Viseu monumental e artístico (5/11)
por Alexandre Lucena e Vale
2ª edição, 1969
Junta Distrital de Viseu
IV - A Muralha e as Portas da Cidade
COMO todas as cidades mais antigas do Reino, também Viseu teve a sua cerca ou muralha dentro da qual se acantonou durante séculos todo o casario do velho burgo citadino.
Não tratamos agora dos muros velhos, a primitiva muralha, presumivelmente romana, que remotíssimos documentos, anteriores à Nacionalidade, deixam supor já então em abandono e ruína.
O falecido Professor Doutor Amorim Girão, no estudo intitulado «Viseu», figurou-a de forma rectangular como geralmente o eram todas as dessa época, e situou-a na parte baixa da cidade - então o nó viário das estradas romanas - entre Cimo de Vila, Regueira, Largo das Freiras e Arco, assim a leste do antigo castro luso-romano, erguido na eminência onde hoje demora a Sé.
Mas o caso dos muros velhos, já velhos em tempos da invasão dos mouros, não passa duma dissertação de eruditos... diferentemente do muro novo, a muralha medieval cujos restos ainda hoje perduram e são na cidade actual a melhor rubrica da sua ancianidade.
Segundo notícia de Ribeiro Botelho, que escreveu por 1620, na Porta do Soar encontra-se uma inscrição lapidar, hoje ilegível, que conforme leitura sua diz assim:
D. Afonso Quinto Rey de Portugal
e dos Algarves daquem e dalem mar
em Africa mandou cercar esta nobre ci-
dade de Viseu assi por nobreza
e defensam della com prol comum
de seus Reynos......
1472
De harmonia com tal lição, foi mandada fazer há anos a legenda de azulejo que de presente decora o intra-dorso do arco e reza:
Porta do Soar
Trecho da antiga Muralha
(D. Afonso V)
Monumento Nacional
Dtº 24-XII-MCMXV
Não é inteiramente exacta a atribuição da muralha assim feita a D. Afonso V. No Livro II das Provas e Apontamentos de Santa Rosa de Viterbo, compendioso manuscrito da Biblioteca Municipal de Viseu, referem-se três capítulos das cortes de 1412, 1439 e 1465, respectivamente de D. João I, Infante D. _Pedro e D. Afonso V, dos quais se mostra que a muralha foi começada no reinado do primeiro e continuada nos dos mais.
Tão largo lapso de tempo, quase meio século, tem a sua explicação na sucessão das nossas relações com Castela e vicissitudes políticas dos dois países em tal período.
É sabido que em 1385, Viseu, então desguarnecida de muros, foi assaltada de surpresa pelas hostes castelhanas que batiam em retirada dos campos de Aljubarrota, sendo só depois de dura refrega que a cidade pôde repelir o inimigo, não sem que lhe sofresse o saque e o incêndio.
Assim, duramente advertida dos perigos da falta de muralha, de pronto reclama de D. João I a sua construção, alegando que sem ela não têm outro muro senão a Deus e a mercê del rei e por única fortaleza a Sé dela com as suas quatro torres.
As obras devem ter-se iniciado então, embora arrastadamente, dadas as pazes feitas entretanto com Castela. Tanto explica também a renovação do pedido em tempos da regência de D. Pedro e a sua ultimação no reinado de D. Afónso V, em que chegou a determinar-se que os moradores do couto do Mosteiro de Arouca, então comarca da Beira, obrigados a concorrer para a reparação do convento bernardo daquela vila, se transferissem a Viseu por urgência da feitura da muralha, embora sòmente com meia serventia porque no começo do muro mandado fazer pelo infante D. Henrique cada um havia contribuido com 150 réis.
Vem pois de mais longe a muralha viseense de... D. Afonso V.
Seja como for, o que parece é que nunca foi obra perfeita e acabada. Em sessão de 26 de Janeiro de 1547, acorda, a Câmara, requerer à Infanta Dona Maria, última Senhora e Duquesa de Viseu, licença para uma finta para os muros da cidade que estão em terra...
Como se sabe, seguia da Porta de S. Francisco ou Porta do Soar, também conhecida por Arco dos Melos (Melos dos condes de Santa Eulália, proprietários que foram da casa nobre que demora junta) na linha da actual rua Silva Gaio, onde, no encontro com a rua da Calçada, se abria a Porta da Traição ou da Senhora das Angústias cujos restos ainda lá se vêem com parte da muralha adjacente; daí continuava até à Porta dos Cavaleiros, à ilharga da Casa do Arco que foi dos Albuquerques do Amaral Cardoso, por isso conhecidos por Albuquerques do Arco; inflectia então à Porta de S. Sebastião, erguida junto da actual sacristia da igreja de Santo António, donde seguia à rua Simões Dias sobre que se abria a Porta de S. Miguel; daqui avançava à Porta do Senhor Crucificado, no extremo norte do terreiro de Santa Cristina, hoje Largo Alves Martins; continuava daí às chamadas Quatro Esquinas onde a Porta de S. José dava saída para Coimbra, trepando finalmente ao morro do Soar onde o circuito se fechava.
