quarta-feira, junho 29, 2005

Gomes Eanes de Zurara

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume III, fascículo I, 1944, 1º trimestre

Já lá vai um bom par de anos que no meu espírito nasceu um especial interêsse pelo autor da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.

Fazia, então no velho liceu de Viseu, o meu curso d.e preparatórios, quando um dia na aula de literatura, o austero padre Côta, com a sua máscula voz de puro beirão, envolto na sua capa à espanhola, nos falava largamente dos primeiros cronistas de Portugal.

Depois de dar em traços vigorosos o valor da obra do primeiro historiador português - Fernão Lopes - logo, em seguida, a prelecção continuou, pondo em destaque os trabalhos históricos de Gomes Eanes de Zurara.

Recordo-me bem. O padre Côta fechou então a biografia do cronista, dizendo que não sabia donde êle era natural, pois uns afirmavam ser de Zurara da Beira, hoje concelho de Mangualde, outros de Zurara do Minho.

A ideia de que o cronista poderia ter nascido nas terras da Beira encheu-me dum vivo alvoroço e curiosidade, pois seria para nós motivo do mais desvanecedor orgulho. Assim ficaria a Beira, sendo o berço de três notáveis cronistas que, àparte F ernão Lopes, melhor documentaram as primeiras épocas da nossa história. Rui de Pina, da Guarda, Gomes Eanes de Zurara, do concelho de Mangualde e já num período mais adiantado, escrevendo a História da índia, João de Barros, de Viseu.

Ao agitar agora neste estudo a questão da naturalidade do segundo cronista português, eu não tenho a veleidade de trazer para a sua solução novos dados ou argumentos que não sejam aqueles que andam espalhados pelas obras de literatura portuguesa que do caso se teem ocupado.

Outro objectivo não me domina se não o de oferecer ao estudo da gente moça o problema que aqui deixo esboçado.

Onde nasceu Gomes Eanes de Zurara? Em Zurara da Beira como uns querem, ou em Zurara do Minho, como outros pretendem?

A dúvida ainda agora foi focada na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» que se está publicando, pois no volume 3º, a pág. 963, na parte dedicada a Azurara do Minho, lê-se o seguinte: "Duvida-se que Gomes Eanes de Zurara tenha nascido nesta freguesia (Azurara do Minho). Segundo alguns autores, seria natural de Azurara da Beira (Mangul1lde)".

Esta dúvida tem por isso permanecido entre os cultores da História da Literatura que, no apelido Zurara, filiam a naturalidade do cronista.

Ora, na Idade Média, estava êsse costume muito em voga, pois aos demais apelidos, senão, ao próprio nome, se juntava, por vezes, o da terra ou região do nascimento. Os exemplos demonstrativos desta asserção colhem-se não só na História da Literatura, como em outros ramos da vida social daquela época.

Assim citando ao acaso, podemos apontar o autor da "Diana" cujo apelido era a terra da sua naturalidade - Jorge de Montemor - e da mesma forma o mestre de D. Diniz - Domingos Jardo que tinha por apelido o nome duma povoação do Sabugal.

O célebre piloto - Pero de Alemquer, que acompanhou Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, foi buscar também o seu apelido à vila donde era oriundo. O mesmo aconteceu com Pero da Covilhã e tantos outros.

Na Idade Média esta individualização era comum a tôdas as classes sociais, como adiante veremos.

O facto de Gomes Eanes de Zurara ser de obscura origem, como êle expressamente confessa, quando nas suas «Crónicas dos Condes D. Pedro e D. Duarte de Menezes agradece a Afonso V a longa criação e muita benfeitoria que dêle recebeu, considerando-se obrigado àquele rei porque as suas migalhas o criaram e os seus benefícios o levantaram do pó em que nasceu», não quere dizer que a formação do seu nome não obedecesse aos mesmos processos a que estavam sujeitos os apelidos das outras classes sociais.

Confirma êste modo de ver o erudito escritor beirão, Dr. Amadeu F erraz de Carvalho, quando no seu interessante estudo intitulado «Da Actual Feição da Antroponimia Portuguesa», a pág. 13, diz: "Depois dos patronímicos, foram os nomes de terras de que se era senhor ou originário, os que mais largamente começaram a adoptar-se como nomes de família, ligando-se em geral ao nome do baptismo pela partícula - de».

Nêsse recuado período histórico a individualização era em regra limitada a dois nomes, ao onomástico seguindo-se-lhe o patronímico.

Quando, porém, além dêstes dois, um outro nome aparecia a êles ligado por aquela partícula, outra coisa, por via de regra, não traduzia senão o local do nascimento do seu possuidor.

Raros são, por isso. os onomásticos ligados a mais de um apelido e, quando um outro aparece, êle não apresenta outra ideia que não seja uma melhor identificação do indivíduo com a terra do seu nascimento ou a que estava ligado por algum direito senhorial.

Quem estuda a onomástica da Idade Média verifica que com excepção dos patronímicos terminados em es ou iz, tam vulgares entre nós. a grande maioria, senão a quási totaIídade de apelidos, é formada por nomes geográficos. Isto, como acima dissemos, tanto acontecia nas classes inferiores como nas da mais alta linhagem.

Assim os apelidos Braganças, Sousas, Almeidas, Albuquerques, Maias, Silvas, Pereiras e tantos outros são indicativos dos lugares onde essas famílias tiveram a sua origem.

Não faça dúvida o facto dalguns dêstes apelidos não se encontrarem na nomenclatura corográfica, pois nem por isso deixam de referir-se a lugares certos em que se levantava a casa que servira de berço aos seus possuidores. Melhor expIícando esta adaptação, diz o citado escritor Dr. Amadeu:

«Êstes nomes geográficos tornados nomes de pessoas, podem, porém, revestir as formas mais diversas - assim, além de designarem a terra, a tôrre ou castelo, a propriedade de que era senhor ou originário, podem ainda indicar o país de origem ou como substantivo ligado por - de - ou na forma adjectiva ou ainda acidentes geográficos, formas de propriedade e até qualquer árvore que caracterizasse a morada familiar.»

A especificação individual durante tôda a Idade Média tornou-se assim duma grande simplicidade. Só mais tarde, principalmente depois da Renascença é que a evocação famiIíar se fez através duma extensa e complicada cadeia de apelidos, tam cruzados entre si se encontram já as famílias nobres de Portugal, mas mesmo ainda nesta época, um dos apelidos envolvia a ideia do local donde a família era oriunda. Isto se dá com o próprio nome do nosso épico, pois a palavra Camões é de origem geográfica como ensina Leite de Vasconcelos e largamente expõe o senhor Dr. António de Oliveira Matos no seu livro «Vida de Luiz de Camões», pás. 7.

