domingo, junho 11, 2006

A Catedral de Viseu (7/9)

Separata da revista "Beira Alta", 1945

A CAPELA DO CALVÁRIO (2/3)

por Alexandre Lucena e Vale

A abóbada, de nervuras toreadas, repousa em quatro colunas cilíndricas adossadas na parede e rematadas em curiosissimos capitéis, um dos quais representa manifestamente a Annunciação, ingénuo conjunto de dois ícones de desenho e trabalho muito rudimentares.

Dos restantes, um é constituído por um vaso e vários motivos fitomórficos, entres êles a consagrada espiga de trigo, símbolo da eucaristia; outro, por um busto humano, a cujos ouvidos falam dum lado a luxúria, figurada na serpente, e de outro a pureza, simbolizada numa flor de açucena; o último, de mais difícil interpretação, poderá exprimir o mesmo pensamento, a virtude e o pecado, figurado êste nas serpentes e cabeça de hiena, aquela no motivo fitomórfico da direita, se é que nas duas serpes, também símbolo da prudência, não há qualquer alusão ao múnus pastoraI do bispo fundador (1).

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Mas o elemento principal, predominante no conjunto, é constituído por dois túmulos que ocupam tôda a parede de sul. Um, o da direita, muito posterior, com um esquartelado de Abreu e Albergaria, pertence, como reza a própria cartela da tampa feral, ao cónego Pero Gomes de Abreu, o fundador do vínculo de Santo Estêvam e da Casa da Tôrre da rua da Cadeia, de quem nestas mesmas páginas já tratámos desenvolvidamente (2).

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O outro, o da esquerda, é do instituidor da Capela, o bispo D. João Vicente.

É uma arca granítica, assente directamente no pavimento e encaixada na espessura da parede, sob um arco sólio de meio ponto com larga moldura toreada, guarnecida de bolas e aparatosa franja de pendentes flores de liz estilizadas.

O frontal é decorado com três escudos, sem indicação dos metais: o do centro com três disciplinas postas em pala; os dos lados, repetidos, cada um com duas chaves direitas de palhetões afrontados.

Na tampa, a jacente do bispo, talhada no duro granito da região, com a cabeça mitrada repousando, magestosa, em duas almofadas sobrepostas, o busto revestido de ampla casula
gótica, as mãos cruzadas na posição consagrada, segurando apertadamente contra o peito o simbólico báculo, cuja curva, de vasa da talha, se apoia no cabeçal, formando um pormenor de grande efeito decorativo.

Todo o conjunto tem nobreza e magestade; e, suposto o trabalho do canteiro não haja conseguido vencer nas pregas dos panejamentos e na geral modulação da figura, a rigidez artificiosa dum ingénuo convencionalismo, a verdade é que esta esquecida e quási ignorada escultura é bem digna do interêsse que até hoje se lhe não deu.

De mais, com a de Fernão Gomes Goes, de Oliveira do Conde, e a do Conde de Barcelos, filho de D. Diniz, em Sao João de Tarouca, é, salvo êrro, uma das três únicas jacentes que existem na região beirã, sáfara de tais espécies certamente pela inversa da lei de Prosper Merimée: onde, para construir haja pedra fácil de lavrar, aí fará progressos a escultura.

E se considerarmos que, tendo falecido D. João Vicente em 1463, já a êsse tempo a estatuária tumular, praticada em Portugal desde o século XIII (até fins do século XII eram proibidos os enterramentos nas igrejas) havia atingido qualidades definitivas (3), não será ousado supor ser o autor do moimento, ignorado artífice local, geitoso mestre canteiro com sua prática de lavrante nas oficinas de Coimbra ou nas obras da Batalha.

Estudemos agora a lição heráldica dos escudos do túmulo.

Não vale a pena referir o êrro segundo o qual, parece, durante muito tempo, a gente de Viseu identificou os laterais com armas de família do Bispo D. João Chaves, a quem, em sua ignorância lògicamente, também atribuía o túmulo!. . .

