sábado, junho 24, 2006

Imagens de Viseu (13/20)

por F. de Almeida Moreira, 1937

XII - A SÉ




É muito vasta, infelizmente, a série de transformações, de complicadas modificações e de irritantes acrescentamentos que a primitiva Sé românica de Viseu tem sofrido, pelos tempos fora, dando-se o curioso anacronismo, para quem a visita, de entrar por um portal dos meados do século XVII, construído entre duas tôrres românicas do século XII, com modificações na parte superior (a balaustrada e as cúpulas) dos fins do século XVII e princípios do século XVIII, para se encontrar, uma vez lá dentro, debaixo duma abóbada dos princípios do século XVI, apoiada em colunas e paredes do século XII!

Isto levou o crítico de arte, o conde polaco Raczynski, - que, como é sabido, esteve em Portugal nos meados do século passado, - a dizer no seu livro « Les Arts en Portugal », publicado em 1844, que não havia país que apresentasse, sob o ponto de vista de arquitectura, mais anacronismos que Portugal, e que não conhecia quási nenhum edifício do nosso País que o progresso não tivesse estragado e em que não tivesse estabelecido a confusão.

De tôdas estas obras, que com o andar dos tempos foram transformando a primitiva Sé românica, salva-se apenas, é claro, a obra notável da abóbada dos nós, que o bispo D. Diogo Ortiz de Vilhegas em boa hora se determinou a mandar fazer, e porventura delineou, nos fins do século xv, concluindo-a em 1513, - em substituição da anterior que era de madeira (que dantes era de fôrro de madeira) - como diz Botelho Ribeiro.

Mas essa obra foi tão genialmente concebida e executada que, a bem dizer, é o estilo da abóbada que domina e prevalece, como que formando um todo, tão bem êle está ajustado à parte românica primitiva.

Prosper Merimée notou, nos seus trabalhos sôbre arquitectura, como os dois estilos - o românico e o gótico - tão diferentes na aparência, quando se considera cada um no seu ponto de desenvolvimento, se confundem, por assim dizer, insensivelmente, no seu ponto de transição, sendo certo que a arte gótica foi buscar todos os seus elementos à arte românica que a precedeu.

A actual Sé de Viseu, com as suas colunas e paredes românicas, em que se apoia a abóbada gótica, é um frisante exemplo da afirmação de Prosper Merimée.

***

A planta da Sé de Viseu é de três naves, divididas por seis colunas românicas, tendo a forma duma cruz latina, como geralmente acontece nas igrejas românicas. Os dois braços da cruz formam o transepto - a sua haste constitue a nave central e a Capela-Mór.




O esqueleto ou os satura da abóbada é constituido por séries de cruzamentos de ogivas, sendo cada uma dessas séries (a que podemos chamar lanças) - formada por oito superfícies curvas que, interceptando-se sucessivamente, dão lugar a oito intercepções constituídas pelas nervuras em diagonal, alternando com a ornamentação simples e elegantíssima das cordas com os nós. As nervuras e as cordas dos nós encontram-se tôdas num ponto culminante, que é o fecho de cada lanço da abóbada.

Cada um dêstes fechos é rematado por diferentes escudos, brazonados uns e com divisas régias outros trabalhados todos em pedra de Ançã.

Assim, na abóbada correspondente à nave central, e no fecho do 1.° lanço, junto à frontaria e por cima do côro alto, vê-se o brazão do bispo D. Jorge da Costa, o Cardial de Alpedrinha, arcebispo de Braga, prelado notabilíssimo, que tendo falecido em Roma em 1508 e sendo o antecessor de D. Diogo Ortiz no bispado de Viseu, muito contribuiu para a realização da obra da abóbada, tendo até deixado em testamento uma avultada quantia à Catedral de Viseu. Por gratidão e em sua memória, destinou D. Diogo aquele lugar para o brazão do seu antecessor.