Gomes Eanes de Zurara calcula-se ter nascido em 1410, época da transição da Média Idade para o novo ciclo da História Moderna, pelo que é lógico concluir que a palavra Zurara envolve consigo a ideia do local em que o cronista nasceu. A esta última conclusão se opõe Agostinho Fortes, na sua «História da Literatura Portuguesa», a pág. 81, como adiante aludiremos.

Desde que se aceite a ideia de que Zurara tem o significado de naturalidade, a dúvida limita-se em saber em qual das duas Zuraras ou Azuraras êle veio 'ao mundo. Foi em Azurara da Beira ou foi em Azurara do Minho ?

Eis a questão. Creio que boas razões militam a favor de Azurara da Beira, apesar de serem escassos os dados da primeira época da vida do cronista, pois a biografia dos seus primeiros anos está cheia de lacunas.

De facto, aqueles escritores que dão à palavra Zurara o significado do local do nascimento, mais se inclinam para a nossa velha terra da Beira do que para a sua homónima do Minho.

Alguns chegam até a determinar a povoação do concelho de Mangualde onde êle nasceu. Assim, o ilustre professor Agostinho de Campos, no seu belo artigo «Primeiros Cronistas» inserto na «História da Literatura Portuguesa Ilustrada», dirigida por Forjaz de Sampaio, a pág. 198, vol. I, diz: "Nada se sabe de positivo da naturalidade e data do nascimento de Gomes Eanes de Zurara. Conjectura-se que tivesse vindo ao mundo cêrca de 1410 e hesita-se ainda hoje sôbre se o seu apelido se refere a Azurara da diocese do Pôrto se a Azurara ou Quintela de Azurara do concelho de Mangualde".

Da mesma forma, na «História de Portugal» publicada sob a direcção de Damião Peres, (edição de Barcelos) vol. 4º, pág. 351, capítulo IV, se encontra idêntica versão de ter sido Quintela dêste concelho a terra da naturalidade do cronista. A especificação duma localidade como - Quintela - está dentro da expressão Azurara, pois convém notar que com tal nome nunca existiu povoação alguma mas sim a área territorial que constitue o actual concelho de Mangualde. É à região de Azurara e não a qualquer determinada localidade que o Conde D. Henrique e sua mulher D. Tereza concede em 1103 o seu primeiro foral. Esta expressão abrangeu sempre, por isso, todo aquele vasto territórió que vai do Mondego ao Dão e que levou Herculano a afirmar que «uma circunstância que contribuia para dar maior importância a Azurara, era a amplidão dos seus termos semelhantes aos das grandes municipalidades, pág. 102, vol. IV.»

A designação geográfica duma grande extensão de território sem corresponder à povoação certa e determinada é um facto muito comum na Beira. Assim nunca houve localidades conhecidas pelos nomes de Sátão, Lafões, Besteiros, Tavares e Sinfães mas sim regiões designadas por êstes nomes.

Afirmar portanto que o autor da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné era natural da região de Azarara, é evidentemente localizar o seu nascimento dentro da mesma região o que levaria ao emprêgo daquele apelido.

Donde nasceu a ideia de que Quintela do nosso concelho poderia ter sido berço de Gomes Eanes de Zurara?

Não conhecemos os elementos que originaram esta conjectura, mas é certo que ela" é referida por vários autores da «História da Literatura Portuguesa».

A especificação duma aldeia dá ao facto do nascimento uma mais lógica precisão e reveste-a aos olhos da critica dum certo grau de veracidade.

Quintela de Azurara é uma das mais antigas povoações dêste concelho como se vê das Inquirições de D. Afonso III (1).

Fôsse nessa aldeia ou em qualquer outra, o facto é que a esta parte da Beira é mais atribuido o nascimento do sucessor de Fernão Lopes do que a Azurara do Minho. Resta-nos analisar a opinião daqueles que negam à palavra Zurara o signi6cado que lhe temos atribuído, pois afirmam que ela deve apenas ser tomada no sentido patronímico, isto é, como designando apelido de família.

Os que assim pensam, vão buscar esta interpretação ao sobrenome do pai do cronista, João Eanes de Zurara, cónego que foi da Sé de Coimbra e Évora.

Dando esta filiação ao cronista como certa, o que para alguns, porém, é duvidoso, cremos que, nem por isso, se pode pôr de parte a ideia de que a palavra Zurara não tenha também o significado de naturalidade.

Por que é que o pai usava o apelido de Zurara? Por ser talvez da mesma região em que o filho veio ao mundo. O cronista seria assim descendente duma família que, usando o apelido de Zurara daqui fôsse oriunda.

Se o pai usava o apelido de Zurara e, se este topónimo se refere, como ninguém põe em dúvida, a região certa e determinada evidente é concluir que êle daí era oriundo, como seria o filho que também o adoptou.

Temos nêste caso de admitir uma família originária do concelho de Mangualde a que pertencia o segundo cronista português.

A expressão geográfica - Zurara - não admite, à face da individualização mediévica, outra interpretação.

Zurara será, se quizerem, apelido de família mas nem por isso deixa de manter o seu caracter gentílico, isto é, determinativo da região donde a família era oriunda.

Interpretado nos termos expostos o vocábulo Zurara, a dúvida apontada não tem razão de existir, pois a maioria dos escritores são concordes em dar ao cronista como sua naturalidade as terras de Azurara da Beira e não simplesmente pelo facto de o pai aí ter também nascido.

Não há, infelizmente, porém devo confessá-lo, elementos que nos levem a um definitivo juízo.

O estudo minucioso da documentação histórica da época em que viveu Gomes Eanes de Zurara pode mais tarde levar o historiador a uma rigorosa e lógica conclusão. Por agora, estamos no campo das hipóteses que mais militam a favor desta região da Beira que a favor de qualquer outra terra do país. Nas poucas vezes que tenho ido ao Museu das Janelas Verdes, eu nunca deixei de silenciosamente, me quedar diante das famosas tábuas do Mestre Nuno Gonçalves, tam emotivamente elas evocam ao meu espírito tôda a pujante vitalidade do nosso período quatrocentista.

Depois, os meus olhos mais fitos ainda do painel da Adoração de S. Vicente, descobrem num dos lados a máscula figura de Gomes Eanes de Zurara. De cabeça encafuada numa negra gôrra, quási à laia de tiára, tam alta ela se eleva, de olhos penetrantes de observador, de facies vincado em firmes linhas, de todo o retrato, enfim, surge indiscutivelmente a figura dum homem forte, lembrando o tipo da gente das nossas serras.

É êste o único retrato que temos do cronista, feito, por certo, depois do seu regresso de África, onde fôra colher elementos para a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné e onde recebera aquela nobilíssima carta de Afonso V que muito o honrando, honrou também o rei que a escreveu. Assim, quando me encontro naquele Museu, prêso fico da sua figura, como que a procurar novos elementos que podessem vir em auxílio da minha tese.