Êrro imperdoável e só compreensível pelo geral desconhecimento que até há pouco se tinha das mais elementares noções de heráldica e arqueologia.

Se as linhas e feição do monumento impediam que se atribuísse êste a quem vivera um século depois, em plena Renascença, a conjectura heráldica ainda mais imperdoável se apresenta: as chaves das armas dos Chaves são cinco e não duas, são impostas em santor e não em pala, têm palhetões montantes e não caídos como nos escudos do túmulo.

Botelho Pereira, contradizendo já em 1630, a versão corrente de serem tais brasões as armas de D. João Chaves, escrevia que D. João Vicente tomara por armas as da Igreja, as duas chaves, por ser médico do Papa (...) a insígnia das disciplinas é a sua a qual se acha também num cálice dourado que êle deu à Sé (4).

Teríamos assim, segundo o autor dos Diálogos Morais, que as armas com as chaves seriam as do Papa, as das disciplinas a insígnia do bispo. Errando quanto àquelas por não serem tais as armas pontifícias, podia induzir em êrro quanto às segundas, por indevidamente se supor serem elas a expressão heráldica dos apelidos Rodrigues, Maceira ou Ponce que por seus pais pertenciam a D. João Vicente (5).

Um século depois, em 1768, o Padre Leonardo de Sousa, referindo ainda a confusão com o bispo D. João Chaves, escrevia com mais verdade que D. João Vicente tomara por armas as chaves para com isso mostrar o domínio espiritual que tivera nas duas igrejas de quem foi prelado Diocesano; quanto às disciplinas, suposto não serem armas de sua família ilustre o foram sempre de sua grande penitência (6).

Segundo a liçao do autor das Memórias, os escudos da arca tumular seriam portanto meras composições de fantasia, alusivas aos dois aspectos fundamentais da vida de D. João Vicente: a congregação e o episcopado.

Suposto tal interpretação seja absolutamente aceitável e, sem mais reservas, a hajam divulgado em suas publicações os posteriores escritores viseenses, uma outra hipótese se poderia pôr - a de serem tais escudos as armas da Congregação dos Loios de que o bispo fôra, como dissemos, fundador. Não tem, porém, fundamento tal suposição.

A congregação dos Frades Lóios, como vulgarmente foi conhecida em Portugal a Ordem dos Cónegos Seculares de S. João Evangelista, fundada na igreja de Vilar de Frades, não teve armas próprias de comunidade, e se usou de qualquer insígnia ou emblema simbólico, parece ter sido a águia do Apóstolo seu patrono, como bem conclúi a êste respeito o nosso ilustre colaborador e erudito autor do valioso e notável estudo sôbre Pelourinhos que Beira Alta vem publicando (7).

Em conclusão: como escreveu o Padre Leonardo de Sousa, os escudos da arca tumular de D. João Vicente contêm apenas composições de fantasia, aludindo as disciplinas à austera penitência do congregado, e as chaves aos dois governos episcopais de Lamego e Viseu (8).

Consideremos agora as transformações operadas nas primeiras décadas do século XVII na capela hoje do Santíssimo, e as que, por via destas. veio por sua vez a sofrer a própria capela de D. João Vicente. Têm mais interêsse do que parece. . .

É que se elas explicam de algum modo a história da violação do túmulo de D. João Vicente pelos Loios seus confrades que, movidos de devoção às suas cinzas, aqui as teriam vindo muito subrepticiamente tirar (9), prendem-se, com mais interêsse ainda, ao problema da primitiva localização dos quadros de Vasco Fernandes, Calvário e S. Sebastião, que nos propomos esclarecer.

NOTAS

(1) Dictionnaire du Symbolsme verb: Epi e Serpent – Mundus Symbolicus de Philipi Picinelli - pág. 487.