No fecho imediato nota-se, em maiores dimensões, dominando todos os outros, o brazão do bispo D. Diogo Ortiz, que assenta sôbre uma inscrição, como que gravada nas folhas dum livro, com os seguintes dizeres:

ESTA SÉ MANDOU ABOBEDAR o MUITO MANIFICO
SENHOR D. DIOGO ORTIZ BISPO DESTA CIDADE
E DO CONSELHO DOS REIS E SE ACABOU NA ERA DO SÑOR DE
1513

Êste prelado, sendo astrólogo e matemático, adoptou para o seu brazão uma estrêla, que ocupa o centro do escudo, tendo como cercadura uma série de paralelipípedos.

A seguir, no 3º fecho, vê-se a divisa ou emprêsa de D. Afonso v - um rodizio ou roda de navalhas.
No imediato está a tão conhecida divisa de D. João II - um pelicano ferindo o peito e alimentando de sangue os seus filhos - e, finalmente, no último lanço, no transepto, vêem-se as armas de Portugal.




Os fechos das naves laterais são todos rematados com o brazão do bispo D. Diogo, com excepção dos do transepto que têm, do lado Norte, as armas de Portu,gal e de Aragão, certamente em homenagem à Rainha D. Izabel, mulher de D. Denis; e, do lado Sul, a divisa de D. Manuel- a conhecida esfera armilar.

Por último, no fecho da nave lateral Norte - a seguir áquele em que está o brazão de Portugal e Aragão - vê-se um grande açafate de flores, certamente alusivo ainda à RaÍnha D. Izabel- Rainha Santa de Portugal.

D. Diogo Ortiz era conhecido pelo nome de Calçadilha, por ser natural da povoação dêste nome, perto de Zamora. Era de nobre ascendência e veio para Portugal em 1476, acompanhando como confessor a Excelente Senhora D. Joana, filha de Henrique IV de Castela, que sendo sobrinha de D. Afonso V foi depois sua 2ª mulher.

D. Diogo mereceu tanto a estima dos reis D. Afonso V, D. João II e D. Manuel, que o chamaram para o seu Conselho e o fizeram seu confessor e capelão-mór, prior de S. Vicente de Fora, bispo de Tanger e de Viseu.

Como nota interessante da vida dêste prelado, não podemos deixar de citar o facto de D. Diogo ter feito parte do congresso de sábios que D. João II convocou, para decidir da proposta feita por Cristóvão Colombo para demandar os mares, em descoberta do Novo Mundo, navegando para o Poente, proposta que a Inglaterra já tinha desprezado e o referido congresso igualmente desprezou, por condescendência com D. Diogo Ortiz que se mostrou tenazmente contrário à aceitação do oferecimento de Cristóvão Colombo.

Diz Manuel Botelho Ribeiro nos seus «Diálogos morais, históricos e políticos» que estava el-rei quási persuadido a lançar mão do que dizia Colombo, e o bispo D. Diogo o desviou dizendo. . . «que tudo tinha por patranha ».

D. Diogo faleceu em Almeirim em 1519, quando aí se achava a côrte. Foi sepultado na mesma vila, mas hoje nada ali existe do edifício da igreja em que o prestigioso bispo foi sepultado, nem o menor vestígio dos antigos paços reais.

O terramoto de 1755 arrasou tudo.

Como natural complemento da famosa abóbada também o insigne bispo realizou a obra da frontaria no mesmo estilo, em substituíção da primitiva, românica.

Da riqueza dos motivos arquitectónicos dessa porta principal e da perfeiçâo da sua execução pode fazer-se uma ideia pelo que diz Botelho Ribeiro:

«O friso, as figuras, a folhagem do portico principal e os mais relevos e lavares com que é obrado, que nem de cera se fizera melhor, haveis de confessar não tereis visto coisa semelhante; todo aquele portal e o. mais frontespicio que está entre as Torres com curiosa invenção de vidraça que dá luz ao côro, he obra deste insigne prelado».

Mas, infelizmente, esta bela obra desmoronou-se em Fevereiro de 1635 e, em lugar de ser cuidadosamente reconstruída, foi substituída por outra, que é a actual, de estilo pesado e jesuítico, obra dum medíocre artista espanhol, o arquitecto João Moreno, de Salamanca.

A frontaria actual da Catedral de Viseu é, portanto, já a 3ª edificada e que chega a ser mesquinha, não estando em harmonia com o estilo delicado e ao mesmo tempo grandioso do interior.

