domingo, maio 21, 2006

A Catedral de Viseu (5/9)

Separata da revista "Beira Alta", 1945

por Alexandre Lucena e Vale

RESENHA DAS TRANSFORMAÇÕES DA SÉ DESDE A RECONQUISTA DE VISEU AOS MOUROS POR FERNANDO MAGNO EM 27 DE JULHO DE 1058

1094-1114 - Construção ou 1ª reconstrução da Sé pelo Conde D. Henrique.

1291 - 0 bispo D. Egas faz um muro com uma porta entre a Tôrre e a Sé.

1362 - Acaba-se a abóbada do primitivo baptistério, dentro da tôrre sul do frontispício.

1379 - Começa-se o antigo e primitivo claustro a norte da Sé.

1392-1425 - D. João Homem manda pôr sinos na tôrre e repara o frontispício.

1455 - D. João Vicente dá começo à obra do actual claustro e manda fazer nêle a Capela de Jesus ou do Calvário.

1466-1482 - D. João Gomes de Abreu reedifica, reformando-a, a Tôrre de Menagem e faz nela aljube eclesiástico.

1487-1505 - D. Fernando Gonçalves de Miranda manda fazer o primitivo retábulo do altar-mór.

1513 - D. Diogo Ortiz de Vilhegas reforma o frontispício e ultima a obra da abóbada dos nós.

1516 - (23 de julho) D. Diogo Ortiz de Vilhegas, restaurada a Sé, faz a sua solene consagração.

1534 - D. Miguel da Silva reforma e completa a parte térrea do claustro, e adquire o antigo alcácer e adjacências.

1544 - D. Miguel da Silva faz o Côro Alto.

1553-1566 - D. Gonçalo Pinheiro manda construir a escada para o Coro Alto, redificar com o nome de Capela da Cruz a antiga capela de S. Sebastião nos Claustros, inicia a obra dos Paços. Faz-se o novo baptistério (actual) e no antigo a capela do cônego Henrique de Lemos.

1567 - É feita a capela da Senhora da Piedade - alto-relêvo de pedra de Ançã, no Claustro.

1569-1578 - D. Jorge de Ataíde manda construir a Sacristia actual (1574), tôda a parte do edifício que lhe fica superior, e ainda parte do Paço dos Bispos.

1586-1594 - D. Nuno de Noronha conclui o Paço dos Bispos e inicia o Seminário no mesmo edifício (1593).

1595-1597 - D. Frei Antônio de Sousa completa a obra do Seminário, e o cônego Jorge Henriques faz no claustro a Capela do Senhor da Agonia.

160? - É erecta a capela de Santa Rita ou da Senhora do Crasto, nos Claustros.

1610-1628 - Fazem-se as obras de reforma da actual capela do Santíssimo e da de D. João Vicente no Claustro, construindo-se as chamadas Escadas do Sol ou Porta do Sol.

1635 - Derrocada da frontaria gótica, da tôrre de norte e de parte da abôbada.

1639-1671 - Grande Vacância – Faz-se a fachada actual e encimam-se as tôrres com os balaüstres e zimbórios, sendo colocados os relógios na do lado sul; faz-se o claustro alto e a obra das varandas: constroiem-se os dois púlpitos actuais na base das primeiras colunas da nave central; substituem-se as janelas ogivais pelas rectangulares, actuais; retiram-se para a Sacristia os quadros monumentais de Grão Vasco e fazem-se os altares de talha dourada incluídos os de Nossa Senhora do Rosário e Santa Isabel, êstes nos vãos das portas ogivais que existiam nos respectivos locais; revestem-se as paredes das naves laterais com uma precinta de azulejo com passos da vida de S. Teotónio, as dos altares de S. João e de S. Pedro com paineis alusivos à vida dêstes santos, e as do corredor da Sacristia com cenas várias; reveste-se interiormente todo o templo de estuque branco. Amplia-se a Capela-Mór e faz-se o Tesouro Novo.

1673-1684 - D. João de Melo continua as obras da Capela Mór.

1696 - Faz-se a capela de Santo António nos Claustros.

1720-1739-(Vacância). É entulhada a porta românica dos Claustros (I) e fazem-se ai os altares de S. José e S. Miguel. Faz-se o passeio das varan¬das entre o claustro e a tôrre de Menagem. Constroe-se a Sacristia do Santissimo e abre-se a porta que dela comunica para o altar de S. Pedro. Substitui-se pelo actual o cadeiral antigo da Capela-Mór que passa em parte para a Capela da Cruz, no claustro. Constroem-se as salas do Capítulo sobre a Capela da Cruz e de Jesus, e forram-se de azulejo bem como o baptistério.

1760 - D. Julio de Oliveira manda fazer o cruzeiro do Adro.

1763 - É feita, no Claustro, a Capela da Assumpção.

1790 - Reforma-se e doura-se a tribuna actual do Santíssimo.

1814 - D. Francisco Monteiro Pereira de Azevedo manda fazer o órgão grande.

1818 - É feito o gradeamento da Capela do Santíssimo.

188? - D. José Dias Correia de Carvalho manda retirar o estuque que cobria as colunas.

1912-1919 - É por determinação do Conselho de Arte e Arqueologia demolida a obra do Tesouro Novo, na rectaguarda da Sé, mudada para o claustro a precinta de azulejo que revestia as paredes, nessa altura limpas do estuque ou cal, e desentulhada a Porta Românica dos Claustros.

1930 - A Direcção dos Monumentos Nacionais, inicia a obra da restauração da Sé, em curso ainda ao presente.

(I) A porta românica já desde a construção do Claustro baixo, havia sido em parte reduzida na altura.

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A Catedral de Viseu (4/9)

Separata da revista "Beira Alta", 1945

por Alexandre Lucena e Vale

D. Gonçalo Pinheiro (1553-1556), também como aquêle, nobre filho de algo, diplomado em cânones pela Universidade de Lisboa e doutor em teologia pela de Salamanca, humanista distinto que falava o grego, o latim e o hebraico, desembargador do Paço e embaixador em França, faz a obra das Escadas para o côro alto, dá comêço ao claustro superior, levanta no de baixo a Capela da Cruz, e lança os fundamentos do Paço dos Três Escalões (I).

