domingo, junho 04, 2006

A Catedral de Viseu (6/9)

Separata da revista "Beira Alta", 1945

A CAPELA DO CALVÁRIO - 1/3 (1)

por Alexandre Lucena e Vale

O bispo D. João Vicente, fundador dos Loios - A sua Capela do Calvário nos Claustros: capitéis, túmulos, jacente e mais curiosidades - O Calvário e a primitiva localização das tábuas monumentais de Grão Vasco: a verdade perante um êrro de séculos

No ano que termina, ano centenário de tantos acontecimentos notáveis na vida de Viseu, desde a reintegração do bispado ao nascimento ou morte de muitas figuras de relêvo nacional, completam-se igualmente cinco séculos que foi eleito bispo da diocese D. João Vicente, o bispo Santo, fundador e protector dos Loios.

Para os que não teem a devoção da história local nada dirá êste nome, todavia ilustre entre os que mais ilustram a mitra viseense.

Nascera em Lisboa de pais nobres e ricos (2) no ano de 1380, e de menino se fizera adolescente, sempre em tão recolhida vida de devoção, desassistida de vícios e mundanidades, que chegado à idade de dezenove anos logo pretendeu professar no convento de Bemfica.

Vizinhava da claustra domínica uma quinta de família onde seus pais costumavam estanciar demoradamente; pelo que, desejosos de que êste seu único filho casasse e perpetuasse a família, e supondo ser influência dos frades a sua resolução, logo determinaram de se transferir a Lisboa, por assim o demover do místico propósito.

Em obediência às instâncias paternas seguiu João o Estudo Geral da Universidade, vindo a graduar-se em medicina, do que muito satifeito D. João I o fez Físico-Mor do Reino. Daí lhe veio o ser muitas vezes apelidado de Mestre João, durante a vida e depois da morte.

Nada impediu afinal que, pouco andando o tempo, viesse a ordenar-se de sacerdote conforme sua primeira vocação e, fugindo à côrte e ao mundo, fundasse pouco depois um cenóbio de cónegos seculares de S. João Evangelista, na Igreja de Vilar, junto a Barcelos, a que se recolheu com alguns companheiros fazendo vida de muita edificação e penitência.

Mas seus talentos e virtudes não o deixaram por muito tempo na ambicionada paz do claustro, e solicitados seus serviços por D. João I, é forçado a abandonar Vilar de Frades e viver vida diversa da que por natural pendor apetecera.

Estava então em Lisboa o senhor de Roubaix, embaixador especial do Duque de Borgonha Filipe o Bom, a concertar o casamento do Duque seu senhor com a nossa Infanta D. Isabel de Avis, filha del-rei D. João I. Já o célebre Jean Van Eyck pintara o retrato da infanta, e já em face dêle o Duque, que assim desejara certificar-se previamente das excelências físicas da sua real consorte, autorizara o sr. de Roubaix a que recebesse a princesa.

Ia partir para Borgonha, sua nova pátria, a excelsa filha de D. Filipa de Lencastre; e foi no futuro bispo de Viseu, que D. João I encontrou o sacerdote digno de ser nessa emergência o confessor e conselheiro da futura mãe de Carlos o Temerário.

Desde então toma novo rumo a vida de D. João Vicente. De Borgonha passa a Roma, a impetrar do Papa a confirmação de seu convento de Vilar de Frades.

As circunstâncias, senão seus predicados, fazem-no estimado da côrte pontifícia, sobretudo do Papa Eugénio IV, que logo o elege bispo de Lamego.

De Portugal, onde viera a tomar posse da sua diocese, volta a Borgonha, à França, a Roma; vai a Inglaterra por legado pontifício, e regressa de novo para ser bispo de Viseu onde entra em 1444, há precisamente cinco séculos.

Aposentado em Fontelo, seu primeiro pensamento foi de se alojar a par da Sé, porque, dizia, não devia o pastor estar longe das ovelhas.

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Dêsse seu propósito nasceu ou se reformou a casa de janelas quinhentistas e arco sôbre a rua Escura, que ainda ao presente decora o plácido e evocativo largo do Miradouro.

Mas outros rumos, dissemos, estavam talhados ao bispo de Viseu. De novo vai partir na comitiva de outra infanta portuguêsa, Isabel também, agora a futura mulher de D. João II de Castela e mãe da grande Isabel a Católica, da unificação da Espanha.

Desta vez, porém, a côrte de Castela, com as graves complicações políticas que enreda o célebre D. Álvaro de Luna, não dispensa o conselho e a presença do bispo de Viseu, que só volta a Portugal para reformar o estatuto da Ordem Militar de Cristo, e, já no fim da vida, para, bispo de Viseu, morrer como bispo na sua diocese (3).