Como único pormenor interessante, vêem-se nela 6 nichos com esculturas de pedra de Ançã, representando a do alto, Nossa Senhora da Assunção, como orago da Catedral; as laterais representam os quatro Evangelistas - S. João, S. Lucas, S. Marcos e S. Mateus, acompanhados pelas figuras que respectivamente os simbolizam: a Águia, o Boi, o Leão e o Anjo.

Ao centro vê-se a imagem de S. T eotónio, que foi 2.° prior da Catedral no século XII, fundou o Convento de Santa Cruz de Coimbra e é o padroeiro da cidade de Viseu.

V oltemos ao interior da Catedral.




À nave central corresponde, no tôpo, a Capela-Mór, (que era a antiga abside) assim como às naves laterais correspondem os absidíolos.

A Capela-Mór, com a infeliz modificação mandada fazer pelo bispo D. João de Melo, que governou o bispado de 1673 a 1684, perdeu todo o seu caracter primitivo.

A antiga abside românica, que era de forma poligonal, de muitos lados, alternando os contrafortes com as reintrâncias, aonde se abriam as esguias frestas, com as suas molduras próprias, como ainda se vê nos absidíolos, postas já a descoberto, exteriormente, foi transformada e substituída por outra (que é a actual) de forma rectangular, pesada e sem graça. Uma das razões desta modificação foi a de dar mais luz à Catedral, razão que, pouco mais tarde, levou também o Cabido, na vacância de 1720 a 1740, a modificar tôdas as janelas, dando-lhes a forma rectangular que ainda têm e que é de urgente necessidade repôr na sua feição primitiva (1).

Mas a mania da muita luz, que fez modificar tôdas as janelas da Sé, ampliando-as e dando-lhes a forma rectangular, fazendo-lhes assim perder a sua elegante forma primitiva, e a moda da talha, vêm, uma coisa e outra, transformar por completo o ambiente próprio ao recolhimento e à unção, e o aspecto interno da Catedral, que sofre torturas impiedosas na sua traça primitiva.

Mais tarde vem o domínio da cal! Um autêntico sacrilégio artístico! O granito das paredes e das colunas, dêsse admirável granito beirão, de grão tão fino e de tom tão suave e macio para a vista, é bàrbaramente picado para melhor aderência da argamassa! As colunas que são formadas pela reünião de diferentes superfícies cilíndricas que se interceptam verticalmente, são transformadas em colunas duma só superfície cilíndrica, enchendo-se de cal e areia as reintrâncias e alizando tôda a superfície com cal!

As paredes são também caiadas, tendo-se colocado em 1722 um silhar de azulejos feitos em Coimbra, por um medíocre artista da época, cujo nome não vale a pena citar, alusivos a cênas da infância de Cristo e a cênas da vida de S. T eotónio.

Com a colocação dêstes azulejos profanam-se túmulos e tapam-se portas! Só a abóbada, certamente pela altura a que está, escapa à caiação! A desarmonia é completa!

O conde de Raczynski, que exerceu funções diplomáticas em Portugal no meado do século XIX,
refere-se a êsse facto na obra já citada, em carta datada de Viseu em 1844, profundamente indignado, nos seguintes termos:

Contudo a grandiosidade da abóbada é tamanha que não consegue ser destruida, embora seja diminuída pela visinhança da cal das paredes e das colunas.

Raczynski acrescenta: Vê-se que a cal nos meados do século XIX estava no seu apogeu! E exerce o seu poder duma maneira cruel, não escapando até as imagens da fachada, que também são caiadas!

Mas o seu domínio (que hoje felizmente está quási extinto) vai até 1895, data em que, pela intervenção da então Rainha Senhora D. Amélia de Orleans, por ocasião da sua primeira visita a Viseu, são limpas as colunas e restituídas à sua côr e forma primitiva. Hoje só há uns restos de cal na capela do Santíssimo e na Capela-Mór.

A Sé tem, assim, a pouco e pouco, readquirido a sua harmonia primitiva de tons suaves.


(1) Devido às obras de reintegrações que se vêm realisando na Catedral, já se encontra restituida à sua forma primitiva a janela da parede Norte.
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