D. Jorge de Ataíde, dos Condes da Castanheira, secretário efectivo do Concílio de Trento e emissário português a Roma, empreende a construção do grande bloco da sacristia actual e casas do tesouro que lhe são sobrepostas (II).

D. Nuno de Noronha (1586-1594) e Frei Antônio de Sousa (1595-1597), já nos começos do domínio castelhano, levam a cabo a obra monumental do Paço dos Bispos e Seminário, ou Paço dos Três Escalões (III), o nobre edifício que é sem dúvida, pela grandiosidade das suas proporções e pela severidade e discrição da sua traça, um dos mais curiosos exemplares da arquitectura seiscentista portuguesa (IV).

Mas já então era apenas nebulosa saüdade, o período esplendoroso da era manuelina. A estrêla da fortuna havia-se apagado nos areais de Alcácer, e a noite, a noite tenebrosa do domínio estrangeiro, adensara-se fechada e lúgubre sôbre a nação vencida. Não era pois de molde a novas obras tal período de abatimento. Os bispos de então compreenderam bem que as necessidades dos povos de Viseu e diocese estavam no momento acima de todos as mais materialidades, mesmo as consagradas à casa do Senhor.

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Ao declinar do primeiro quartel do século XVII, era tanta a miséria da cidade que o bispo Dom Frei Bernardino de Sena (1629-1632) com essa alma de franciscano que sempre manteve sob os esplendores da mitra, cede prodigamente aos pobres a totalidade dos rendimentos do bispado, reservando para si apenas o indispensável ao parco e modesto mantimento seu e de dois familiares (V). E, anos depois, em 1638, perante a exigência dum novo imposto do govêrno castelhano e as impossibilidades da cidade em satisfazê-lo, D. Diniz de Melo e Castro, já então o grande bemfeitor das Misericórdias de Viseu e Diocese, acode à Câmara no apêrto, pagando o imposto de seu bolso, no que fez à cidade grande mercê e esmola, como reza ainda hoje a própria acta da Câma¬ra de 1 de Janeiro de 1638 (VI).

Entretanto, como se a natureza bruta e cega quizera enegrecer ainda mais as tintas já pesadas do quadro doloroso do Viseu de então, a 18 de fevereiro de 1635, após dois dias de furiosa tempestade, à hora de completas, a tôrre dos sinos abre brecha, desiquilibra-se, desconjunta-se e desmorona trágica e ruidosamente no solo, arrastando na derrocada os primeiros tramos da abóbada e tôda a fachada ogival da reforma de D. Diogo Ortiz.

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Não vale a pena supor o que seria a desolação e abatimento dos nossos avós de então, perante o montão de destroços acumulados no Adro, nessa hora de tragédia que mais dramatizavam as circunstâncias difíceis da vida nacional, esmagados os ânimos sob o despotismo do domínio castelhano, perdidas para mais tôdas as esperanças de libertação, pelo abortamento e revindicta dos acontecimentos coevos do Manuelinho de Évora.

Talvez que nessa hora, como nos grandes lances lutuosos da história que pintam velhas crónicas, as mulheres arranhassem entre lágrimas e imprecações as formosuras de seus rostos, e os homens, abatidos, depenassem sem dó suas honradas barbas... Mas a vida é feita de contrastes e surprezas. E cinco anos depois, no dia 14 de dezembro de 1640, um postilhão, vindo do Pôrto à rédea sôlta, lançava em Viseu a nova da revolução triunfante e da feliz aclamação del-rei D. João IV.

Como sempre em outros casos da história, logo a feliz ocorrência teve o seu eco na Sé.

Lida a notícia em Câmara por D. António Botelho da Costa Homem, vereador mais velho e juíz pela Ordenação, logo a cidade em alvorôço deu largas ao seu contentamento, e, em meio de vivas e aclamações ao novo rei natural, se dirigiu à Sé a agradecer ao Senhor o já desesperado milagre da libertação da pátria..

E a despeito da ruína e da desolação do templo, de certo nunca êle pareceu mais grandioso e mais belo do que nessa hora de júbilo em que o Te Deum Laudamos do inspirado Lopes Morago ressoou solene e vibrante sob as arcadas da abóbada.

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Não nos prenderemos agora com a narrativa tentadora, documentada para mais nas actas oficiais da Câmara de Viseu, dos folgares de touros, mornos, canas e encamisadas com que a cidade festejou a seguir, durante dias, o feliz acontecimento da restauração nacional (VII).

Voltando à crónica das reformas operadas na Catedral de Viseu, diremos apenas que com o encetar do novo período histórico, desopressos os ânimos do pesadelo da dominação estrangeira, nem as incertezas, nem os cuidados, nem as exigências da guerra que se seguiu e demoradamente sustentámos, foram obstáculo ao restauro da parte desmoronada da Sé. Morto o bispo D. Miguel de Castro, sem bispos nos conservámos muitos anos, por motivo do conflito entre Portugal e a Espanha.

Foi por isso o Cabido da vacante que em tudo solicitamente providenciou, acudindo de pronto ao descalabro da frontaria e tôrre derruídas.

É dessa reedificação que nos vem a fachada actual, alçada nos moldes pesados e desgraciosos de então, sob o predomínio avassalador da recta que tudo invade e em tudo aparece, nos frontões clássicos, nos baldaquinos renascença, nos jane¬lões rectangulares, nos modilhões dóricos dos frisos e moldu¬ras. Despojaram-se as tôrres do encanto evocativo das ameias seculares, e impoz-se-lhes o modernismo atroz das balaustradas e zimbórios que mantéem ao presente.

Com esta obra infeliz e anacrónica perdeu a Sé toda a beleza exterior e o verdadeiro carácter de templo românico-ogival, que era o melhor título da sua nobreza antiga e o melhor ornamento da sua venustidade.

É já vezo obrigatório dos que historiam a Sé, invectivar neste ponto ao Cabido de então, condenando-o sem recurso como réu mandante do nefando crime, de que foi executor o arquitecto salamantino João Moreno. Não o faremos nós, que em nosso tempo, menos indouto de certo em preocupações artísticas, sobejamente aprendemos na lição diária dos nossos arquitectos e construtores actuais, quanto a sugestão da moda e a obsecação do moderno superam e vencem as melhores evidências da beleza eterna, impotente ela mesma para domar o gôsto sempre vário e inconstante dos homens. . .