Mas, infelizmente, não falam os retratos. É certo que, por vezes, êles são reveladores do caracter e traços psicológicos dos retratados, indo até pelo seu conjunto somático à afirmação dum tipo físico oriundo de certa região ou província.

Ora a impressão que se colhe dêste retrato, quer no detalhe, quer no conjunto fisionómico, é de facto a dum homem que, dentro do seu condicionalismo telúrico, mais está subordinado ao tipo mesológico desta província da Beira do que ao de qualquer outra região.

É incontestável e não faz dúvida, hoje, ter a Etnologia demonstrado a existência dum tipo étnico de linhas inconfundiveis como habitante desta região da Beira, caracteristicamente individdualizado do resto das outras populações do país, mergulhando as suas raízes etnológicas na estrutural ancestralidade lusitana.

Por esta razão, entre as populações que constituem a nacionalidade portuguesa, o beirão se destaca por características bio-psíquicas que o tornam portador duma somatologia própria que o retrato do Gomes de Eanes de Zurara reflete duma forma inconfundível.

Por mais que pareça vago e impreciso na escala dos valores interpretatios, o argumento iconográfico, o facto é que nunca deixou de constituir, como processo de análise e de identificação um precioso elemento de que a crítica com sucesso por vezes se serve.

(1) No século XVII nasceu em Quintela da Azurara, Ignacio de Figueiredo Cabral, filho de Pedro de Albuquerque e que, pela sua inteligencia e saber, foi, naquela época, um dos mais notáveis lentes da Universidade de Coimbra.

VALENTIM DA SILVA

domingo, junho 19, 2005

O castelo de Mangualde e a cidade de Viseu

por Valentim da Silva
in "Beira Alta", volume I, fascículo III, 1942, 3º trimestre


Quem quizer escrever a história da Península Ibérica, desde a sua primitiva organização social, levando êsse estudo até ao conturbado período da Idade-Média, não pode deixar de pôr em relêvo e assim de assinalar o alto significado que, naquelas remotas épocas, tiveram tôdas as construções militares, não só sob o ponto de vista do fim a que eram destinadas, mas também pelas conseqüências políticas que delas derivaram.

Como que dentro das suas muralhas, da cinta das suas graniticas paredes, os homens mais se prendiam e se ligavam na mesma constante aspiração que, outra coisa não era senão o predomínio da sua raça e mais ainda da expansão da sua própria crença.

Revestissem elas a forma dos primitivos castros lusitanos ou tomassem a aspereza dos opidos romanos, fõssem aqueles agigantados castelos do período gótico tivessem mesmo aquela ligeireza da construção imposta pela rapidez da defeza do terreno conquistado - sine calcis linimento ex minutis lapidibus trabibus interpositis - ou finalmente formassem mais tarde em plena Idade-Média, uma completa e harmónica cidadela militar, rodeada de graníticas e largas muralhas em que os adarves constituiam por si vastos miradouros e onde as albarrãs e cubelos imergiam quási sempre dos seus ângulos, como se fôssem os olhos das próprias atalaias ou tivessem ao centro as suas tôrres de menagem, como águias altaneiras, dominando todo o espaço que lhe ficava envolta, cercadas de profundos fossos, tendo por única comunicação as pontes levadiças, tôdas estas construções, enfim, disseminadas a maior parte pelo norte de Portugal, constituiram sempre páginas dum glorioso passado, monumentos da mais palpitante realidade.

Com razão João Grave no seu estudo sôbre Castelos de Portugal afirma:

"Espalhados há centúrias por tôda a terra portuguesa, como se tentassem defendê-la ainda contra surtidas de sarracenos ou invasão de exércitos europeus, os castelos de Portugal são dos nossos mais sugestivos monumentos.

Por êles que foram sustentáculos duma independência conquistada a ferro e fogo e vedetas permanentemente vigilantes da segurança do terriiório poderemos nós evocar as eras findas, reconstituindo-as, atravez da lição destas cidadelas, tão características duma época, em pinturas animadas e vivas; por êles será possível aos espíritos sensíveis conviver, por momentos, com as veneráveis gerações de homens intrépidos que amavam a sua pátria livre acima de tudo e que por ela se sacrificavam sem desmaios de coragem, quando era preciso expulsar o invasor do chão que lhe pertencia ou dilatar mais as fronteiras do reino.


Não são apenas documentos importantes para a etnografia. para a arqueologia, para a antropologia; são também vivos e intensos capítulos em pedra, dos Anais de Portugal.

Todos têem a sua história. Em todos êles se combateu com bravura, em horas de entusiasmo e de exaltação patriótica e mística no alarido das acometidas furiosas.


Todos são poetizados por lendas de heroísmo e de devoção a uma idéa e a uma fé que lhes comunicam beleza.


Foi entre as suas grossas paredes de granito que se fortificou o princípio da nacionalidade e se intensificou o amor da autonomia."

Os castelos representaram, pois, na formação e constituição da nossa nacionalidade um dos elemenlos mais poderosos de que se serviram os primeiros batalhadores portugueses na elevada missão que a Providência lhes destinou.

Estudar o papel que os castelos de Portugal desempenharam durante a Idade-Média é como folhear os primeiros Anais da nossa História.

Cada pedra, cada pano de muralha, cada porta chapeada de pesadas ferragens, cada paterna aberta às guarnições vencidas, cada tôrre de menagem, como último reduto das heroicas resistências, cada assalto, cada escalada que o pez, o azeite a ferver, os pedregulhos, lançados dos adarves, continham em respeito, cada vaga de mortíferas flechas, assobiando pelas fisgas das olongadas seteiras, todo êsse infernal clamor firmado na fôrça indomável da própria glória, ressurgem aos nossos olhos como visões dum passado extinto que, se mais nos enchem de espanto, mais nos avigoram o valor da nossa intrépida ascendência.

Tôdas estas fortalezas militares têem por isso, a sua história, ora cheia de triunfo e glória, ora cheia de desalento e derrota.

Cada uma foi cenário de épicos feitos ou de trágicas e dolorosas agonias.

Por mais obscuras que elas fôssem, nunca adentro das suas pedras deixaram os seus defensores de sentir, de viver grandes momentos de ansiedade e terror.

Recordar a vida dêsses castelos, as tradições que os cercam, tôdas as lendas que os enaltecem, é contribuir, sem dúvida, para o alargamento do património da nossa História.

Levados por êste patriótico propósito, vamos recolher, nêste singelo trabalho, o que a história e a tradição guardaram acerca do castelo de Mangualde e, ainda mais, o interêsse que a cidade de Viseu por longos séculos patenteou pela capitulação da sua guarnição mussulmana.

A dois quilómetros da vila de Mangualde, eleva-se um altaneiro monte onde hoje assenta uma formosa ermida e onde outrora se erguia um roqueiro castelo de dentadas ameias.