A última vez que as sete Portas da muralha terão ainda servido como tais terá sido em 1577, embora não já por motivos militares senão como meio ou instrumento de sanidade e profilaxia...
Pelo termo camarário de 21 de Julho desse ano, perante os casos de peste provinda da Galiza e a grassar pelo norte do País, Porto, Matosinhos e Leça, decidiram os próceres da governança da cidade que esta se guardasse dos ditos lugares pela maneira que se costuma guardar.
Era o processo do isolamento, do cordão sanitário, tendente a evitar o contágio, o contacto da população local pelo encerramento das portas, interditando-se todo comércio de relações com o exterior. Para tanto mandaram que os guardas-mores pusessem bandeiras e vigias de modo que ninguém possa entrar nem fatos nem roupas sob pena de dez cruzados pagos da cadeia.
Não reparemos na incongruência de meter na cadeia o contraventor, que bem podia ser pestífero!... - e digamos que esse terá sido o último serviço que as nobres portas terão prestado à cidade.
De notar é a curiosidade de junto de cada uma, ao menos das existentes, haver uma casa nobre de remota origem, na qual o respectivo arco se encontra de algum modo encorporado, como varanda ou miradouro dos nobres senhores seus vizinhos.
Junto ao Arco dos Melos, com uma porta envidraçada a abrir sobre o passeio de ronda, como se fora logradouro seu, fica a antiga residência do Conde de Santa Eulália.
Sobre a Porta dos Cavaleiros fez seu terraço a nobre Casa do Arco (hoje Escola Comercial e Industrial) que nos séculos XVIII e XIX foi, como dissemos, residência dos Albuquerques do Amaral Cardoso, e séculos antes, embora de mais modesta fábrica, solar dos velhos Amarais Coelhos, cujas armas, um escudo quinhentista, Coelho e Amaral, ainda se vêem na face do edifício que olha a Rua do Arco. A Santa Cristina, sobre a própria muralha, junto da Porta do Senhor Crucificado, vê-se a antiquíssima casa dos Lemos e Sousa que, é bem de presumir, também sobre essa porta teria sua varanda ou talvez um passadiço para as hortas fronteiras do Quintal da Prebenda, dos Lemos e Nápoles, seus consanguíneos.
Para quem nos velhos manuscritos de Viseu tem tantas vezes encontrado a designação de guarda-mor da porta de... atribuída aos melhores nomes da nobreza de Viseu, não é difícil presumir a origem do abuso.
A função, o prestígio da família, a natural deferência da Câmara por quem vizinhava da Porta e podia como mais ninguém vigiá-la e desfrutá-la em próprio proveito, explicam a posse abusiva e ilegítima do que só à cidade pertencia e nunca poderia transformar-se em propriedade particular.
De mais, a cessação de lutas com Castela, a transformação sucessiva da arte da guerra, o alastramento progressivo da cidade para fora da cintura da muralha, tinham feito que esta perdesse a sua razão de ser...
O espírito inovador do século passado, indiferente a estes testemunhos de outros tempos, senão impiedoso com eles, também em Viseu desestimou o que poderia ser hoje mais um padrão da sua feição histórica. Por decisão de 5 de Dezembro de 1814, mandou a Câmara de então demolir os velhos arcos porque nenhuma utilidade causa a sua conservação e a sua demolição é mais cómoda para a contínua passagem dos carros, gentes e seges.
Foi o laudo da vistoria de dois anónimos artistas pedreiros que salvou as que restam com afirmar que além de não ameaçarem ruína até aformoseiam a cidade...
Com as suas pedras rudes a que o tempo imprimiu sua chancela de séculos, essas venerandas Portas com os escassos trechos da muralha superstite são assim documento precioso do velho Viseu de quinhentos, e em meio da cidade moderna e progressiva uma rubrica de antanho a prendar a atenção do forasteiro e o interesse do artista.
Na calada da noite, quando o luar reveste de sua serguilha de sonho aqueles recantos de outrora e no lagedo da rua a ogiva do arco se desenha como visão antiga, o espírito recua séculos atrás e no silêncio fechado do burgo provinciano parece ressoar o eco confuso de remotos homens de armas na ronda vigilante da cidade!...