(2) Viseu Antigo in Beira Alta - Vol I - Fasc. III - pág. 125

(3) Estatuária Lapidar – A. Gonçalves – pág. 13

(4) Diálogos Morais - loc. cit.

(5) Ae armas dos Rodrigues são : escudo lisonjado, de prata e de veirado de oiro e vermelho. de cinco traços em banda e cinco em contrabanda; as dos Maceira, partindo em pala: 1º de prata com duas flores-de-liz de azul uma sobre a outra; 2º também de prata com meia águia de vermelho estendida, armada de negro, movente de partição; as dos Ponces: escudo partido, sendo o 1º de prata com um leão de vermelho, e o segundo de oiro com 4 palas de vermelho; bordadura de vermelho, carregada de oito escudetes de oiro, cada escudete com uma faxa ele azul.

(6) Memórias - Vol. II - pág. 268.

(7) Em resposta à pregunta que em carta dirigimos ao distinto escritor e investigador, Exmo Sr. Guedes Real, sobre se tinha noticia de que a Congregação dos Loios tivesse tido armas de comunidade, recebemos do ilustre heraldista amável resposta de que trasladamos, com a devida vénia, o que segue:

“Nada encontro que se refira a um brasão de armas por esta Congregação usado, ao contrário do que sucede, por exemplo, com as ordens religiosas do Carmo (Carmelitas), S. Francisco (Franciscanos), de Cister (Bernardos), etc., cujas insígnias heráldicas todos nós - os que nos dedicamos ao estudo destas antiqualhas - perfeitamente conhecemos.

Como é sabido, foi em geral à vida, obras e milagres dos Santos fundadores dessas Ordens ou seus patronos que se foram buscar os símbolos constitutivos dessas armas.

Ora Santo Eloi, segundo reza a História Sagrada, foi tesoureiro de Clotário II e de Dagoberto, seu principal ministro, depois bispo de Noyon (588-659), e ourives exímio. A iconografia dêste Santo apresenta-no-lo, ora ferrando um boi com uma perna partida (arte italiana) *, ora sentado em frente da banca de trabalho, no seu mister de cinzelador, rodeado por figuras histórico-religiosas dêsse tempo (arte francesa). Nenhum emblema ou insígnia se destaca nos retábulos ou panéis em que pudéssemos ir filiar as armas dos religiosos que sob a sua invocação se congregaram.
Posta de parte esta pista, vejamos agora mais própriamente o que se repor¬ta à Congregação de Santo Eloi. Dos 7 conventos que possuiram, o principal e mais importante foi naturalmente o de Lisboa. Mas tiveram também os de Vilar, Xabre¬gas (arredores de Lisboa), Évora.,Arraiolos, Feira e Pôrto, tôas, estas casas conhe¬cidas como «Conventos dos Lóios» (não de Santo Eloi).

Os Loios não eram cónegos regrantes, mas sim cónegos seculares de S. João Evangelista e dedicavam-se sobretudo a obras de beneficência, em especial ao tratamento de doentes, pelo que, em certa época, e dado o seu carácter secular lhes foi confiada a administração de hospitais, como os de Coimbra e das Caldas, antes do estabelecimento das Misericórdias, onde êles exerciam a sua actividade cuidando desveladamente dos enfermos. Por tal obra se tornaram conhecidos e simpáticos aos humildes e aos grandes.

O nome de “Loios” lhes proveio precisamente do nome do Santo – ELOI - sob cuja evocação a sua principal Casa, a de Lisboa, havia sido fundada e por que foi mais conhecida. De “Eloi” se fez a palavra “Eloios” ou por aférese da primeira silaba, simplesmente “Loios”. Eu perfilho esta opinião, porque é muito natural que se lhes chamassem «Eloios» ou «Loios».

E nada mais adiantaremos quanto a Santo Eloi e «Loios».

E com referência às armas desta Congregação? Lá vamos agora.