Falar dêste castelo é comemorar um passado longinquo, como é o da reconquista cristã que trouxe a expulsão dos mouros da península e que aqui teve também a sua hora de luta, a sua hora sangrenta de combate, travada entre as hostes cristãs e as guarnições militares sarracenas.

Sôbre as escarpas dêsse altaneiro monte e onde assenta a actual ermida, erguia-se outrora uma poderosa fortaleza, conhecida pelo nome de castelo de Azurara.

O tempo e os homens, nas suas inclementes alterações o arruinaram e acabaram por destruir.

Dele nos restam apenas as poucas pedras que, ainda alinhadas, se encontram detraz da mesma ermida.

Contudo, êle foi e representou nos primeiros séculos da reconquista, um valoroso baluarte para quem dêle estivesse de posse.

Subindo à tôrre da ermida, os horisontes que dai se avistam, abrem-se na mais larga vastidão em que se descobre todo o alteroso território da Beira.

Do sul, vindo das terras de Espanha, tôda a altiva cordilheira da Estrela, austeramente dominadora, como se fôra o braço forte dum ciclópico gigante e que, entre abruptas ravinas, se vai perdendo, misturando com os primeiros contrafortes da serra da Lousã.

Ao poente, desdobram-se as encostas do Buçaco, ainda hoje para a nossa alma de portugueses, palpitando das mais gloriosas tradições.

Ainda a poente, os primeiros píncaros do Caramulo, alargando-se em círculos concêntricos, sobrepondo-se a todos êles, o miradouro do Caramulinho, e, se a vista no-lo consente, mais longe, para além dêle, a faixa branca do mar, bordando as costas da Beira Litoral.

Depois, caminhando para o norte, mais o circulo se alarga entre as negras serranias do Montemuro e Gralheira, que, a perder de vista, se alongam até às distantes terras do Douro.

A nascente, as terras da Beira Baixa, quási que a chocarem-se com as balizas que as separam da Espanha.

Sobrepondo-se a êste vasto panorama, o castelo de Mangualde constituia, sôbre o ponto de vista militar, o mais estratégico e o mais valoroso elemento da defesa de tôda a região.

Na linha de cintura de fortalezas com que a Beira se defendia, então existentes, êle, pela sua situação geográfica, impunha-se a tôdas, como a primeira sentinela das terras da Beira Alta.

Se os castelos de Trancoso, Celorico e Linhares constituiam, nas primeiras horas da história peninsular, as guardas avançadas contra as invasões que viessem do nascente, o castelo de Mangualde não deixaria de ser para a Beira o mais poderoso reduto que cobrisse tôda a vastidão dos seus terrenos.

De facto, tôda a nossa província encontraria nêle a melhor defesa militar, apoiada ao sul pelo castelo de Seia, a poente pelo de Viseu e Lafões e ao norte pelo de Penalva.

A todos, porém, pela sua superior situação, se anteponha o de Mangualde e o facto que adiante narraremos o comprova duma forma clara e terminante.

Quando foi construído o castelo de Mangualde ? De que data é a sua fundação? Dizem-no do tempo dos mouros e assim no-lo afirma o vigário da freguesia de Mangualde, padre José Rebelo de Mesquita, pois em 1757, referindo-se a êle diz o seguinte:

"Há na minha freguesia uma serra chamada do castelo cujo nome alcançou de ser antigamente castelo de mouros, como consta de vestígios que nela se acham, que vem a ser uns muros muito antigos e que hoje se encontram arruinados e postos por terra, feitos e maquinados de pedra meúda unida com cal e areia de que ainda existem sinais e, se diz, foram fabricados por um mouro, Azurão, do qual tomou o nome êste concelho de Azurara."

Creio que não está certa a afirmação do vigário de Mangualde, atribuindo aos muçulmanos a construção do castelo de Azurara.

Mais remota deveria ser a sua antiguidade. Os mouros apenas se limitaram, quando se apossaram da província da Beira, a expulsar dos castelos ou fortalezas os seus detentores, guarnecendo-as depois com as suas fôrças militares, e somos levados a esta conclusão por uma série de argumentos que muito fortalecem êste nosso pensar.

Em primeiro lugar, não há memória de que nenhum dos castelos da Beira fosse construído durante o período da dominação sarracena. Todos eles são muito anteriores a começar pelo de Seia e Viseu.

Em segundo lugar, quási todos eles são de origem anterior a esse domínio, por vezes, remontando ao período romano ou visigótico.

Em terceiro lugar não se compreende que até à invasão árabe êste priveligiado lugar que é o monte do Castelo de Mangualde não tivesse sido aproveitado para base da defeza desta região.

Em quarto lugar, porque, tendo-se encontrado no sopé desta montanha, princípalmente nos sítios denominados Fonte do Pucaro e Raposeiras, vestígios duma povoação luso-romana, evidentemente que um castelo a deveria proteger com as suas muralhas contra os inesperados ataques dos invasores.

E em quinto lugar, porque numa das pedras que nos restam dêste castelo está gravado um símbolo fálico que, evidentemente, não era usado pelos árabes nas suas construções, mas sim pelos romanos e até pelos gôdos antes de abraçarem o cristianismo. O símbolo gravado naquela pedra é de tal importância que não nos repugna fazer o castelo de Mangualde coevo da época romana ou, se quizerem, da formação da monarquia gótica.

A invasão árabe na península dá-se no ano 711.

No século oitavo, já, pois o castelo de Mangualde deveria ter passado para as mãos dos sarracenos, seguindo assim a sorte de todos os outros.

Se a população da Beira, como afirma Herculano, continuou a conservar-se dentro dos seus costumes, da sua organização social, praticando a religião cristã, como fazia até à invasão, limitando-se a pagar ao governador alcaide ou vazir os tributos que lhe foram impostos, entrando assim na categoria das populações mosarabes, o mesmo não aconteceu aos castelos e fortalezas que foram ocupadas pelos respectivos alcaides mussulmanos.

Assim aconteceu ao castelo de Mangualde que, segundo uma tradição nunca interrompida, teve por alcaide um mouro de nomo Zurara e que por corrupção popular veio a designar-se por o nome de Zurão donde mais tarde derivcu o nome deste concelho.

Zurara foi, pois, o alcaide árabe que até à reconquista neste castelo representou o poder central, ou seja, dos emires de Espanha.

Esboçadas as primeiras tentativas da reconquista pelos reis asturoleoneses, os mouros vão cedendo sob a pressão das armas cristãs os territórios que, desde o século VIII, tinham ocupado.

Não vem agora a propósito fazer a larga narração dêsses sangrentos acontecimentos que, desde Afonso I se desenrolaram no território que mais tarde formaria Portugal.

O que nos interessa no presente momento é frisar, focar o alto relevo que o castelo de Mangualde desempenhou nas lutas da reconquista e que, no dizer de Herculano, ensanguentaram os distritos da Beira Alta, por mais de sessenta anos.