Acresce que, ao invés do que acontecera com o gótico, o novo estilo no Renascimento ou lavor à romana, como se lhe chamava, ganha rapidamente todo o país, generaliza-se a tôdas as construções, enxertando-se mesmo, como em Viseu, na quási totalidade dos primitivos templos portugueses (VIII).

De mais, lamentando embora a inspiração infeliz que assim privou Viseu da sua melhor e mais valiosa jóia arquitectónica, há que reconhecer o acurado zelo dos pobres capitulares, que não contentes com reconstruir a fachada desmoronada havia cinco anos, ainda enobreceram o claustro superior com colunas e alpendres, levantaram a frontaria de varandas ou sacadas que olham para o Adro e reformaram as salas posteriores do antigo paço real ou Casas de S. Teotónio, empreendimento não menos notável da sua gerência activa e diligente (IX).

Com tais obras e as realizadas já sob o govêmo de D. João de Melo em 1673, no corpo da Capela Mor que foi grandemente ampliada e interna e externamente perdeu todo o seu carácter primitivo, fixa-se definitivamente a fisionomia arquitectónica da Sé, a sua feição actual, misto de estilos e sobreposições que vão desde o românico do Conde D.Henrique ao seiscentista do Cabido da Vacância.

Daqui vem que, observada de frente, a Sé de Viseu é pela fachada propriamente dita e pelos anexos que a emolduram - o Paço dos Três Escalões e o corpo de sacadas ou varandas do Claustro - um nobre e calmo conjunto arquitectónico harmonioso, homogénio, no estilo clássico renascentista do século XVII, de que o observador desprevenido não suspeita a antiguidade que, pelos materiais e fundações, de facto lhe pertence.

Na rectaguarda, sem dúvida a parte mais evocativa da Sé, com os seus absidíolos primitivos, coroados de merlões ponteagudos, a cornija de cachorrada correndo sob o eirado com ameias, as janelas românicas e ogivais assomando por entre os botaréus contrafortes, as varandas seiscentistas da casa capitular, de aristocráticos balaústres e grossos varões de ferro, debruçando-se sôbre a cidade e a paisagem em volta, tudo num aglomerado de linhas, arestas e volumes que emergem quási dramaticamento da mole gigantesca de granito - de pronto o estudioso menos experimentado reconhece na eloquência da pedra, a lição arquitectónica das transformações operadas em oito séculos de existência.

Só no interior, àparte as janelas rectangulares da reforma da vacância, é que o templo, duma aliciadora harmonia e austera sobriedade de linhas e proporções, mantém ainda hoje a sua feição primitiva românico-ogival, que deveria ser, sem as transformações exteriores, a sua legítima e íntegra fisionomia arquitectónica.

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Azado seria agora elucidar quem foram os mestres artífices das várias reconstruções que referimos, sobretudo da monumental obra da abóbada que em sua elegância e lavores não desmerece das suas melhores congéneres. Mas com excepção do referido João Moreno, arquitecto espanhol, natural de Salamanca, a quem se deve o risco e direcção do actual frontispício, e àparte diminuta intervenção que parece haverem tido os dois irmãos Castilho na pequena abóbada sob o côro alto, tudo mais se ignora.

E certo que já se aventou ser o próprio bispo D. Diogo Ortiz, o autor da preciosa abóbada dos nós que, pelo arrojo da construção e pulcritude das linhas, honraria de certo a memória do nobilíssimo prelado. Mas supomos haver mostrado já o nenhum fundamento da suposição, na biografia que dêste bispo escrevemos em 1934.

«Foi o ser D. Diogo cosmógrafo e astrólogo notável, e nessa qualidade haver pertencido à célebre Junta dos Matemáticos de D. João II, que induziu no êrro todos os que teem tratado do assunto. Ora além de que nem Barros nem nenhum dos nossos cronistas lhe atribuem outros conhecimentos que os de cosmógrafo, letrado, teólogo e orador sagrado, a verdade é que em parte nenhuma fora dos manuscritos de Botelho Pereira e do Padre Leonardo de Sousa, onde os mais escritores viseenses foram colher a informação, se inculca como tal o bispo de Viseu. De mais, se D. Diogo Ortiz de Vilhegas fôsse, na verdade, o arquitecto da abóbada da Sé, de certo não deixaria el-rei D. Manuel de lhe aproveitar os predicados, e o seu nome andaria então nas tradições e documentos da construção dos Jerónimos ou do Convento de Cristo de Tomar, ao lado dos grandes mestres dêsse tempo, como Boitaca e os Castilhos.

O douto Sousa Viterbo (X) ao tratar da sua estada em Viseu, onde segundo afirma, apenas teriam dirigido a abóbada baixa da entrada, sob o côro alto, nem sequer refere a hipótese da autoria do bispo Diogo Ortiz, não obstante a não poder ignorar, como é óbvio supor em autor de tão considerada lição.

Mais que tudo, porém, uma razão decisiva impede a conjectura da direcção técnica do bispo; durante todo o tempo da construçção, D. Diogo Ortiz reside em Lisboa, como familiar do Paço.

Assim, é afinal para os humildes e ignorados mesteirais da região de Viseu que vai verdadeiramente a glória dessa artística abóbada dos nós. Supomos vê-los, a êsses humildes cinzeladores do granito, anónimos alvenéis da Beira, de quem descendem em linha recta os grandes canteiros de Travanca, de Mouzelos, de Órgens, de Bodiosa, de todo o alfoz da cidade, na manhã festiva da sagração da Sé, endomingados em seus pelotes curtos de Bristol, seus borzeguins grosseiros de bezerro, suas gorras de lã, seus chapéus borganhezes, assistindo religiosamente à benção daquelas pedras que suas mãos calosas haviam pacientemente afeiçoado (XI).

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Arrumado assim o problema da autoria da abóbada, historiadas as reformas da Sé até a sua fisionomia actual, seria agora sazão de reatarmos o fio interrompido dos acontecimentos com projecção na Catedral no último período de três séculos.

