sábado, setembro 03, 2005

Viseu monumental e artístico (7/11)

por Alexandre Lucena e Vale
2ª edição, 1969
Junta Distrital de Viseu

VI - Museus

TERRA de remotas tradições artísticas, que no dizer autorizado de Sousa Viterbo está para a pintura nacional como Coimbra para a escultura, é com justiça que Viseu tem hoje no Museu de Grão Vasco, desde os quadros monumentaIs do seu patrono Vasco Femandes (séc. XVI) até os mais distintos contemporâneos, uma das primeiras galerias do País.

São as tábuas inestimáveis do insigne Mestre viseense - «S. Pedro», «S. Sebastião», «Pentecostes», «Calvário» e «Baptismo» - universalmente admiradas por quantos, desde Raczynski até hoje, têm vindo a Viseu pagar o tributo da sua curiosidade e devoção artística; são esses questionados quadros da antiga Capela-Mor cuja autoria, na discussão apaixonada dos críticos, é ainda um dos mais curiosos problemas da nossa pintura antiga; são os trabalhos atribuídos a esse outro artista viseense, contemporâneo de Grão Vasco, o delicado e inspirado Gaspar Vaz; são as miniaturas e os retratos admiráveis do Gata, exímio discípulo de Sequeira; são, já em nosso tempo, os preciosos óleos e desenhos do grande Columbano, as telas de mestres como Malhoa, Alfredo Keil, Soares dos Reis, Luciano Freire, Roque Gameiro, Barata, Bonvalot, Artur Loureiro, Sousa Pinto, Marques de Oliveira, António Carneiro, Silva Porto, António Ramalho, Medina, Sousa Lopes; são dezenas e dezenas de outros tantos artistas nacionais e até estrangeiros, como Madrazo e Benlliure.

Mas a par de obras-primas da pintura nacional, o Museu de Grão Vasco tem em miniaturas, em porcelanas, mobiliário, estofos, escultura, jóias, numismática, primores de arte e preciosidades que oficialmente o classificam o terceiro valor do Património Nacional.

Como escrevemos noutro passo, «o Museu de Viseu - pode afirmar-se com verdade - não nasceu nem da Lei nem da iniciativa de quem quer que fosse. Antes que o decreto de 16 de Março de 1916 oficialmente o instituisse, já o núcleo pictural que determinara a prescrição legislativa existia e era como tal conhecido e admirado pelos homens de arte. Nascera do pendor artístico do espírito local, directamente do génio criador dum filho de Viseu - o pintor Vasco Fernandes, o Grão Vasco - no dia em que sobre os altares da Sé se ergueram para a imortalidade do seu nome, as suas tábuas monumentais. Aí, em seus primitivos lugares de piedade e oração os assinalou a crítica de ...1620, o escritor viseense Rjbeiro Botelho Pereira, naquele passo dos Diálogos que é a mais remota fonte da sua identificação.

Mas o gosto sempre vário dos homens preferiu, anos volvidos, (1671) aos retábulos quinhentistas em que se integravam as tábuas do Mestre viseense, os altares à moda dominante da época.

E surgiu o primeiro museu...

Os quadros foram recolhidos e expostos na sacristia da Sé, a vasta sacristia de D. Jorge de Ataíde, onde estiveram até 1916.

Nesse ambiente propiciador, pela tonalidade macia do azulejo dos começos de seiscentos que reveste toda a quadra, rematada pelo alto e nobre tecto de brutescos, os viram, admiraram, estudaram, discutiram, os grandes e primitivos críticos de arte - Raczynski, Robinson, Sousa Holstein, Justi, Ramalho Ortigão, Joaquim de Vasconcelos, outros; aí os assinalou a publicidade dos jornais e das revistas; aí se orgulhou deles e fez gala de sua preciosidade durante mais de dois séculos, a vaidade local, o bairrismo viseense; aí os foi buscar em 1916 a disposição legal do decreto, e com eles e algumas alfaias e espécies do antigo Tesouro Sacro, erigiu o conjunto em Museu Regional de Grão Vasco.

Bem podemos pois dizer que o fundo primitivo e principal do museu como conjunto artístico, conhecido e admirado como tal, existiu sempre desde o dia em que o génio de Vasco Fernandes floresceu e ilustrou Viseu, sua terra. É que de então para cá, contemporâneos e pósteros não mais deixaram de admirar, de encarecer, de desvanecidamente exibir o legado precioso do seu famoso patrício.

Sem ele e seus colaboradores na oficina operosíssima que foi a Escola de Viseu do século XVI, nunca o Museu seria a realidade que é.