Até que Fernando Magno estabelecesse definitivamente o domínio cristão para além do Mondego, incessantes combates se travaram ora com sucesso para as armas cristãs, ora oom sucesso para as armas muçulmanas, neste território da Beira.

O castelo de Mangualde, pela posição militar que lhe assinalámos, era sem dúvida um perigo iminente para as populações que lhe ficavam a poente.

Viseu que tantas vezes foi tomado e retomado ora por mouros, ora por cristãos, tendo até o rei Afonso V num dêsses assédios, ai encontrado a morte, considerava sempre por isso, como perigo iminente para a sua defesa a posse do castelo de Mangualde, nas mãos dos sarracenos.

Era natural e lógico êsse perigo, atenta a situação geográfica desta fortaleza. A mais natural estratégia impunha a sua destruição.

Concertadas as hostes cristãs de Linhares, povoação que é situada nos contrafortes da Serra da Estrêla e fica a sudoeste desta vila, logo o ataque se deu ao castelo de Mangualde duma forma impetuosa a ponto da guarnição muçulmana cair para sempre nas mãos dos seus adversários.

O castelo foi tomado, dizem, incendiado, quâsi destruido.

Foi um grande alivio para Viseu, um grande sossêgo para tôdas as populações cristãs que lhe ficavam a poente.

Linhares que tinha prestado o seu concurso militar, pois estava já na posse dum governador cristão, muito concorreu para a eficácia dêste histórico feito.

É interessante pôr em relêvo a lenda que se bordou em volta da tomada dêste castelo e que Frei Agostínho de Santa Maria, no seu livro "Santuário Mariano" narra da seguinte forma:

Que êle foi incendiado, quando o seu alcaide Zurão se encontrava no castelo de Linhares e para onde tinha sido traiçoeiramente convidado e que o mesmo mouro morrera de tristeza e de dôr, observando, de Linhares, o incêndio do seu castelo.

Mesmo que o alcaide estivesse ausente e que traiçoeiramente tivesse sido chamado a Linhares, isso não deixava de implicar a aguerrida luta que se deveria ter travado entre a fôrça militar que o guarnecia e os assaltantes que o tomaram.

Esta montanha de rochosas escarpas de negras e graníticas penedias deveria ter sido nesse momento teatro da mais sanguinolenta batalha.

A nota sentimental do mouro, a morrer de pena de ver o seu castelo ao longe envolto em chamas, poderia fabular uma das mais lendárias novelas mediévicas, que tão comuns são a êste período conturbado dos mais bárbaros sentimentos.

Desligada a verdade histórica da lenda, não se pode admitir a tomada do castelo sem renhida contenda, tão importante êle era para quem dêle estivesse de posse.

Em que data é que os cristãos tomaram o castelo de Mangualde ?

Temos para nós que a queda do castelo de Azurara se deveria ter dado antes da acção definitiva de Fernando I, levando de vencida os mouros para além do sul do Mondego, e somos levados a isso pelo reconhecimento que a cidade de Viseu manifestou durante longos séculos, pela destruição do castelo de Azurara que constituia, como já por mais de uma vez assinalámos, pela sua situação estratégica um ponto militar de grande importância e por isso uma ameaça constante para as populações cristãs que lhe ficavam em frente.

Se a tomada do castelo de Azurara fosse realizada no tempo de Fernando Magno, que, como dissémos, firmou o domínio cristão até ao sul do Mondego, não haveria razão para que Viseu manifestasse duma forma tão inequivoca, durante tão longos séculos, o seu reconhecimento pela tomada do castelo, reconhecimento que envolvia a população de Mangualde e a de Linhares na mesma simbólica saudação.

O castelo de Mangualde deveria ter pois caido durante as primeiras tentativas da reconquista da Beira que mais se acentuaram no tempo de Afonso V e do seu sucessor Bernardo III.

Quando Fernando Magno tomou Seia, Lamego, Viseu e Coimbra, já o castelo de Mangualde deveria ter caído nas mãos dos cristãos.

Vejamos agora a forma como Viseu expressou a Linhares o seu reconhecimento até começos do século XIX pela realização dêste facto histórico.

Rezam as crónicas que o senado da cidade de Viseu, na segunda oitava do Espírito Santo de cada ano, trazendo o seu estandarte e acompanhado de muito povo e alguns clérigos, vinha a Mangualde e, subindo ao lugar mais alto da montanha, prestava homenagem a Linhares, inclinando o seu estandarte para aquele castelo, em sinal de reconhecimento pelo auxílio prestado na tomada da fortaleza de Azurara.

Ouçamos como o vigário de Mangualde, padre José Rebelo de Mesquita, descreve êste voto que a Câmara de Viseu vinha todos os anos realizar a êste monte.

Assim escrevendo em 1758, referindo-se às romarias das ermidas dêste concelho, diz:

"Nenhuma destas ermidas tem romage senão a da Senhora do Castelo á qual vai em romaria o Senado da Camara de Viseu todos os anos em a segunda oitava do Espirito Santo e com ele vai um dos curas da mesma cidade e dois beneficiados, e levantam procissão junto á Igreja matriz desta vila e cantando o Te-Deum Laudamus continuam até á mesma igreja e finalizando o acto com a oração de S. Julião, a vão novamente continuar ao Calvario da Via-Sacra, que está no monte do Castelo, cantando a Ladainha até á ermida da mesma Senhora, e no fim dela se celebra uma missa cantada. Depois vão continuando a mema procissão até ao cume do mesmo monte onde sôbre um eminente penedo brandem o estandarte real. No fim de tudo isto recolhem-se a solenizar todo êste acto com um esplendido banquete que fazem á custa do mesmo Senado."

Após a festa religiosa, seguia-se, como se vê a cívica cerimónia de saudação a Linhares, o que outra coisa não era o brandir do estandarte da Câmara de Viseu, como reconhecimento do serviço militar prestado por Linhares e Mangualde.

Nem à festa faltava o esplêndido banquete pago pela cidade de Viseu.

Frei Agostinho de Santa Maria, na sua obra, Santuário Mariano, livro II, a esta cerimónia tambem alude, descrevendo-a da seguinte forma:

"A Câmara da cidade de Viseu vai todos os anos a visitar a Senhora a êste seu Santuario, e encorporada, em a segunda oitava do Espirito Santo, o que faz sempre com muitos festejos.

E costuma no lugar mais alto daquela casa da Sanhora arrastar ou dar algumas voltas com a bandeira da mesma Câmara, olhando para a vila de Linhares, a quem fazem êste obséquio em louvor, dizem, e memória de que esta vila fôra a que tomara êste castelo ao mouro Zurão.
"

Quere o estandarte da Câmara de Viseu fôsse brandido num eminente penedo, como se afirma no Dicionário do padre Cardoso, quere fôsse arrastado, dando-se com êle algumas voltas, quere como, a tradição nos conta, a Câmara o inclinasse três vezes para a vila de Linhares, a idea é sempre a mesma ainda que exposta sob forma diferente.

