quinta-feira, junho 15, 2006

A Catedral de Viseu (8/9)

Separata da revista "Beira Alta", 1945

A CAPELA DO CALVÁRIO (3/3)

por Alexandre Lucena e Vale

No século XVI a capela, hoje do Santíssimo, tinha o seu altar igual aos que então decoravam cada tôpo das naves da Sé, incluída a do transepto, e foram substituídos, na grande vacância de 1639 a 1671, pelos de talha dourada actuais. O retábulo de cada um dêsses altares era constituído por um dos quadros monumentais de Grão Vasco, à parte o do altar-mor que tinha a série de catorze com a vida da Virgem e a infância de Jesus.

A capela do Santíssimo tinha também o seu, ou o S. Sebastião como erradamente se tem dito, ou o Calvário como pretendemos demonstrar. Na parede existiam vários túmulos com seus arcos-sólios, e a porta, já referida acima, de comunicação para a capela de D. João Vicente (1).

Por sua vez esta também não tinha a disposição que hoje apresenta. A entrada era, como dissemos, pela Capela do Santíssimo; no sítio da actual porta do claustro, então ainda por abrir, ficava o túmulo do pe. Gomes de Abreu; em frente dêste, onde de presente se encontra a chamada porta do sol, que dá saida para o eirado das trazeiras da Sé, ficava o túmulo do próprio bispo fundador, como tudo refere em suas Memórias, o Pe. Leonardo de Sousa (2).

No primeiro quartel do século XVII, o dr. Lourenço Leitão e sua mulher D. Ana Cardoso de Távora instituíram, como é sabido, a actual capela do Santíssimo a que vincularam certos bens, mediante o privilégio de nela terem túmulo perpétuo com exclusão de qualquer outra pessoa. (3)
Por motivo das proporções do novo retábulo (o actual) que veio a ocupar tôda a parede do tôpo do transepto, a primitiva porta de acesso à capela contígua de D. João Vicente teve de ser inutilizada, pelo que se procedeu à abertura de outra, que é a actual dos claustros. Mas porque aí se encontrava, como referimos, o túmulo do Cónego Pêro Gomes de Abreu, foi preciso removê-lo para onde de presente se encontra. Procedendo-se nessa mesma ocasião também à abertura da chamada porta do sol, onde então, como dissemos, era o túmulo de D. João Vicente, foi êste por idêntico motivo deslocado para o seu lugar actual junto do outro (4).

Nestas andas e bolandas, as arcas tumulares foram naturalmente destampadas por maior facilidade de arrasto e, presumivelmente, por qualquer motivo, esvaziadas das cinzas respectivas (5).

Ora se considerarmos que isto se passa, como dissemos, nos últimos anos do primeiro quartel do século XVII, precisamente a época atribuída (1610 a 1633 - dizem os cronistas) ao furto dos restos de D. João Vicente pelos Loios de Lisboa, fácil é de conjecturar a verdade dessa rocambolesca aventura.

O caso não tem hoje interêsse de maior é óbvio. . .

Se o referimos é apenas a talho de foice, da foice com que nos propomos de segar melhor e mais valioso trigo - o problema da determinação do lugar primitivo de duas das tábuas monumentais de Grão Vasco, o Calvário e S. Sebastião.

Ainda que todos os que até hoje se teem ocupado do assunto - e tantos são! - hajam aceitado sem reparos, para aquêle a capela que vimos estudando, a Capela de D. João Vicente ou Capela do Calvário, para o outro, a Capela do Santíssimo, podemos afirmar que viram indevidamente o problema e lhe erraram por isso a solução.

Expliquemos primeiramente a génese do êrro, que nisso está de algum modo o podermos justificá-lo.

A partir dos começos da segunda metade do século XVII, a posição dos quadros de Grão Vasco que haviam decorado até então os retábulos da Sé, é a seguinte: os catorze do altar-mór acham-se ou nas paredes laterais da mesma capela por cima do cadeiral, ou já na Sala do Cabido; O Calvário na Capela de D. João Vicente, no claustro; o S. Pedro, S. Sebastião, S. João e Pentecostes na sacristia grande de D. Jorge de Ataíde onde Rackzynski, Robinson, Bertaux e todos os mais os viram e discutiram.

Considerando isto, não foi difícil aos curiosos de Viseu e críticos de fora, de todos os tempos, reconstituir com fácil lógica a primitiva localização dos quadros, a anterior aos altares de talha dourada que o Cabido da vacância de 1639 a 1671 lhes preferiu: a série dos catorze do altar-mór no respectivo altar; o S. Pedro, o S. João e Pentecostes nos altares de sua respectiva invocação; S. Sebastião, por exclusão de partes, no actual altar do Santíssimo, a que por isso mesmo, e só por isso, se atribuiu a invocação anterior de S. Sebastião (6).

Quanto ao Calvário, não havendo mais lugar para êle nos cinco topos das naves, e uma vez que se encontrava em Capela à parte, a Capela de D. João Vicente que vimos estudando, aceitou-se ser ela o seu lugar de sempre. Para mais, o próprio manuscrito de Botelho Pereira, de 1630, escrito portanto em data ainda anterior à retirada dos outros para a sacristia, já o assinalava precisamente aí (7).