Desde a vinda das relíquias de São Teotónio em tempos de D. João de Bragança, (1603) trasladadas do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no dorso duma mula gualdrapada de veludo carmezim, e recebidas na Sé com solene pontifical, até os tempos modernos da visita da Rainha Senhora Dona Amélia, vinda a Viseu dos banhos de S. Pedro, quantos quadros ricos de colorido e interêsse não perpassam no momento em nosso espírito! É o episódio pitoresco das freiras de Pinhel, erguidas em rebeldia contra o seu provincial, e aparecidas aí de surprêsa certa manhã de agosto de 1710, processionalmente em duas filas, de cruz alçada, de pés descalços, vendados os rostos pelo negro véu do hábito, clamando em altas vozes a justiça do bispo diocesano. É essa cena dramática, impressionante, talvez única nos anais da Igreja portuguesa: um grande prelado e virtuosíssimo sacerdote, o bispo D. Júlio Francisco de Oliveira, malquistado com a cidade por um fútil caso sem relêvo, agravado ao diante pela sequência dos acontecimentos, toma a resolução de se penitenciar em público; então - ¬versado o assunto na homília do dia - solene, revestido de pontifical, posta-se de joelhos bruscamente, confessa chorando a parte que lhe tocava nos agravos recíprocos e pede perdão a todos das culpas que nos acontecimentos lhe cabiam. São as festas da chegada e entronização dos bispos diocesanos, dos aniversários de Reis, das grandes comemorações nacionais.

É já no século passado, a entrada tumultuária dos franceses de Massena na Sé silenciosa e deserta como tôda a cidade abandonada; é, pouco depois, a transformação dos claustros e do próprio Paço .dós Bispos em hospital de guerra anglo-luso ; são, mais adiante, as solenidades oficiais pela aclamação de D. Miguel, pela vitória de D. Pedro IV; são as exéquias por alma de D. Carlota Joaquina, por alma de D. Maria II depois, com a respectiva mutação dos dois cenários humanos!

Mas não nos deteremos agora no debuxo das cenas que nos tentam das sombras aliciadoras do passado.

Baste-nos reconhecer que a par da Sé, a grande fábrica granítica que interessa ao arquitecto, ao artista, ao arqueólogo, uma outra existe, talvez mais grandiosa, que é para o nosso sentido evocativo um grande livro aberto, em cujas folhas cada pedra, emugrecida da moira funda dos séculos, nos conta a história de Viseu, a sua vida, as vicissitudes próprias e alheias, a sua comparticipação nos grandes e gerais acontecimentos da vida nacional. São séculos de história que estão nela como em escrínio precioso, sempre pronto a revelar a quem o quizer abrir, muito do que por ali passou, ocorreu, ficou jndelevelmente gravado no próprio granito do templo.

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Acima porém do seu interêsse artístico e histórico, a Sé tem um maior e mais alto valor espiritual.

Não nos referimos agora ao que para a doutrina e consciência católicas nela existe de divino na assistência eucarística de Jesus Sacramentado, na benção que a cobriu na sua consagração e nela desce a tôda a hora à invocação de cada missa.

Fora de tôda a atitude confessional, consideramos apenas o grande oceano das almas que desde há oito séculos por ali passam em romagem de emoção, na doce tranqüilidade dos dias calmos e na febril inquietitude das horas ansiosas, na resignação das grandes dores aceitas, na revolta incontida das duras adversidades, na aleluia interior das grandes satisfações.

Alegrias, tristezas, preocupações, tentações, dúvidas, confiança, ansiedade, - tudo quanto a alma humana pode sentir, aspirar, viver - sejam as insatisfações de Fausto ou os remorsos de Caím, as místicas aspirações de Santa Tereza ou a crença ingénua das crianças - tudo que é inerente à condição do homem, tudo quanto de implacável e de incompreensível existe no seu destino, tudo ali vive, palpita, adeja, impregnando o ambiente, adensando-se nos lavores da pedra, na talha dos altares, no corpo das imagens, no vago da penumbra, colado, inscrustado na própria substância material do templo, tornado a sua alma, a alma da Catedral!

Mudou a Sé, nos séculos, a sua fisionomia arquitectónica; passou por ela a história, sempre vária e nova. . . Uma coisa, porém, ficou e se mantém imutável: essa mesma alma, somatório das almas que por ali passaram, das almas de todos os tempos, afinal sempre as mesmas perante o mistério da vida, as mesmas na fragilidade da condição humana, as mesmas na ânsia dum abrigo às tempestades do mundo, as mesmas nas aspirações de infinito e de verdade!

Não foi em vão por isso, que os primeiros cabouqueiros da velha Sé românica, lhe moldaram a traça na Cruz do Salvador!


Viseu - Dezembro - 1944.


NOTAS
(I)Botelho-Diálogo V – Cap.8; Leonardo de Sousa - Vol. II pág. 359¬ verso.

(II) Botelho - Diálogo V – Cap. 11; L. de Sousa – Vol. II.

(III) Botelho-Diálogo V – Cap. 13 e 14; Leon. de Sousa – Vol. II..

(IV) A Seminário e Paço dos Bispos serviu sempre o edifício até 1810, data em que, por motivo das invasões francesas, o Bispo D. Francisco Monteiro de Azevedo cedeu generosamente a parte ocupada pelo Paço para hospital militar anglo-luso, indo aposentar-se em Fontelo, antiquíssima quinta da mitra viseense. Terminada a guerra em 1814, não podem os bispos, pelo estado deplorável em que a tropa deixa o edifício, regressar de pronto à sua antiga e secular habitação pelo que apenas lá continua o Seminário, a Câmara Eclesiástica, o Juízo, Cartório e Arquivo Ecleseásticos.

Em 1824, por contrato celebrado entre o bispo D. Francisco Alexandre Lobo, a antiga Congregação do Oratório ou dos Néris, passa a Casa dêstes religiosos em Santa Cristina à posse do mesmo bispo, que para ela transfere o Seminário, por melhor cómodo de instalação e por projectar obras de restauro geral no antigo Paço e Seminário do Adro. Entretanto, com a vitória liberal em 1834, o edifício do novo Seminário em Santa Cristina, como obra que era do Prelado miguelista então expatriado, é vítima do espírito de represália dos liberais vencedores, e, como se fôra ainda casa da Congregação do Oratório e não propriedade da Mitra como de facto já era, é abrangida no arrolamento dos bens dos conventos extintos, pelo que o Seminário é retirado dali, e se instalam lá os mais variados serviços públicos como quartéis, tribunal, e até um teatro.