Como o artista J. Maria de Almeida viu a Porta do Senhor Crucificado, no Largo de Santa Cristina
A antiga Porta dos Cavaleiros numa aguarela de Alberto Sousa
A Porta da cidade, chamada do Soar ou Arco dos Melos e trechos da antiga muralha
Figuras de hoje numa moldura antiga
2ª edição, 1969
Junta Distrital de Viseu
IV - A Muralha e as Portas da Cidade
COMO todas as cidades mais antigas do Reino, também Viseu teve a sua cerca ou muralha dentro da qual se acantonou durante séculos todo o casario do velho burgo citadino.
Não tratamos agora dos muros velhos, a primitiva muralha, presumivelmente romana, que remotíssimos documentos, anteriores à Nacionalidade, deixam supor já então em abandono e ruína.
O falecido Professor Doutor Amorim Girão, no estudo intitulado «Viseu», figurou-a de forma rectangular como geralmente o eram todas as dessa época, e situou-a na parte baixa da cidade - então o nó viário das estradas romanas - entre Cimo de Vila, Regueira, Largo das Freiras e Arco, assim a leste do antigo castro luso-romano, erguido na eminência onde hoje demora a Sé.
Mas o caso dos muros velhos, já velhos em tempos da invasão dos mouros, não passa duma dissertação de eruditos... diferentemente do muro novo, a muralha medieval cujos restos ainda hoje perduram e são na cidade actual a melhor rubrica da sua ancianidade.
Segundo notícia de Ribeiro Botelho, que escreveu por 1620, na Porta do Soar encontra-se uma inscrição lapidar, hoje ilegível, que conforme leitura sua diz assim:
D. Afonso Quinto Rey de Portugal
e dos Algarves daquem e dalem mar
em Africa mandou cercar esta nobre ci-
dade de Viseu assi por nobreza
e defensam della com prol comum
de seus Reynos......
1472
De harmonia com tal lição, foi mandada fazer há anos a legenda de azulejo que de presente decora o intra-dorso do arco e reza:
Porta do Soar
Trecho da antiga Muralha
(D. Afonso V)
Monumento Nacional
Dtº 24-XII-MCMXV
Não é inteiramente exacta a atribuição da muralha assim feita a D. Afonso V. No Livro II das Provas e Apontamentos de Santa Rosa de Viterbo, compendioso manuscrito da Biblioteca Municipal de Viseu, referem-se três capítulos das cortes de 1412, 1439 e 1465, respectivamente de D. João I, Infante D. _Pedro e D. Afonso V, dos quais se mostra que a muralha foi começada no reinado do primeiro e continuada nos dos mais.
Tão largo lapso de tempo, quase meio século, tem a sua explicação na sucessão das nossas relações com Castela e vicissitudes políticas dos dois países em tal período.
É sabido que em 1385, Viseu, então desguarnecida de muros, foi assaltada de surpresa pelas hostes castelhanas que batiam em retirada dos campos de Aljubarrota, sendo só depois de dura refrega que a cidade pôde repelir o inimigo, não sem que lhe sofresse o saque e o incêndio.
Assim, duramente advertida dos perigos da falta de muralha, de pronto reclama de D. João I a sua construção, alegando que sem ela não têm outro muro senão a Deus e a mercê del rei e por única fortaleza a Sé dela com as suas quatro torres.
As obras devem ter-se iniciado então, embora arrastadamente, dadas as pazes feitas entretanto com Castela. Tanto explica também a renovação do pedido em tempos da regência de D. Pedro e a sua ultimação no reinado de D. Afónso V, em que chegou a determinar-se que os moradores do couto do Mosteiro de Arouca, então comarca da Beira, obrigados a concorrer para a reparação do convento bernardo daquela vila, se transferissem a Viseu por urgência da feitura da muralha, embora sòmente com meia serventia porque no começo do muro mandado fazer pelo infante D. Henrique cada um havia contribuido com 150 réis.
Vem pois de mais longe a muralha viseense de... D. Afonso V.
Seja como for, o que parece é que nunca foi obra perfeita e acabada. Em sessão de 26 de Janeiro de 1547, acorda, a Câmara, requerer à Infanta Dona Maria, última Senhora e Duquesa de Viseu, licença para uma finta para os muros da cidade que estão em terra...
Como se sabe, seguia da Porta de S. Francisco ou Porta do Soar, também conhecida por Arco dos Melos (Melos dos condes de Santa Eulália, proprietários que foram da casa nobre que demora junta) na linha da actual rua Silva Gaio, onde, no encontro com a rua da Calçada, se abria a Porta da Traição ou da Senhora das Angústias cujos restos ainda lá se vêem com parte da muralha adjacente; daí continuava até à Porta dos Cavaleiros, à ilharga da Casa do Arco que foi dos Albuquerques do Amaral Cardoso, por isso conhecidos por Albuquerques do Arco; inflectia então à Porta de S. Sebastião, erguida junto da actual sacristia da igreja de Santo António, donde seguia à rua Simões Dias sobre que se abria a Porta de S. Miguel; daqui avançava à Porta do Senhor Crucificado, no extremo norte do terreiro de Santa Cristina, hoje Largo Alves Martins; continuava daí às chamadas Quatro Esquinas onde a Porta de S. José dava saída para Coimbra, trepando finalmente ao morro do Soar onde o circuito se fechava.