O objectivo do acto era saüdar Linhares por ter auxiliado a queda do castelo de Azurara, e para êsse fim se praticava a cerimónia da bandeira.

Quando é que êste voto começaria não o dizem os escritores antigos, mas estamos convencidos de que ele deveria ter o seu inicio logo nos primeiros tempos da formação de Portugal.

Festa religiosa e cívica, porque a nobilíssima cidade de Viseu, tão cheia já, então, de valorosos feitos e que representava naquelas épocas longínquas o núcleo maís importante das populações da Beira e que fôra até a capital da Galiza, patenteava assim o seu agradecimento no simbolismo daquele voto a todos os que lhe ajudaram a destruir o inimigo que tantas vezes lhe pusera em risco a segurança e tranqüilidade do seu território.

Festa da Bandeira lhe chamamos porque depois das cerimónias religiosas, subia-se ao píncaro mais alto desta montanha para saúdar Linhares, cujas torres de menagem, ainda hoje eminentemente sobranceiras, de lá nos evocam todo um passado distante de glória e luta em que se firmou e consolidou a nacionalidade portuguesa.

Depois, realizava-se, como diz o vigário de Mangualde, um esplêndido banquete, pago pelo Senado de Viseu. Quere dizer que o voto terminava sempre alegremente e na mais íntima confraternização entre a cidade de Viseu e a vila de Mangualde.

Nota interessante que bem significava o sentimento de estima que unia sempre as duas populações.

É tambem ainda interessante ouvir o que Costa Lobo, no seu livro História da Sociedade de Portugal do século XV, nos diz a respeito da Bandeira que o Senado de Viseu trazia ao Santuário da Senhora do Castelo e que nos comprova o cumprimento da mesma cerimónia no reinado de Afonso V.

"Em 1465 o atraso da cidade de Viseu era tal, que nos Paços do Concelho não havia o sino indispensável para convocar ou avisar os habitantes.

Nas côrtes dêsse ano o concelho pedia ao Rei, que suspendesse a isenção dos privilegiados para o pagamento duma finta, que ele ia lançar para a aquisição dum sino de correr, como havia nos paços das principais cidades e vilas do reino, e que era necessário para chamar a vereação e dar rebate em caso de arruído ou de fogo. Até então serviam-se dos sinos da Sé, mas agora o
bispo e o cabido não consentem, e os teem fechados.


O Rei deu o seu beneplácito.

A municipalidade procedia com acêrto em requerer licença prévia para esta derrama, porque dez anos antes, em 1455, cometera a imprudência de mandar vir de Flandres uma bandeira que lhe custara a soma, enorme para gente tão penuriosa, de mais de 4.800 reais, e só depois é que se lembrou de pedir autorização para lançar a respectiva talha.

Afonso V, que por conta própria era um delapidador dos bens da corôa, mas que neste caso se mostrou proporcionalmente severo para com os seus súbditos negou semelhante autorização, para que o povo não fosse avexado; se as pessoas privilegiadas quizessem pagar para a bandeira fizessem-no muito embora, de outro modo se pagaria pelas rendas do concelho nos anos sucessivos. A compra fôra evidentemente devida á influência das pessôas gradas do concelho. Gomo êste, quatro anos depois, solicitava do rei o donativo de um pendão, vê-se que a bandeira de Flandres era tida por demasiado preciosa para ser levada em romaria ao Santuário de Mangualde.
"

A bandeira que o Senado da Câmara de Viseu trazia à Senhora do Castelo no século XV não era, portanto, a que fôra encomendada em Flandres, mas sim uma outra de menos valor.

Para a aquisição desta bandeira, destinada ao referido voto, pediu, como se vê dêste historiador, o concelho de Viseu autorisação ao Rei Afonso V.

Isto nos basta para testemunho do voto que o Senado da Câmara de Viseu praticava durante longos anos.

Num dos livros da Câmara Municipal, do princípio do século XIX, verifica-se que Viseu vinha ainda nessa época cumprir o seu voto a esta serra e pena foi que tão cívica cerimónia acabasse por se obliterar, por desaparecer da memória das últimas gerações.

Eis o papel histórico que nas lutas da reconquista desempenhou o nosso castelo que, depois de tomado aos mouros, por muitos anos ainda existiu e que teve entre outros alcaides ilustres o glorioso descobridor do Brasil que foi Pedro Alvares Cabral.

Quando das Inquirições de D. Afonso III, em 1258, testemunhas aparecem apontando-o ainda existente. Por certo, as suas últimas muralhas acabaram de ser destruídas para no seu lugar se levantar em 1828 a 1855 a formosa ermida que hoje o substitue. A primitiva ermida ficava em baixo junto da casa do ermitão e cujos alicerces, cujas fundações ainda hoje se podem verificar.

As festas da Câmara de Viseu e as demais cerimónias religiosas realizavam-se nessa pequena capelinha que, primitivamente, Frei Agostinho de Santa Maria diz ter sido mesquita de mouros.

A pequena ermida no taboleiro inferior, o castelo no ponto mais alto da montanha, ficaram assim por longos séculos a testemunhar a rácica unidade nacional, cimentada entre o culto da religião e a força batalhadora dos nossos primitivos guerreiros mediévicos.

Santa Maria do Castelo lhe chamam os antigos documentos e assim deveria ser, pois, instituida naquela mesquita o culto cristão, era natural que aí fosse feita a invocaçào da Virgem sob a designação de Santa Maria do Castelo.

Tambem a Câmara de Castendo, as povoações do distante concelho do Sátão, tôdas as populações da freguesia de Povolide do concelho de Viseu, isto é, todos os habitantes dos lugares que ficavam sob o raio da acção do castelo de Azurara, aqui vinham, anualmente, por sua vez, prestar homenagem a Santa Maria do Castelo como reconhecimento de ter desaparecido do alto desta montanha o alfange do mouro que as avassalava e lhes impunha o seu despótico domínio.

Uma grande parte da Beira aqui trazia, pois, todos os anos, envolto nas preces religiosas, o cântico vitorioso da sua liberdade.

Eis o que a história e a tradição nos contam àcerca do Castelo de Mangualde, da sua tomada aos mouros e votos de gratidão que, por êsse facto, eram tributados pela Câmara de Viseu e de mais populações da Beira.

Mangualde

Valentim da Silva

segunda-feira, junho 13, 2005

A etimologia de "Viseu"

e uma carta de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos
por A. de Amorim Girão
in "Beira Alta", volume I, fascículo I, 1942, 1º trimestre

Decorrendo a Primavera de 1921, travou-se na imprensa de Viseu renhida polémica sôbre a etimologia e grafia do nome da cidade, que valerá talvez a pena recordar agora, a tantos anos de distância. Presta-se ela a fazer um pouco de história, e a história é sempre mestra da vida, como usa dizer-se.