Mas, logo adiante, em 1841, um incêndio devorou o edifício pelo que, desalojados os vários serviços públicos que nêle se aposentavam, lançou-se mão por força das circunstâncias e na ausência do prelado exilado, da parte desocupada do edifício do Paço dos Bispos e Seminário da Sé, iniciando-se então ali a inatalação dos vários serviços públicos, como quartel, Tribunal, Correios, Câmara, repartição de Finanças, delegacia do Tesouro, Obras Públicas, - que tudo isto por lá passou e demorou dilatados anos - além das diversas repartições eclesiásticas que nunca de lá haviam saído!

Todavia e por esse facto, até 1910 os bispos recebem renda do edifício, e por ocasião das respectivas entronizações, ao entrarem na diocese, tomam posse dêle, entrando nas partes ocupadas pelos vários serviços, abrindo e fechando as portas em acto oficial acompanhados das autoridades civis e eclesiásticas locais. Entretanto, em 1849, reentregue já à Mitra pelo Governo de Costa Cabral o edifício dos Néris, o bispo D. António Alves Martins. interessado em afastar do convívio dos seminaristas os alunos que no seminário faziam preparatórios para a Universidade, propõe ao Govêrno a criação dum liceu em Viseu, pondo para tanto à disposição do mesmo Govêrno e mediante a renda de 60.000 anuais, a parte do edifício do Paço dos Bispos, ao Adro, desocupada então pela saída da Câmara, do Quartel, etc. Ficam então a funcionar no edifício, além do Liceu, outros serviços públicos e eclesiásticos que aí se manteem até 1911 data em que, por fôrça da Lei de Separação, o edifício é arrolado, em 12 de Março de 1912 com o número 302 do lnventário dos Bens da Mitra nos seguintes termos:

«O Edifício constituído pelo Colégio contíguo à Sé Catedral de Viseu, com lojas e sobrelojas e dois andares em que se acham instalados o Governo Civil, o Liceu, e outras Repartições.»

Em 1922, com a saída do Liceu para o antigo edifício do Colégio do Sacré Coeur, instalou-se em parte do 2º andar o Museu de Grão Vaco, que veio a ocupar depois as partes deixadas pelo Banco de Portugal, Direcção de Obras Públicas, Governo Civil, ou seja a totalidade do edifício, com excepção duma pequena parte onde se acha instalada ainda a Biblioteca Municipal, e dos baixos ou rés do chão recentemente vagos pela saída da Polícia de Segurança Pública.

(V) Portugal Antigo e Moderno - Vol. XII - pág. 1620.
.
(VI) ... «e eram informados que o ilustrissimo senhor bispo dom denis de mello e de castro queria pagar o preço em que a ditta renda costumava arcadar-se e isto por suas rendas por fazer esmola a esta cidade e os moradores dela e seu termo que costumauam contrebuir pera este tributo por serem muito pobres e estar esta terra em muita necessidade e por o ditto senhor pedir a eles ofeciais uissem nisto a eles lhe parecia bem ser asi e o agradeciam em seu nome e do pouo a merce e esmola que o ditto senhor lhes fazia...».

Liuro da Camara do ano de 1637 - caderno ms. sem portada nem capas, de fevereiro de 1637 a 13 de janeiro de 638 - no Arquivo velho da Câm. Municip. de Viseu - Acta de 13 de janeiro de 638.

(VII) Livro da Câmara de 1640 - acta de 14 de Dezembro de 1640.

(VIII) Virgilio Correia – A Arquitectura em Portugal no século XVI – pág. 10 e seguintes.

(IX) Oliveira Berardo – Liberal – 13 de Junho - 1857.

(X) Diccionário dos Arquitectos - verb. Castilho (João de) pág. 183.

(XI) Lucena e Vale - D. Diogo Ortiz - O cosmógrafo D. João II, pág. 188.

sábado, maio 20, 2006

A Catedral de Viseu (3/9)

Separata da revista "Beira Alta", 1945

por Alexandre Lucena e Vale

Anos depois, pelo Natal de 1414, acolhe a Sé três dos mais ínclitos infantes de Avis: D. Duarte, o futuro rei, D. Pedro Duque de Coimbra, D. Henrique, o dos descobrimentos, Senhor da Beira e mais adiante Duque de Viseu, acompanhados de seu irmão bastardo, o Conde de Barcelos, fundador da Casa de Bragança.

Era ao tempo dos aprestos para a conquista de Ceuta. Andavam os Infantes, no sonho da empresa, a recrutar gente para as suas hostes, e D. Henrique, já então precocemente realista e prático, para melhor reunir os grandes senhores da Beira e mover seus ânimos à aventura, havia determinado de fazer umas grandes festas na cidade.

Deixou notícia delas, Gomes Eanes de Zurara, num capítulo da sua Crónica da Tomada de Ceuta, que escreveu há perto de quinhentos anos:

"Mais fez ajmda O Iffamte Dom Hamrrique por acreçem¬tar seus desemfadamentos. ca hordenou logo como sse fezessem huuas nobres festas em Viseu, pera as quaaes mamdou eomuidar o comde de Barçellos seu jrmaão eom todollos senhores bispos fidallgos e outros boõs homees que auía em aquella comarqua. aos quaaes fez saber como aquellas festas auiam de começar em uespera de natall, e auiam de durar ataa dia dos rrex. porem que lhes prouuesse de teerem tall maneyra em sua uijmda, que aaquel¬le tempo fossem alli, ou primeyramente se o fazer podessem por aazo de suas pousemtadorias serem milhor auiadas. E para esto mamdou o Iffamte a Lixboa e ao Porto por pannos de sirga e de laã, e brolladores e alfayates pera fazerem suas liurees e momos segumdo pera sua festa rreallmente perteeçia, e desy uiamdas forom buscadas per todallas partes mais abastadamente que sse poderam achar. Alli foram trazidas mujtas carregas de çera que sse despemderam em mujtas tochas, assy de seruir como de dam¬ças, e bramdoões e uelas e contos em tamanho numero que casy seria empossiuell de sse comtar. Alli forom outrossy de todallas uiamdas daçucar e comseruas que sse poderam achar no rregno em muy gramde abastamça. e assy de todallas maneyras despeçias e outras fruytas uerdes e secas que compriam pera sua festa seer abastada. e também uieram alli piparotes de ma¬luasia com mujtos outros uinhos bramcos e uermelhos da terra de todallas partes homde os auia milhores. E quamdo ueo aa uespera de natall eram ja todas estas cousas prestes. e assy muj¬tos corregimentos de justas e outros arreos de desuayradas ma¬neiras. e a çidade e aldeas darredor eram todas cheas de gcmte de guisa que pareçia a alguus estramgeiros que per alli passauam que aquelle ajumtamento non senam corte de rrey. Em ali aqnellas festas ouue muy gramde prazer, porque auia em ellas mujtos senhores e gramdes com mujtas maneyras de desemfadamemtos. e sobre todo a abastamça que era may gramde de mujtas delei¬tosas uiamdas. ca non sse acha que em todos aquelles dias ou¬uesse nehuu falliçimento, per que aquella festa em alguua parte podesse seer abatida (…) o Iffamte Duarte que estaua em Samtarem com seu padre, tamto que soube as nouas daqnelle ajumtamento, ouue muy gramde desejo de seer em elle. e loguo como passou o dia de janeiro ouue liçemça de seu padre, e escolheo seis fidallguos os mais gemtijs homees de sua casa com alguu outro pequeno corregimento. e assy aforrado partia de Samtarem, e trigou tamto seu amdar que posto que os dias fossem pequenos e os caminhos maaos, ohegou a Viseu a taaes horas que ouuio ajmda o offiçio de uespera de rrex, com seus jrmaãos" (1).

Paremos aqui na leitura da crónica, que é neste relanço, justo título da comparticipação de Viseu na arremetida gloriosa da nossa primeira expansão ultramarina.

Quedemo-nos a imaginar um pouco o que teria sido êsse ofício dos Reis na velha Sé românica de Viseu.

Não nos prenda o colorido do quadro fácil de recompor pela lição dos cronistas noutras cenas similares. Deixemos a visão da Sé iluminada à luz morna e inquieta dos brandões de cera, o bispo D. João Homem com o seu clero, os Infantes com os seus trajos de côrte, os fidalgos beirões, rudes montanheses sem cortezania, abafados em seus gibões de inverno, os burgueses ricos da cidade, de saio e mantolote, seguindo admirados a função, os mesteirais de ofício à mistura com o povo rural do termo, apinhados pelas três naves do templo.

Perscrutemos antes a alma dessa gente, do Bispo, dos Infantes, dos grandes senhores da Beira, já no segrêdo da verdade, - a próxima expedição que as festas prologavam.

São ainda homens da Idade Média em cujos peitos arde acesa a chama rubra do ideal cristão da Cavalaria. De joelhos em terra, em frente do presépio, meditam gravemente os mistérios do dia.

É a hora litúrgica da vinda dos Reis Magos. Pelos caminhos ínvios da velha Palestina, seguem, pressurosos, três potentados da terra a oferecer ao Menino-Deus, Senhor do Mundo, com o ouro, o insenso e a mirra, a vassalagem da sua servidão. Também êles, como os Magos – pensam – irão dentro em breve às terras desconhecidas da África, oferecer o ouro do seu sangue, talvez a própria vida, a êsse mesmo Rei-menino ali presente. . .

Sobe no ar com o fumo do incenso, a melodia religiosa dos salmos. Á luz movediça dos cereais do Côro e dos archotes das naves o templo como que se espiritualiza. E talvez que nessa hora um frémito misterioso trespassasse, percorresse as pedras da velha Sé românica, erguida também ela para glória de Deus em plena guerra de cruzada.

Já então ia alta a hora nova do gótico. Havia séculos que das profundezas da Idade-Média, num lento processo de gestação, vinha germinando um mundo novo de ideias, de sentimentos e aspirações.

A cavalaria feudal havia sucumbido caminho de Jerusalém, e, enfraquecida de vidas e riquezas, cedia lugar à nova classe da burguesia nascente.

Á economia agrícola sucedera por sua vez a economia artesana, determinando o desenvolvimento das corporações de artes e ofícios, as grandes associações de artífices de projecção internacional, e, pela sua estrutura e intervenção na vida públi¬a localista, a fôrça propulsora da crescente importância da classe mesteiral de que sairiam ao diante os grandes arquitectos, construtores, escultores, pintores, os mestres da nova floração artística.

Um fermento novo, as traduções de Avincena, Averróis e Aristóteles, levedara no próprio seio dos mosteiros, a cujo âmbito se circunscrevera até então tôda actividade intelectual.

Alberto Magno, Santo Tomaz de Aquino, Duns Scott, Rogério Bacon imprimem à filosofia tal altura que não mais se deterá em seus vôos primitivos.

A controvérsia dos nominalistas e realistas apura a dialéctica e abre ao pensamento audácias sem limite.

Ora, como nota Viollet Le Duc, a arquitectura é, de tôdas as artes, a que mais reflete as ideias e os sentimentos dos povos. O espírito do século toma expressão na pedra.

A sociedade feudal dos séculos Vº a Xº tivera o seu estilo, o românico ; a nova época que precede os fulgores da Renascença tem igualmente o seu – o estilo gótico.

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0 românico fôra a expressão da fôrça, da unidade inteiriça do pensamento cristão-católico da primeira Idade-Média.

É a respuhlica-christiana em pedra. O estilo ogival, afirmado na maior altura da construção, no lanceolado dos contornos e das galbas que ascendem e se espiritualizam no ar - pedra feita prece a subir a Deus mas já pensamento a rasgar os mistérios do céu - é o espírito da nova época de inquietitude, de investigação, de curiosidade que ainda disciplina a estrutura católica, mas que já traz em si o vírus da Reforma, o naturalismo, o novo humanismo do renascimento clássico. Se, como é sabido, na arquitectura em geral a cronologia é baliza falível e difícil, muito mais o é na sucessão dos dois estilos românico e ogival. Na península hispânica, sobretudo, o estilo românico resiste tenazmente à invasão do opus-francigenium, construindo-se ainda em românico mais ou menos puro em plenos séculos XIV e XV.