A última vez que as sete Portas da muralha terão ainda servido como tais terá sido em 1577, embora não já por motivos militares senão como meio ou instrumento de sanidade e profilaxia...
Pelo termo camarário de 21 de Julho desse ano, perante os casos de peste provinda da Galiza e a grassar pelo norte do País, Porto, Matosinhos e Leça, decidiram os próceres da governança da cidade que esta se guardasse dos ditos lugares pela maneira que se costuma guardar.
Era o processo do isolamento, do cordão sanitário, tendente a evitar o contágio, o contacto da população local pelo encerramento das portas, interditando-se todo comércio de relações com o exterior. Para tanto mandaram que os guardas-mores pusessem bandeiras e vigias de modo que ninguém possa entrar nem fatos nem roupas sob pena de dez cruzados pagos da cadeia.
Não reparemos na incongruência de meter na cadeia o contraventor, que bem podia ser pestífero!... - e digamos que esse terá sido o último serviço que as nobres portas terão prestado à cidade.
De notar é a curiosidade de junto de cada uma, ao menos das existentes, haver uma casa nobre de remota origem, na qual o respectivo arco se encontra de algum modo encorporado, como varanda ou miradouro dos nobres senhores seus vizinhos.
Junto ao Arco dos Melos, com uma porta envidraçada a abrir sobre o passeio de ronda, como se fora logradouro seu, fica a antiga residência do Conde de Santa Eulália.
Sobre a Porta dos Cavaleiros fez seu terraço a nobre Casa do Arco (hoje Escola Comercial e Industrial) que nos séculos XVIII e XIX foi, como dissemos, residência dos Albuquerques do Amaral Cardoso, e séculos antes, embora de mais modesta fábrica, solar dos velhos Amarais Coelhos, cujas armas, um escudo quinhentista, Coelho e Amaral, ainda se vêem na face do edifício que olha a Rua do Arco. A Santa Cristina, sobre a própria muralha, junto da Porta do Senhor Crucificado, vê-se a antiquíssima casa dos Lemos e Sousa que, é bem de presumir, também sobre essa porta teria sua varanda ou talvez um passadiço para as hortas fronteiras do Quintal da Prebenda, dos Lemos e Nápoles, seus consanguíneos.
Para quem nos velhos manuscritos de Viseu tem tantas vezes encontrado a designação de guarda-mor da porta de... atribuída aos melhores nomes da nobreza de Viseu, não é difícil presumir a origem do abuso.
A função, o prestígio da família, a natural deferência da Câmara por quem vizinhava da Porta e podia como mais ninguém vigiá-la e desfrutá-la em próprio proveito, explicam a posse abusiva e ilegítima do que só à cidade pertencia e nunca poderia transformar-se em propriedade particular.
De mais, a cessação de lutas com Castela, a transformação sucessiva da arte da guerra, o alastramento progressivo da cidade para fora da cintura da muralha, tinham feito que esta perdesse a sua razão de ser...
O espírito inovador do século passado, indiferente a estes testemunhos de outros tempos, senão impiedoso com eles, também em Viseu desestimou o que poderia ser hoje mais um padrão da sua feição histórica. Por decisão de 5 de Dezembro de 1814, mandou a Câmara de então demolir os velhos arcos porque nenhuma utilidade causa a sua conservação e a sua demolição é mais cómoda para a contínua passagem dos carros, gentes e seges.
Foi o laudo da vistoria de dois anónimos artistas pedreiros que salvou as que restam com afirmar que além de não ameaçarem ruína até aformoseiam a cidade...
Com as suas pedras rudes a que o tempo imprimiu sua chancela de séculos, essas venerandas Portas com os escassos trechos da muralha superstite são assim documento precioso do velho Viseu de quinhentos, e em meio da cidade moderna e progressiva uma rubrica de antanho a prendar a atenção do forasteiro e o interesse do artista.
Na calada da noite, quando o luar reveste de sua serguilha de sonho aqueles recantos de outrora e no lagedo da rua a ogiva do arco se desenha como visão antiga, o espírito recua séculos atrás e no silêncio fechado do burgo provinciano parece ressoar o eco confuso de remotos homens de armas na ronda vigilante da cidade!...
Como o artista J. Maria de Almeida viu a Porta do Senhor Crucificado, no Largo de Santa Cristina
A antiga Porta dos Cavaleiros numa aguarela de Alberto Sousa
A Porta da cidade, chamada do Soar ou Arco dos Melos e trechos da antiga muralha
Figuras de hoje numa moldura antiga
<< Home