Grão Vasco é assim não apenas o seu patrono mas, mais do que isso, seu lídimo fundador».

Criado, como dissemos, oficialmente em 1916, foi nomeado a seguir seu primeiro director o Capitão Francisco António de Almeida Moreira.

Alma rara de artista, com não menos raras qualidades de organizador e realizador, solteiro, sem encargos de família, passou, desde o começo, a viver inteiramente para o Museu, consagrando-lhe todos os seus esforços, as suas preocupações, a sua vida. E tanto nas salas capitulares do claustro alto onde inicialmente se instalou como no edifício actual, a que breve se transferiu, o Museu de pronto revelou as excelências de gosto e os primores de esteticis¬mo de quem tão dedicadamente o dirigia.

Ainda então a museologia não revestira a feição didática, científica do presente, e assim Almeida Moreira, exímio cultor de décor e da mise en scène, pôde imprimir ao Museu de Grão Vasco um cunho puramente pessoal.

Na moldura valiosa do velho Paço dos Bispos, de severa e nobre fisionomia exterior, com seus vastos salões de tectos apainelados, suas lareiras de evocativo sabor medieval, seus claustros fradescos e sólheiros, sumptuosamente trastejado, repleto de preciosidades e formosuras de arte, o Museu de então era como que faustoso palácio reaL.. Entrados nele, deslumbrados pela exuberância do recheio, pela disposição animada, viva, quente do mobiliário e espécies ricas e artísticas, parecia-nos surpreender por entre credências, bufetes, tremós, cadeiras de espaldar, graves e delicadas figuras de outros tempos a animar e dar vida a tanta coisa bela que, frustrada ao seu destino, para a vida ali morrera...

E este foi assim o primeiro e saudoso Museu de Grão Vasco, o Museu de Almeida Moreira.

Depois veio a nova feição do museu moderno, a actual, metódica, seriada, fria, inerte onde tudo alinha didàcticamente como as palavras num dicionário ou as rubricas num catálogo...

E sob a acção de novos e sucessivos directores, o Museu se enriqueceu, cresceu, alastrou por todo o edifício, ocupou as próprias lojas terreiras e mais dependências esquecidas, num constante progresso de beneficiação, com novas e valiosas espécies.

Não obstante, e a despeito do muito que desde a sua fundação as dotações governamentais e o zelo dos seus dirigentes nele vêm cumulando em riquezas e preciosidades de arte, são ainda e sempre as monumentais tábuas que um dia ornaram os retábulos da Sé, são o interesse e relevo que a escola de Viseu tem no emaranhado dos prbblemas da pintura portuguesa primitiva que dão ao Museu de Grão Vasco toda a excepcional importância que tem no campo da Arte em Portugal e o fazem o mais visitado de todos os museus nacionais.

O Museu de Arte Sacra, constituído pelo antigo Tesouro da Sé, acha-se instalado numa dependência dos Claustros, nas nobres salas do Cabido, onde, segundo a legenda latina da entrada, terão sido as casas de S. Teotónio, Prior da Sé nos remotos tempos da gesta da Fundação Nacional.

A sala principal, com sua precinta de azulejos historiados do século XVIII, seu tecto de masseira de carvalho velho, seus pesados reposteiros e ricas colgaduras, sua varanda de ferros pombalinos debruçada sobre a cidade e arredor, é, no conjunto, uma digna moldura das preciosidades que encerra.

Desde os cofres de Limoges do século XIII, tudo que constitui o recheio deste curioso museu, em imagens, cálices, cruzes, navetas, hostiários, lampadários, relicários, espécies de ouro, prata, cobre, marfim, faz que seja na sua especialidade um dos mais apreciados e valiosos do país.

A colecção de paramentos e mais artigos de broslador e vestimel1teiro, como lhe chamam os antigos Regimentos dos Ofícios, merece pela antiguidade de muitos deles, sua perfeição e valor, a atenção e estudo dos entendidos.

Mas de todo o conjunto artístico do Tesouro da Sé, é de relevar a magnífica custódia de D. Miguel da Silva, custódia gótica de prata dourada que constitui um dos mais preciosos trabalhos da ourivesaria portuguesa. Escrevendo dela há anos, na revista ilustrada Lusíada, do Porto, assim a descrevemos:

"De acentuada feição gótica, muito bem proporcionada, discreta no conjunto, revela todavia certa exuberância nos elementos de pormenor decorativo.