Entre nós, com excepção da Batalha e dos Jerónimos, o ogival pratica-se sobretudo nas reconstruções dos primitivos templos românicos, por sobreposição e enxêrto, em transigência com a corrente moderna.

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A Sé de Viseu, inicialmente já dum românico terciário ou de transição, caracterizado pelo arco de ogiva que se observa no pórtico desentulhado dos claustros e nos arcos trilobados, geminados ou simples das diversas aberturas, bem poderiamos dizer ser exemplar característico dessa fusão dos dois estilos. A galba dos modilhões da cornija exterior do primitivo templo, obra do séc. XII, é, segundo o Prof. Arão de Lacerda, característica segura da influência gótica (II) todavia, nos fins do século XIV, o bispo D. João Homem, ao mandar restaurar a fachada principal do templo que lhe vinha do Conde D. Henrique. parece não a ter feito no novo estilo gótico que só um século depois lhe adviria com D. Diogo Ortiz de Vilhegas.

E o próprio D. João Vicente, meado já o século XV, ao construir nas dependências arruinadas dos antigos Paços reais, a sudeste da Sé, a sua Capela de Jesus dos Claustros ou Capela do Calvário, sem dúvida e a despeito da sua natural modéstia de capela tumular, o mais belo e curioso recanto de tôda a Sé de Viseu, com as suas colunas de lavrados capitéis fitomórficos e historiados, com suas arcas ferais de heráldicos escudos, cenotáfio e a estátua jacente do seu instituidor - só em parte enxerta nela a nova moda gótica na abóbada de arestas de fundas reentrâncias, que supomos obra sua. E todavia êste Prelado, que é uma das mais curiosas figuras da mitra viseense, homem da côrte e diplomata, confessor de rainhas e infantas, privado de reis e amigo de papas, embaixador e legado pontifício, vivera demoradamente em Espanha como confessor da nossa infanta D. Isabel mulher de D. João II de Castela, acompanhara a Flandres outra nossa infanta, Isabel também, a futura Duqueza de Borgonha, estanciara demoradamente em Roma onde fôra amigo pessoal dos papas Martinho e Eugénio IV, estivera por legado pontifício na corte de Inglaterra.

Homem de raras virtudes que fizeram dêle o Bispo-Santo como por antonomázia ficou conhecido na história, médico e lente de prima na primeira Universidade de Lisboa e só depois de o ser, ordenado de sacerdote por vocação antiga, reformador da Ordem Militar de Cristo e instituidor dos cónegos evangelistas de Santo Eloi, dotado de altas qualidades de espírito e sensibilidade, não podia ficar refractário às belezas artísticas das grandes catedrais góticas estrangeiras que em suas deambulações admirára.

Mas a pequena capela de Jesus, que como dizemos mandara erigir para sua sepultura, não pode servir de baliza arquitetónica porque foi em grande parte obra de adaptação.

Para mais, como dissemos, demora nos claustros, é uma dependência, um anexo do templo. Nêste, propriamente dito, o novo estilo só se adopta na grande reforma de Diogo Ortiz de Vilhegas e ainda assim atinge apenas o frontespício e a abóbada.

Daquele, desmoronado na derrocada de 1635, é conhecida a descrição que Botelho Pereira escreveu cinco anos antes, em quentes ditirambos aos embrincados lavores e rendilhados da pedra. Por êsse relato, inserto no manuscrito do primeiro cronista viseense, podemos conjecturar de longe o que seria a derruída frontaria da Sé gótica, com seu trabalhado pórtico de arquivoltas e pequenos colunelos, a formarem baldaquinos povoados de elegante estatuária, as tais admiradas figuras que nem de cera se fariam melhor, no dizer ingénuo e laudatório do panegerista (III). Acima, abria-se a grande rosácea – invenção de vidraça lhe chama Botelho Pereira - formando presumivelmente algum lindo e evocativo vitral, tudo coroado ainda dos vetustos merlões románicos primitivos, se é que não debruavam o tôpo da frontaria quaisquer corocheus e agulhas mais à feição ogival.

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Ainda então não dominava o Adro o nobre edifício do Paço dos Três Escalões nem o corpo de sacadas da ala superior dos claustros. A Igreja da Misericórdia também não existia, e só dêsse lado, a velha muralha afonsina com sua pedra morena delimitava o terceiro, de que desciam em escaleiras e socalcos até à ribeira do Pavia, pequenos arretos de hortaliça e olival.

Dêsafrontada assim de quaisquer outras edificações, erguida no alto da cidade a dominar tôda a paisagem em volta, que se estende até os altos empenhascados do Crasto, de Santa Luzia e da Muna, devia ter mais nobreza e grandiosidade a velha Sé viseense, vista de longe, a cavaleiro do burgo quinhentista, todo recolhido à sua falda, como a vigia secular da sua integridade espiritual e terrena.

Esta foi a Sé que na manhã distante de 23 de Julho de 1516 benzeu e consagrou Diogo Ortiz de Vilhegas, o bispo pação da corte manuelina, que abençoara as naus do Gama e do Cabral, e na Lisboa faustosa de quinhentos, em Belém e S. Domingos, nas horas da largada e do triunfo, exaltara o sentimento da pátria aos marinheiros portugueses da navegação e da conquista (IV).

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Foi êste o templo que conheceu Grão Vasco, e os seus painéis monumentais enobreceram por todo o século de quinhentos.

Considerando-o, nos quedamos agora deleitados, a imaginar o que seria então o interior da Sé, sob a abóbada magnífica dos nós, na penumbra da luz filtrada pelos vitrais das suas janelas góticas.