Um conhecido professor viseense, que usava o pseudónimo de Mário Diniz, em artigo publicado no “Notícias de Viseu”, fazia derivar a palavra de Vicellus, deminutivo de vicus; e, sendo assim, concluia, deveria escrever-se Vizeu com Z.

Sugerindo outra etimologia, que depois reconhecemos não ter defesa possível, com aquela maneira de ver manifestámos logo no mesmo jornal o nosso desacôrdo quanto à grafia, baseando-nos no seguinte: - Se em todos os documentos anteriores ao século XVI encontramos Viseu com S, e se, como está estabelecido entre os Mestres da ciência da linguagem, só depois dessa época se tornou possivel a confusão, na pronúncia, do S intervocálico e do Z, é óbvio que sempre se escreveria nesses documentos segundo a verdadeira etimologia da palavra, e que deve portanto preferir-se a forma Viseu, como hoje fazem todos os nossos escritores e filólogos.

Contra isto nada haveria, supúnhamos nós, a objectar. Mas surgiu então outro contendor (que já pagou o seu tributo à morte), a procurar demonstrar que seria possível a transformação fonética de Vicellus em Viseu, e que, portanto, era de admitir a etimologia e grafia propostas pelo primeiro. E dava como exemplo as palavras cisne, viso-rei e visconde.

Escrevia no “Jornal da Beira”, assinando-se Um Estudante de Latim, e guardou-se na redacção do semanário o mais rigoroso sigilo sobre a identidade do novo colaborador.

Ainda mesmo quando se procura discutir apenas as idéias, não há por certo tarefa mais inglória que esgrimir com um desconhecido.

A prosa logo revelava que o articulista do jornal católico mais devia ser Mestre que estudante; e a coisa entrou de complicar-se, porque se faziam já alusões pessoais, mais conducentes a exacerbar os ânimos que a esclarecer os problemas.

Quebrou-se todavia o mistério em certa altura. Veio a saber-se quem era o nosso antagonista; e a questão irritou-se a tal ponto que houve até ameaças de passar do rumo sereno das
idéias a tortuosas vias de facto.

Enchiam-se colunas e colunas de prosa inflamada, o respeitável público breve começou a aborrecer-se, e as redacções dos periódicos em litígio, à vista de tanta abundância de original, já nem sabiam como ver-se livres de colaboradores tão assíduos que ameaçavam não mais despegar.

Mas tudo, afinal, acabou em bem. Daquela acesa discussão não nasceu por certo muita luz, mas também não resultou, louvado Deus, a incompatibilidade das pessoas, que antes ficaram a estimar-se mais.

* * *

Quando agora, a vinte anos de distância, voltamos a passar a vista por sôbre o que então se escreveu, tudo aquilo nos traz ao espírito a imagem do “pó levantado e pó caído” do nosso Padre Vieira.

Tudo aquilo basta para nos fazer chegar à conclusão de que nada sabemos com segurança àcêrca da etimologia de Viseu : e faz-nos concluir também que as questões que às vezes apaixonam e dividem os homens só podem servir, afinal, para nos levar a exclamar como o Rei antigo: Vanitas vanitatum. . .

Daquela renhida polémica alguma coisa ficou, entretanto.

Ficaram, nas colunas de “O Comércio de Viseu”, uns versos de fino comentário que nos parece oportuno reproduzir, tirando-os do limbo onde cairam. Transcrevemos do seu nº de 22 de Maio de 1921 :

Z $ S

Ou a guerra do Alecrim e Mangerôna

Alecrim que, aliás. é
Mestre na especialidade,
Sustenta, não sei porquê.
Que o nome desta cidade
Se deve escrever com Z.

Mangerôna que parece
Saber, por egual, da póda.
Mostra, ao contrario, interesse
Em fazer vingar a moda
De escrever Viseu - com S.

Questão de lana caprina
Que apaixonou, todavia,
Muita gente que imagina
Pescar da regedoria . . .
Sem perceber patavina . . .

Alecrim e Mangerôna
Discutem serenamente:
Mas se o raio da sanfôna
Desafina... fatalmente
Teremos gróssa tapôna . . .

Porque alguns dos radicais
Já andam pregando ás massas
Que as questões gramaticais
São invenção dos Talassas…
Embrulhando a coisa mais.

O que, em verdade, acho mau;
Pois, se intervem na questão.
Gente de faca e calhau . . .
Os Córvos da Reacção
Serão quem pagam o patau…

Enfim, parece iminente
Tormenta que bom seria
Conjurar rapidamente:
Decretando uma grafia
Imparcial, coherente.

Eu, se o Congresso Beirão
Quizer descalçar a bota,
Lembro-lhe esta solução.
A meu vêr tão patriota
Como cheia de rasão :
Voltar ao Vijeu com Jota.
Reatar a tradição. . .

S. M.

***

Ficaram estes versos em saldo positivo. E ficou também, na posse de quem estas linhas escreve, uma erudita carta da saüdosa Professora D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que em certa altura desejámos ouvir sôbre um ponto da questão em que surgiram dúvidas ao nosso espírito.

Essa carta bem merece ser publicada; e devemos fazê-lo em homenagem à memória da grande romanista, “fada que a Alemanha enviou a Portugal para ilustrar as letras pátrias” no dizer de um autorizado biógrafo.

Ela constitúi uma lição magnífica, profunda, sôbre o assunto em discussão; e demonstra bem, ao mesmo tempo, quanto a sua autora, que tanto ilustrou o ensino universitário português, se mostrava sempre disposta a esclarecer os que a ela recorriam, atraídos pelos tesouros do seu vasto saber filológico, arqueológico e histórico.

Aí vai o documento :

Porto, 25-III-21.

Ex.mo Snr.


- discutir a grafia de um vocábulo cuja etimologia desconhecemos é sempre arriscado. E eu começo por confessar que ignoro a de Viseu - como a de quasi todos os nomes topograficos pre-romanos (
Durius - Tagus - Munda -Braga - Coimbra - Lisboa).

Ainda assim entendo que tem razão V. Ex.a e todos quantos pugnam pela ortografia Viseu que sempre uso e usarei - com Leite de Vasconcellos, Herculano e todos os Humanistas do século XVI que se ocuparam quer da geografia do país, quer de ortografia como parte da linguistica.

A escrita Vizeu é do século XVIII sobretudo e provêm do sistema dos que, não distinguindo já z e s na pronuncia, entendiam que seria bom substituir s, intervocalico, brando, por z - escrevendo p. ex. formozo, generozo, etc. etc.

A identificação de z e s na pronuncia, claro que começara mais cedo, - generalizando-se pouco a pouco - mas nunca por completo como V. Ex.a sabe bem. O Transmontano ri-se ainda hoje do Portuense que não distingue coser (consuere) de cozer (coquere) - e paço (palacio) de passo (passu), etc. etc.