Se o que fica referido e constitui a vida oficial de D. João Vicente sobeja para ilustrar a mitra viseense, as virtudes sacerdotais e os dotes de coração do homem e do padre são por tal forma raros e notáveis que o fixaram na história com a antonomásia de bispo santo.

A memória perdurável dessas virtudes e o odor de santidade em que acabou seus dias, entreteceram nos séculos, como nos relatos místicos dos Flos sanctorum, uma poética lenda de milagres, rematados na violação do seu túmulo pelos loios, seus confrades, que aqui teriam vindo por filial devoção, e subrepticiamente levado o precioso despojo das suas cinzas, de tão sobrenaturais virtudes. . . .

Não são apenas estes factos que revestem de particular interêsse para a história de Viseu, a figura de D. João Vicente. É que, como a vetusta casa do largo do Miradouro, é obra dêste prelado um dos recantos mais curiosos e evocativos da Sé de Viseu, a silenciosa e abandonada capela de Jesus ou do Calvário, na ala esquerda do claustro baixo, entre a capela de Tércia e o extremo sul do transepto.

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Com sua elegante abóbada de arestas de fundas reentrâncias e intercepções, descançando sôbre colunas de curiosos capitéis historiados e fitomórficos, com suas arcas tumulares armoriadas e a estátua jacente do bispo fundador sob rendilhado arco sólio, tem esta capela um raro interêsse arqueológico e arquitectónico na história das transformações da Sé, prende-se por mais dum título à da benemérita congregaçno dos Loios, os homens bons, de Vilar, e foi durante três séculos o recolhido escrínio dessa tábua maravilhosa que é o Calvário de Grão Vasco. Razões sobejas para que lhe demos o relêvo que, decerto modo, até o presente não teve.

Tanto Botelho Pereira nos Diálagos (4) como o Pe. Leonardo de Sousa nas Memórias dos Bispos de Viseu (5), informam que na torça duma porta de comunicação com o transepto que se tapara quando da instituição da actual Capela do Santíssimo, se via a seguinte inscrição:

Esta Capela e varanda / mandou fazer o Reverendissimo Senhor D. João Bispo que foi de Lamego / Protector da Religião / de Sto. Eloy em o anno de 1451 / 20 de fevereiro.

A quem entra, a impressão é de mais remota antiguidade (6) não só pelo aspecto das colunas de curto fuste e capitéis de bestiários, mas pela janela de esbarro e arco de volta inteira praticada a meio da parede leste, única por onde se escoa à ténue luz de cripta que mantém a capela em recolhida penumbra.

É que a obra de D. João Vicente foi em parte de adaptação. É sabido que nesse mesmo local demorara em remotos tempos dos séculos XI e XII o primitivo alcácer, em que se aposentaram ainda os pais de Afonso Henriques e viveu o velho Prior S. Teotónio. .

Arruinada essa primitiva edificação, construíu-se a capela aproveitando-lhe ao menos as paredes, das quais a de nascente deveria ser o facial posterior do primitivo alcácer ou paço real.

Assim o atesta a referida janela de feição anterior ao românico terciário da comum fábrica da Sé, e confirma a inscrição que o Cabido colocou na porta de entrada das salas superiores reedificadas na vacância do séc. XVII:

Haec Est Domus A Divo
Theotonio, Hujos Sanctae
Sedis Patrono, Habitata,
Et, Ab lllustrissimo Capitulo

Sede Vacante lnstaurata
Anno 1721

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NOTAS

(1) Da série Viseu Antigo que o autor vem publicando na revista Beira Alta.

(2) Estevão Rodrigues e Maceira e D. Mecia Ponce foram os Paes do mesmo Bispo: ambos da illustre nobreza q o tempo sepultou e de q se não acha memoria mais q a do Conde D. Pedro no Nobiliario. Nelle refere ser a tal Senhora de excellente qualidade de Castella; porq descende da IlIustrissima casa do Banho. - etc. - Memórias Históricas e Cronológicas dos Bispos de Viseu, pelo Pe. Leonardo de Sousa - Tomo II pág. 212 – v ms. de 1767 da Bibl. M. de Viseu.

(3) Memórias, loc. Cit..: - Ceu aberto na terra - de Fr. Francisco de Santa Maria – pág. 551 e seguintes.

(4) Diálogos Morais e Políticos – Diálogo 5º - Cap. I. Ms. Da Bibl. Municipal do Porto – cópia da Casa do Serrado, de Viseu

(5) Memórias Históricas e Cronológicas dos Bispos de Viseu – (1768) – Tomo II – Liv. III, Cap. XIIII ms da Bib. Municipal de Viseu.

(6) Portugal Antigo e Moderno — no artigo sôbre Viseu, com a comum ignorância do tempo em matéria de arqueologia, diz: A dita capela é toda de abóbeda de granito com ornamentação exótica e figuras indecentes o que revela ter sido feita não para templo católico mas para qualquer outro destino, talvez no tempo da ocupação árabe...
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