Verificado, com o acima exposto, que Santo Eloi não foi o fundador da Congregação nem na sua organização interferiu, voltemo-nos para o Apóstolo S. João Evangelista...

Era natural que as insígnias da Congregação fossem as de S. João Evangelista. Foram-no, de facto? Estou presuadido que sim, como consequência do que passo a expôr.

Todos os quatro Evangelistas tiveram o seu emblema próprio. O de S. João era:

Uma águia de pé, com as asas abertas,
a cabeça nimbada pela glória da santidade.


(o que, em linguagem heráldica, se chama «uma águia revoante»).

Desde remotos tempos que êste emblema nos aparece junto do Santo, ou representando-o. Veja-se, por exemplo, os símbolos dos Evangelistas no «Commentário ao Apocalypse de Lorvão”, existente no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo e o Manuscrito da Biblioteca Real de Bruxelas, do IX ou X século, representado em «Les Arts au Moyen Age et à l’époque de la Renaissance» por P. Lacroix. A arquitectura ou a escultura não nos auxilia nêste caso. A Congregação dos Cónegos de S. João Evangelista (Loios) não teve em Portugal a expansão que
tiveram as Ordens Religiosas, como os Franciscanos, os Dominicanos, os Beneditinos, etc. Assim,pouco nos resta das suas casas conventuais. A de Lisboa, que o terramoto de 1755, parcialmente arrazou. Encontrava-se em reconstrução quando foram extintas as Ordens Religiosas em 1833. Hoje é quartel da Guarda Republicana e nada nos faculta, do ponto de vista iconográfico. que contribua paro o esclarecimento do nosso problema. O convento de Xabregas, transformado há tempos em fábrica de bolacha, edifício hoje incaracterístico, encontra-se nas mesmas condições. O de Arraiolos, hoje quinta particular, também nada nos apresenta digno de nota para o estudo das armas dos Loios. Mas na igreja dos Loios em Évora, lembro-me de ter visto há anos, uma janela, numa das capelas, em cujo fastígio, entre volutas e fogaréus (época de D. Maria I ?), avulta ao centro do tímpano, uma águia de pé e de frente, com as asas abertas. O mesmo símbolo, portanto, acima referido. - Quanto às casas dos Loios da Feira, de Vilar e do Porto. nunca as vi nem conheço. Poderá ser que nalgumas delas se encontre a resolução da incógnita. . .

Como disse, eu estou persuadido que foi êste o símbolo adoptado por estes religiosos, muito embora nunca tenha visto a sua representação num escudo ou brasão de armas, mas unicamente, como emblema isolado, em geral destacado de qualquer representação ou conjunto heráldico.

A corroborar a minha suposição, devo acrescentar que na obra do Padre Francisco de Santa Maria, - «O CEO ABERTO NA TERRA» - vê-se, no rosto do livro, uma estampa alegórica. tendo ao centro o Ceu iluminado, donde dardejam raios de luz sobre a parte inferior da composição. À esquerda, sôbre uma peanha, ergue-se a figura de S. João Evange1ista - o patrono da Congregação dos Loios - tendo por baixo a divisa: S. IOANNES EVANGELIST. O Santo tem uma pena na mão direita e apresenta-se em atitude beatífica, junto a uma águia, de pé, que o seu corpo parcialmente encobre, e cujas asas abertas se podem ainda observar. Um pouco mais abaixo da peanha, outra águia em idêntica compostura, mas pisando uma fita legendada, com os seguintes dizeres: SUB UMBRA ALARUM TUARAM PROTEGE ME. Será preciso mais para crer que era êste o símbolo da Congregação dos Loios?»

* Santo Eloi é o patrono dos ferreiros, dos ferradores e, duma forma geral, de todos os artistas que manobram o martelo.

(8) O Ceo Aberto na Terra, pág. 598 confirma o exposto a par de algumas fantasias como a do túmulo ser de mármore...

(9) Memorias - Pe. Leonardo de Sousa - fls. 273
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