Não haveria pois que duvidar: o Calvário fôra pintado para a Capela de D. João Vicente, cada um dos outros para os altares referidos. O problema da primitiva localização parecia estar solucionado.

Esta a génese do êrro, aceito sem reparo até Rackzynski pelos curiosos de Viseu, e de Rackzynski até hoje por quantos do problema se abeiraram.

Todavia, a denunciá-lo, deveria, parece, erguer-se contra êle o próprio Calvário. Repugna, na verdade, admitir, embora até hoje tal reparo nunca se fizesse, que um quadro monumental como êsse, enredada composição de fundas perspectivas e sucessivos planos, figurando um aglomerado humano com vários vultos de tamanho natural, e formando todo êle um conjunto de intensa dramatização, transbordante de vida e movimento, - pudesse ter sido pintado para uma quadra de modestas proporções e tão precárias condições de luz! Acresce que, se não obstante o fôra, deveria então tê-lo sido para servir de retábulo ao respectivo altar. Ora êste, segundo o relato do Padre Leonardo de Sousa (8), encostava-se à parede em que se rasga a única janela da capela, o que exclui a hipótese de nêle poder ter estado qualquer quadro e muito mais a de, para semelhante lugar, o haver pintado um artista da envergadura de Grão Vasco. Tanto isto é assim que, onde afinal o quadro sempre esteve, ao que parece, foi no único sítio em que poderia ver-se, a mesma parede dos túmulos que aliás tapava em grande parte, o que por sua vez denuncia ser a sua colocação aí apenas determinada por uma necessidade ocasional de arrumação e mais nada.

Esta verdade, que mal se compreende não acudisse ao espírito de ninguém, poderia tê-la alcançado o dr. Maximiano Aragão quando contradisse, e bem, a hipótese formulada pelo autor do último volume do Portugal Antigo e Moderno de que, chamando-se a Capela de D. Gonçalo Pinheiro, Capela da Cruz, talvez o Calvário houvesse sido encomendado para ela e aí houvesse estado antes de passar à Capela contígua de D. João Vicente.

Escreveu então, o dr. Aragão, que tendo D. Gonçalo Pinheiro tomado posse da diocese quatro anos depois do falecimento de Grão Vasco, a hipótese ou conjectura do Dr. Pedro Ferreira era absolutamente destituída de possibilidades. E acrescentou - conforme a lição de Botelho Pereira e do pe. Leonardo de Sousa que par passu seguiu neste seu livro:

O que êste bispo mandou fazer foi reedificar a capela que se denominava de S. Sebastião e mudar-lhe o nome para o de Vera Cruz (9).

Se ao discutir assim a localização inicial do Calvário, houvesse considerado que no local da Capela da Cruz, demorara anteriormente uma outra sob a invocação de S. Sebastião, poderia ter-se pôsto a hipótese de haver sido essa capela o local primitivo do quadro de Grão Vasco que representa êsse santo.

Se o fizera, arrumado no seu lugar próprio o quadro de S. Sebastião, fácil lhe seria arrumar por sua vez no seu, o deslocado quadro do Calvário

O que é, porém, ainda mais estranho é que não reparassem, nem êle nem quantos trataram tal assunto, que a atribuição do S. Sebastião à capela dos claustros é feita já pelo próprio
Botelho Pereira, precisamente no passo do seu manuscrito tantas vezes e por tanta gente citado como a mais antiga e de algum modo a única fonte da autoria e localização dos quadros de Grão Vasco.

Vale a pena transcrevê-lo porque, embora inúmeras vezes haja sido referido, sobejamente mostra que, de tantos escritores que o citaram, poucos o leram de certo, nem de outro se compreende que nêle não atentassem. . .

É no capitulo 4º, sôbre o bispo D. Fernando Gonçalves de Miranda (1487-1491) que Botelho Pereira, ao referir ter sido êste prelado quem mandara fazer o antigo retábulo do altar-mór, acrescenta:

Raro e eminente devia ser o Pintor das imagens dêle, que não só parecem de vulto mas vivos se nos representam, enganando a vista, como às aves o cacho de Apeles ou a êle a toalha de Zeuxis. Vasco Fernandes, respondeu Lemano, se chamava o autor de tão maravilhosas pinturas o qual tâmbém o foi dos Colaterais de S. Pedro e S. João Batista, altar privilegiado tôdas as segundas feiras, bem grandíssimo para as almas do Purgatório.

Também pintou o de Santa Ana e de S. Sebastião dos Claustros, e o de Jesus que é a Capela do bispo D. João o Protector que averiguadamente está tido por santo. E nela como já disse está sepultado. . .

