de cor que nela se casam e fundem, uma das sés mais belas e graciosas do País.

Calcule-se o que seria este interior quando, em vez dos retábulos actuais de talha dourada e colunas salomónicas (século XVIII) as tábuas monumentais de Grão Vasco, o Calvário, o S. Pedro, o Baptismo, o Pentecostes se erguiam ainda em seus altares primitivos e punham na grave religiosidade do templo, os tons doces, suaves, da sua policromia admirável.

Caberia agora discorrer pelas adjacências do templo, passar ao exame do claustro, admirar as puras linhas clássicas da construção renascentista do bispo D. Miguel da Silva, (1527-1547), a graça evocativa dos portais românicos que nele espreitam hoje como vaidosa presença de formosuras esquecidas, a afirmar quanto é vário e mutável o gosto artístico dos homens...

Haveria que entrar e determo-nos também na capela tumular de D. João Vicente, o mais harmónico, o mais austero, o mais evocativo recanto arquitectónico da Sé.

Não o consente a natureza especial deste trabalho, de mera feição informativa, poderíamos dizer turística.

Ficará por isso igualmente sem exame a Sacristia de D. Jorge de Ataíde (1569-1578) com seu belo tecto de brutescos e o precioso revestimento azulejado do conjunto das paredes; não subiremos as escadas de D. Gonçalo Pinheiro (1547-1567) nem discorreremos pelo cláustro alto, de visita às nobres salas capitulares que foram um dia morada do Prior São Teotónio.

Não esqueçamos no entanto o melhor trecho da Sé, o que ela tem de mais impressionante e evocativo: a parte exterior que nela olha a nascente, erguida sobre a rude e bárbara penedia em que se alçou há oito séculos como castelo roqueiro. Vista desse lado, da ruelazita humilde que se lhe abraça aos pés, a massa gigantesca de granito avulta ainda mais, toma proporções desmesuradas de sonho e pesadelo... E no amontoado confuso de linhas e arestas, de volumes e de sombras - as ameias e as gárgulas, botareus e contrafortes, terraços, parapeitos, lumieiras - temos a visão dramática da primitiva Sé, quando, ao clamor das preces e das maldições, resistia ao assédio dos mouros ou às arremetidas dos corredores de Castela!...


Entre duas torres românicas, ainda que rematadas de anacrónicas cúpulas e balaustradas, ergue-se o clássico corpo central de puras linhas seiscentistas


A complicada intercepção das nervuras, tramos e arestas da abóbada dos nós arrebata os olhos e as almas


Na singeleza do granito isódomo, desnudo de lavores, as colunas que sustêm a abóbada são a imagem de Fé que alimenta as almas


Pia de água-benta. Capela de D. João Vicente.


Erguida sobre a penedia rude e bárbara, esta parte da Sé evoca os tempos heróicos dos varões afonsinos nas lides da Fundação Nacional


Pormenor do Claustro de D. Miguel da Silva


Portal românico primitivo, desentulhado numa das fases da obra de reintegração da Sé


Expressivo contraste das trevas e da luz


Evocativo remate da velha Sé românica, misto de templo e de fortaleza


Sob o arco flordelizado, a jacente do bispo D. João Vicente na capela tumular do seu nome, vendo-se no facial da arca, entre as chaves simbólicas do bispo, as disciplinas do professo. Esplêndido conjunto, único no ingrato granito da região.


Pormenor da jacente. A cabeça, mitrada, repousa sobre duas almofadas, tendo ao lado a crossa do báculo, apreciável trabalho de pedra vazada.


Relíquias românicas, revividas no claustro renascentista de D. Miguel da Silva numa das fases da obra de restauração da catedral.


Átrio interior sob o coro alto e a toda a largura das naves. A respectiva abóbada é um arrojo de construção, semelhante à da Sala do Capítulo da Batalha pela quase horizontalidade das suas arcaturas.
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