"O corpo principal, constituído pelo hostiário, é uma caixa circular debruada interna e externamente por um recorte flordelizado e ladeada por dois pilares góticos firmados no sub-pedânio, e aguentando um docel de delicada renda cortada por trabalhados corucheos. Acima, ergue-se um segundo docel, mais pequeno, assente em quatro novos pilares quadrangulares, sustentando por sua vez quatro nervuras ou arcos ponteados de cogulhos góticos, concordantes num florão, que encima superiormente o conjunto. O sub-pedânio ou tabuleiro em que assenta o hostiário é cinzelado, formado por quatro panos convergentes, levemente erguidos de fora para dentro, com as nervuras ou arestas também decoradas com minúsculos cogulhos.

Os pilares ou gigantes que ladeiam o hostiário têm na face externa, recolhidos em especiosos baldaquinos, duas imagens que parecem figurar S. Brás e S. João Baptista.

Sob o segundo docel, erguido a meio da grilhagem que guarnece o sobre-céu do hostiário, vê-se uma delicada escultura representando o Salvador.

Todo este conjunto é sustentado por uma coluna exagonal, cujo nó é formado por uma arcaria de pórticos góticos e cuja base oblonga, chanfrada, trilobada nos topos, constitui novo e distinto corpo, cujos relevos ornamentais, repuxados a primor, têm já seus ressaibos renascentistas. A junção da coluna com a base é rebuçada por um feixe circular de simbólicas folhas e grãos de trigo e todo o cheio da base decorado com significati¬vos ramos de vide, cachos de uvas e cornucópicas. Na orla, a legenda - MICHAEL SILVIVS EPISCOPVS VISENSI D. D. AN. MDXXXIII»
.

Museu-biblioteca Almeida Moreira é a própria casa que foi residência do primeiro director do Museu de Grão Vasco, capitão Francisco António de Almeida Moreira.

Essa casa, uma velha e modesta casa de família que o fino gosto e o temperamento de artista do seu proprietário conseguiram enobrecer da entrada até o sótão, e cumular de preciosidades de toda a ordem - porcelanas, mobiliário, quadros, esculturas, livros -legou-a Almeida Moreira à Câmara Municipal de Viseu, para, tal qual a deixou, com seu quarto de cama, a sala de jantar, o escritório, os seus livros, as suas colecções de arte, ser patente ao público como museu-biblioteca.

Não permitiram as circunstâncias que o desígnio de Almeida Moreira fosse integralmente satisfeito. O prédio, velho, meio arruinado, houve de sofrer funda remodelação, a que generosamente acudiu a benemérita Fundação Calouste Gul¬benkian, daí resultando que a par de Museu Almeida Moreira, a Casa do Soar de Cima, transformada, melhorada, rejuvenescida, revestisse uma nova feição, aliás bem de harmonia com o espírito gentil do seu antigo proprietário - a de Auditório local da Fundação, centro artístico e cultural da cidade, cujas actividades constituem já para Viseu um novo título de nobreza espiritual

O Museu Etnológico, iniciativa da Junta de Província da Beira Alta, que precedeu até a reforma administrativa de 1959 a actual Junta Distrital de Viseu, instalou-se inicialmente e provisòriamente em parte do edifício da Igreja da Misericórdia no Adro da Sé, e ali aguarda ainda novas e melhores instalações. Todava é já valioso e digno de melhor arrecadação o seu apreciado recheio - uma colecção inestimável de marcos miliários, estelas funerárias, placas ídolos, machados e espécies variadas do homem dos dolmens - tudo a constituir para o estudioso um conjunto raro de apreço e atenção.


O Calvário - Tábua monumental de Grão Vasco


S. Pedro - Tábua monumental de Grão Vasco


A célebre Menina, de Madrazo


Um recanto do Museu de Arte Sacra - aguarela de António Vitorino


Custódia gótica de D. Miguel da Silva e o precioso cálice (1620) - Estevão Gonçalves Neto


As Tágides e Camões na Sala Columbano do Museu de Grão Vasco


Museu de Grão Vasco - o génio das artes


Sant'Ana - escultura do século XVIII, existente no Museu de Grão Vasco


Nª Sª do Postigo ou da Porta da Traição (da Muralha) - hoje no Museu de Grão vasco. Escultura dos fins do séc. XII, rude Piedade a que não obstante o seu barbarismo chocante, sobretudo na concepção e modelação de Cristo, não falta seu encanto no sorriso suave e juvenil da Virgem.


Um recanto da sala de escultura no Museu de Grão Vasco


Casa-Museu Almeida Moreira, na sua feição actual, após as grandes obras de reparação e melhoramento da Fundação Calouste Gulbenkian


Um pequeno escaparate com velhos utensílios de estanho, na Casa-Museu Almeida Moreira
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