Dêste passo dos Diálogos, única fonte informativa valiosissima porque quási coeva de Grão Vasco - da autoria dos quadros monumentais de Viseu, se tira neste ponto inequivocamente o seguinte:

1º Botelho Pereira diz, indirectamente embora, que o S. Sebastião esteve nos Claustros - S. Sebastião dos Claustros, resa o manuscrito ;

2º Botelho Pereira não diz que o Calvário tivesse sido pintado para a Capela de D. João Vicente (o Protector dos Loios) mas apenas o refere como estando aí ao tempo em que escrevia (1630) o que, é óbvio, não exclui a conjectura de haver estado inicialmente noutra parte.

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Nestas circunstâncias, verificado ter havido uma capela de S. Sebastião nos claustros, verificado que ao tempo de Botelho Pereira ainda o respectivo quadro lá estava ou se retirara havia tão pouco tempo que continuava a designar-se como tal - S. Sebastião dos Claustros - é lícito afirmar que o primitivo lugar dessa admirável tábua de Vasco Fernandes, antes de ingressar na Sacristia, foi essa substituída capela da sua invocação e não a actual do Santíssimo como erradamente se tem dito.

Vago assim êste tôpo do transepto, fácil é de ver ter sido nêle o primitivo lugar do Calvário, que só as obras acima referidas, de colocação do actual retábulo do Santíssimo, forçaram a retirar para a capela anexa de D. João Vicente, onde Botelho Pereira o assinala em 1630 e onde permaneceu três séculos até 1911, crismando a Capela em Capela do Calvário e induzindo em êrro quantos por êle se interessaram.

Isto é insofismavelmente assim: manuscritos, datas, lógica, tudo apoditicamente o comprova. Mas quando assim não fôsse, um outro documento, não menos valioso nem menos concludente, embora até hoje não considerado, se nos oferecia terminante: os próprios quadros!

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Cada um dêles tem em si o certificado autêntico da sua primitiva localização, da sua naturalidade poderíamos dizer - a luz. Desde o S. Pedro, feito para o absidíolo da nave da Epístola, ao S. João da nave do Evangelho, cada uma das tábuas de Grão Vasco tem naturalmente aquela que recebia no seu respectivo retábulo.

Pois bem: na capela do Santíssimo a luz cai de cima e da esquerda; no quadro de S. Sebastião vem nitidamente do lado oposto!

Conseqüentemente o próprio quadro confirma tudo o que dissemos: o S. Sebastião nunca foi o quadro do primitivo retábulo da actual Capela do Santíssimo.

Temos assim que, até por êste único motivo, essa capela deveria ser, por exclusão de partes, o primitivo lugar do Calvário, afinal o seu lugar próprio, pela monumentalidade da sua traça e pelas largas possibilidades de observação - toda a nave do transepto; mais que tudo - agora sim! - pela perfeitissima coincidência da luz, a própria e a da capela!

Também no Calvário a luz é o certificado da sua naturalidade - a primitiva capela do Santíssimo.
Ai o vemos em espírito, em tôda a pujança artística que lhe imprimiu o génio incomparável de Grão Vasco, revestindo o fundo frio e sombrio do tôpo do transepto, com o colorido das suas tintas vivas, quentes e polícromas, a emprestar à nave as perspectivas novas dos seus horizontes de dilatadas lonjuras, e a dar a todo o templo, silencioso e calmo, a nota vibrante do drama intenso e ruidoso da tarde divina do Gólgota (10).

NOTAS

(1) Alguns desses arcos ainda hoje podem ver-se, abrindo os armários de arrecadação que se encontram detrás do actual retábulo.
Nas obras de restauro a que se vem procedendo na Sé, deve transformar-se a Capela de S. Pedro em Capela do Santíssimo, removendo da actual o anacrónico e destoante retábulo do século XVII, restabelecendo a comunicação com a capela de D. João Vicente e pondo a descoberto os túmulos e arcos-sólios da respectiva parede. Sabemos que para tal obra que se impõe para valorizacão da Sé, a Direcção dos M. Nacionais encontrára o melhor assentimento da Autoridade Eclesiástica.

(2) Memórias - Vol II, pág. 269.

(3) A instituição foi, adiante, reduzida a documento lavrado nas notas do tabelião Francisco da Costa Homem (antiga e nobre familia dos Costa Homem de Viseu) e em 1629 cofirmado pela Santa Sé.
Não obstante, o túmulo, que é o que serve hoje de credência do Santíssimo, do lado da Epistola, tem servido de urna a quantos ossos têm sido tirados dos outros túmulos da Sé!

(4) Memórias – loc. cit.

(5) Como sucedeu a quási todos os mais túmulos da Sé, os ossos devem ter entrado na arca da capela do Santíssimo.

(6) Salvo erro, foi o Portugal Antigo e Moderno quem primeiro o fez. De então para cá, a atribuição continuou…

(7) Diálogos – cap. 4º.

(8) Memórias – Vol. II – pág. 214.

(9) VISEU – Instituições Religiosas – 1928 – pág. 428.

(10) Pode acrescentar-se que a luz do S. Sebastião, vinda da direita do observador, denuncia precisamente haver sido feito para a actual capela de tércia, ou antida de sua invocação, pois com semelhante luz, a não ser êsse o seu lugar, só poderia sê-lo o do altar de S. Pedro. Êste é claro que não foi.
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