sábado, junho 24, 2006

Imagens de Viseu (16/20)

por F. de Almeida Moreira, 1937

XV - A PORTA TRANSVERSA ROMÂNICO-OGIVAL DA SÉ CATEDRAL




QUANDO ao iniciarem-se, em princípios de Maio de 1919, as obras de tiragem de cal das paredes interiores da Sé de Viseu (depois do parecer favorável, dado pelo Conselho de Arte e Arqueologia da 2ª circunscrição, à minha proposta nêsse sentido) apareceram os primeiros vestígios da existência da porta transversa da primitiva Sé românica, mal poderia eu prever a grandeza do seu desenvolvimento e a beleza das suas elegantíssimas arquivoltas. E à medida que a desobstrução se ia fazendo mal poderia também, admitir a ideia de se ter emparedado semelhante jóia arquitectónica e se não tivesse procurado evitar a sua obstrução, modificando a traça dos claustros.

O lindo portal do período de transição românico-ogival, cuja restauração está hoje concluída, é formado por doze arquivoltas, que numa suave elegância nascem, aos grupos de duas, do ábaco simples. Quatro colunas de fustes cilíndricos lisos sustentam, de cada lado, as ogivas. Os capitéis representam aves brincando e beijando-se, num desenho ingénuo, como que estilizado. É o simbolismo do amor ! As bases são ornamentadas de fitas entrelaçadas. Rematando o portal, na parte superior, foi descoberto, também, um pequeno nicho com uma escultura de granito muito primitiva (séc. XII), representando a Virgem com o Menino no regaço, dum sentimento simples e calmo. Sem a menor dúvida que a barbaridade de entaipar uma obra arquitectónica desta natureza se cometeu na ocasião em que se construiram os claustros, no tempo do bispo e cardial D. Miguel da Silva, que governou o bispado de Viseu de 1527 a 1547.




A sua história é simples: Parte do chão onde hoje se erguem os claustros era ocupado pelo velho paço onde habitaram os primeiros reis de Portugal, conseguindo o referido bispo que D. João III lho cedesse, para aí construir os claustros. Sabido que D. Manuel era padrinho de D. Miguel da Silva e tão seu amigo que, por sua expressa determinação, foi educado e se formou em Roma, como já referimos, não custará aceitar que D. João III acedesse aos desejos do ilustre bispo, afilhado de seu pai.

A obra realizou-se por volta de 1534, tendo o bispo espalhado prodigamente o seu brasão, talhado em granito, em tôda a volta da parte mais alta da abóbada. Para dar maior estabilidade à sua construção, a parede lateral da Sé, em que se abria a porta transversa e sôbre a qual se ia apoiar uma das faces do claustro, foi aumentada na sua espessura a tôda a altura da abóbada, obstruindo-se então as lindas guarnições da porta, dando-lhe a forma de nicho, a que o seu desenvolvimento mais se prestava. Mas é curioso que, uma vez feito o claustro e reconhecendo-se, naturalmen te, a vantagem de manter mais aquela comunicação entre o interior da Sé e o novo claustro, reduzindo a abertura do portal primitivo, substituiram-no por outro mais estreito, rematado em arco de volta abatida, tendo-se mutilado barbaramente a primeira arquivolta da porta românica, para assim se fazer o guarnecimento das umbreiras lisas daquele portal.

Mas esta nova porta, aberta no fundo do nicho, funciona apenas até à vacância de 1720 a 1740, pois que, também, por sua vez, é obstruida em Janeiro de 1721, em que Joam Rodrigues, para guarnecer as paredes internas da Sé de painéis de azulejo - de desenho mau, e executados em Coimbra - a tapa, de pedra e cal e para melhor a dissimular, coloca pela parte interior da Sé uma meia base de granito com seu fuste fingido de madeira caiada! Na parte e'xterior, dando para o claustro, o nicho é aproveitado para nêle se armar um altar provisório, de madeira. Por fim, depois de estar quási quatro séculos emparedado, o formoso portal volta, por um feliz acaso, a patentear-se, em tôda a sua beleza, aos olhos daqueles que amam, com enternecimento, os restos do nosso maravilhoso património artístico e se sentem felizes admirando-os.
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