Ao tôpo da nave central, no altar mor, então à bôca do cruzeiro, os célebres 14 quadros com a vida de Maria e a infância de Jesus punham na severidade do templo, em transparências de côr de tonalidades flamengas, a doce graciosidade dos seus perfis femininos, dos seus delicados anjos de fisionomia andrógina, a lembrarem, na candidez do olhar, as Virgens florentinas de Cimabué. Nos altares do transepto, no do Espírito Santo e actual do Santíssimo, nos dois absídiolos ao tôpo das naves laterais, as tábuas monumentais do Pentecostes, do Calvário, do Baptismo, de São Pedro, dominando o ambiente, comoviam as almas com o seu ,realismo flagrante, e rasgavam nos fundos quedos e sombrios das naves, perspectivas animadas de movimento e luz que punham frémitos de vida na matéria inerte do granito do templo.

É esta a Sé dos grandes bispos do Renascimento, homens de côrte e sacerdotes de Deus, nobres filhos de algo, ciosos do acrescentamento das honras de família, atentos talvez ao próspero da fazenda própria, mas gastando-a também prodigamente, às mãos largas, no melhoramento de suas Catedrais e na maior magnificência do culto.

Portugal vive então a hora alta do ciclo estonteador das riquezas da Índia. A febre das ostentações e grandezas desce do alto do trono a todos os recantos de Portugal. D. Manuel cerca-se do luxo requintado dum sátrapa oriental, e os seus embaixadores, como Tristão da Cunha toucado de pérolas na Roma de Leão X, deslumbram pelo fausto as côrtes estrangeiras. Os nobres e burgueses ricos de Lisboa, tais quais os viu Clenardo, pavoneiam-se vestidos de veludo e seda com seu séquito infindo de serviçais e criados. As casas forram-se de razes e guadameis, adornam-se de mobiliário rico de pau santo e brazil.

Portugal é aquêle mundo novo que Garcia de Rezende já retrata nas quintilhas da sua Miscelânea:

Lisboa vimos crescer
em povos e em grandeza
e muito se enobrecer
em edifícios, riqueza,
em armas, e em poder.

Gastos mui demasiados
vemos nas donas casadas,
em joias, prata, lavrados
perfumes e defiados,
Tapeçarias dobradas,
as conservas, o comer,
vestidos, donzelas ter,
as camas e os estrados;
vimos por vinte cruzados
luvas de coiro vender
(V).

Desta atmosfera de grandeza e luxo não se alheiam os bispos portugueses, empenhados antes, por zelo divino e pressão do ambiente, em rivalizarem no melhor acrescentamento das suas catedrais.

Também para Viseu é êste o período das grandes obras e transformações da Sé.

D. Diogo Qrtiz (1505-1516) reforma, como dissemos, tôda a frontaria, imprimindo-lhe primores de ornamentação e escultura que em sua primitiva feição desconhecera; dentro eleva-lhe as colunas e pilares gigantes e lança-lhe em cima essa magnífica abóbada dos nós, evocadora, em seu simbolismo admirável, da faina maravilhosa dos descobrimentos marítimos (VI).

D. Miguel da Silva (1527-1547), o grande D. Miguel da Silva que ousou enfrentar a omnipotência de D. João III - nobilíssimo de sangue, de letras e virtudes, Cardeal de Roma e íntimo do Papa - enriquece a Sé de alfaias e paramentos, reforma-lhe o corpo da Capela de Música, oferece-lhe essa magnífica jóia de ourivesaria portuguesa que é a Custódia conhecida pelo seu nome, acaba e enobrece a obra do claustro, obtém da munificência régia os restos arruinados do primitivo paço ou alcácer real, permitindo assim aos seus sucessores o arranjo da parte sul da Sé (VII).


NOTAS

(I) Crónica da Tomada de Ceuta - Capitullo x x i i j - pag. 72 edição da Acad de Sciencias de Li.boa - de 1915.

(II) História de Portugal - Edição Monumental de Barcelos - Vol. II pág. 616. O ilustre Prof. e homem de arte refere-se apenas à cornija dos absidíolos. É porém manifesto que a cachorrada é a mesma e igual em todo o remate das paredes do templo. Também se nos afigura menos exacta a ideia da estilização duma prôa, (galba em forma de proa - diz o ilustre Professor) que o referido escritor viu nos modilhões referidos. Seja porém como fôr, cumpre aceitar a afirmação de inspiração gótica feita por autor de tão consagrada lição.

(III) Diálogos Morais – Diálogo V – Cap. 5.

(IV) Lucena e Vale - D. Diogo Ortiz de Vilhegas - o cosmógrafo de D. João II – pág 158.

(V) Crónica de D. João II - Miscellania.

(VI) Botelho Pereira -ob. cit. – Diálogo V – cap. 5; Pe. Leonardo de Sousa - ob. cit. Vol. II pág. 311 e seguintes.

A obra da abóbada foi consagrada na seguinte legenda que, junto das armas deste prelado, encima o fecho do primeiro tramo, sobre o côro alto:

Esta Sé mandou abobadar o mui magnifico Senhor
o Senhor D. Diogo Ortiz bispo que foi desta cidade
e do Conselho dos Reys e se acabou na era do Snr. de 1513


(VII) Leonardo de Souza – pág. 339 - Vol. II.; Botelho Per.ª – ob. cit. - Diálogo V - Cap. 8, que dá notícia do seguinte alvará feito em Évora em 1534 por D. João III:

D. João por graça de Deos etc.
Sou informado que na Praça dessa cidade de Viseu estão humas casas de meos coutos pegadas com a Torre da Sé que se chama de menagem onde está o aljube do Bispo as quaes diz que estão mui damnificadas e por assim estarem na Praça e damnificadas afeão muito a dita Praça e assim ocupão o muro da parede da dita Crasta nova que o dito Bispo agora fez
etc.

Dum outro alvará do mesmo Rei, em que cede as estrebarias, no mesmo lugar da Praça junto às casas já referidas, encontra-se eco no Livro dos Acordos de 1534, no prelo, que descobrimos no arquivo velho da Câmara Municipal de Viseu:

E asj iumtos e câmara logo o dito cor leu huu alluara del Rey nosso sõr p q faz uenda ao bpo don miguell da silua da dita cydade das estrybarias dos dos comtos lhe faz mercê do q a ele ptence… etc. – Acta de 3 de desembro de 1534.
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