Na ortografia ha erros causados, em regra, por falsas etimologias: Cea (ou Ceia) por Sea (Seia) de Sena por causa da ceia (coena): Cintra por Sintra (por causa de Cinthia).

Outras vezes - como p. ex. em cenreira por senreira (de singlaria) - é apenas a ignorancia, o desconhecimento da origem da palavra que causa hesitações.

O que nos obriga a ter Viseu por correcto é o costume constante dos antigos de o escrever com s. Em inscrições antigas, em documentos arcaicos, é sempre a forma com s que encontramos: Veseu em moedas visigoticas (vid. Leite. Religiões de Lusitania);
Viseu Uiseu num documento de Lorvão de 961 (vid. Cortesão. Onomastico Medieval Portugues p. 561); Uiseu nos dois Foraes - o de 1123 e o de 1187 impressos nos Portugaliae Monumenta Historica – Leges, p. 360 e 460).
Isso deveria bastar!

Ha todavia entre os motivos alegados pelos que preferem a escrita Vizeu pormenores que exigem resposta.

A etimologia que tira Viseu de lat vicus é insustentavel.

Vicus (com i longo) no sentido de vila, aldeia, bairro de cidade, etc., existe no Onomastico de quasi todas as provincias do Imperio romano. Os Italianos tem Vico, os Espanhoes, Vigo, os Franceses Vic - formações absolutamente correctas foneticamente. Em regra Vicus ia acompanhado de um gen. no plural que designava a gens ou tribu que fundara o vicu/m/. O Vigo da Galiza era Vicus Spacorum. Em França ha Vic-aux-salins, - Vid. Orbis latinus, de Graesse. - Em Portugal prevaleceram outras designações (Villa - Casal - no Norte; Aldeia no Sul. Vid. Sampaio Villas de Portugal). Da pronuncia viccus por vicus veio o nosso beco, como demonstrei outrora. O sentido de rua estreita, rua sem saída liga-se tambem ao italiano vicolo, que designa o espaço entre duas camas, nos dormitorios.

Este vícolo mostra que o deminutivo viculus era usado; embora não o fosse na topografia. E não se pode negar que dele podia sair o duplo ou reforçado vicellus - Não subsistem todavia representantes dele em neo-latim.

Se houvesse um em português, deveria ser vizelo (o Vizela não é vicellus viculus; é Avïcella por avicula, dem. de ave - é, como afluente do Ave, uma avezinha) Viculu dava Vigoo – Vigo - e o simples Vicus dava igualmente Vigo.

O Visense Oppidum de Plinio (V, 4, 4) estava na Africa - nada tem com a cidade portuguesa!

O suposto vicellus fazia grupo com o nosso martelo, bacelo, cutelo, novelo, tabela, vitela, etc.

De Viseu provêm correctamente Viseense - que em pronuncia familiar passa a Visense ; e em escrita culta aparece às vezes como Visiense.

Os exemplos cisne, visorei, visconde não provam nada para o caso de Viseu.

Em cisne e visconde a sibilante não era intervocalica : a sua pronuncia antes de consoante era e é diversa - como todo o mundo sabe. De resto, cisne veio-nos da Provença; e visconde do francês arcaico.

Quanto ao antiquado visorei, ele veio-nos de Espanha! E lá houvera confusão entre dois elementos prepositivos diversos. O vice latino nunca foi popular. Por isso houve substituição - de visogodo, usado a par de visigodo - tiraram o obscuro mas usado viso e disseram visorei! Ou então: vi-rrei. E nós imitamo-los.

Outro ponto ainda. Se Viseu fosse romano - e não pre-romano - o tema seria incontestavelmente Vis – Viso - o partir de videre. - Viso existe em neo-latino com o significado de sonho, visão; e com o de cara, visagem. Ambos não servem para designações topograficas. Só no sentido de pequena altitude, outeiro, de onde se gozam vistas - é que servia. E serviu realmente como nome de lugar.

Em Espanha ha quinze Viso-s, nove na Galiza (segundo o
Dic. Geogr. de Vidal).

E entre nós ha no concelho de Setubal a serra e o alto do Viso, quatro povoações desse nome; e uma que se chama Visos.

Mas... não me explico a derivação em - êu. (a forma Visaeensis, que li em qualquer parte, conduziria a Viseu.)

Ainda ha outra designação que me faz scismar. Li - mas tambémnão sei dizer onde - civitas visentina.

E encontro no Orbis latinus - Vicente da Beira como sinónimo de Viseu! Vicente a par de Viseu ? ?

Vagamente me lembro de já ter exposto em carta as minhas opiniões sôbre Viseu a alguém, mas não tomei nota do nome do consultante.

Desculpe o desalinho destas notulas e aproveite delas apenas o que lhe parecer bem. - Uma porção de opusculos sôbre nomes de lugar que possuo estão ha meses entre mãos de um professor portuense -; e outro, da Coruña, já mos pediu: é possivel que entre as observações que escrevi nas margens haja algum material util.

Em Goimbra talvez nos vejamos depois da Pascoela? Até lá com afectuosas lembranças

Carolina Michaëlis de Vascoacellos

Gomo nada diz da sua saude, suponho ser boa.

Fechada a carta, para acentuar melhor a impossibilidade de o nome Viseu derivar de qualquer deminutivo, ainda D. Carolina Michaëlis escreveu no envelope estas palavras: “eu (de ellus) só seria possível se viesse de França. Mas Viseu não é um chapeo”.

Tudo o que acrescentássemos agora a êste documento sôbre a etimologia do nome da cidade nada seguramente adiantaria, e poderia parecer pretensioso. Limitamo-nos, por isso, a deixar
aqui o erudito depoimento da insigne Mestra, que assim, mesmo depois de morta, continuará a ensinar.

Coimbra, Março de 1942.

A. DE AMORIM GIRÃO

N. R. - Devidamente autorizados pelo autor dêste artigo e ilustre Prof. universitário, Doutor Amorim Girão, podemos informar que o Estudante de Latim que no “Jornal da Beira” tomou parte no pleito foi o seu saüdoso director Cónego Inocêncio de Noronha Galvão, e que o autor dos versos foi o também já falecido Hipólito de Vasconcelos Maia, um dos mais nobres e' cultos espíritos do Viseu de há 20 e tantos anos.

quarta-feira, junho 08, 2005

Orcas, dólmenes e antas

por Aquilino Ribeiro
in "Beira Alta", volume I, fascículo III, 1942, 3º trimestre

As casas orbiculares das citânias, sem frestas, com portas baixas ou sem portas, defendidas de largo por muralhas ciclópicas, estão em matéria de arquitectura à direita da orca, a nosso ver centro da povoação neolítica.

O têrmo orca deriva ao que parece do céltico e só por ludíbrio, provocado por uma série de aproximações de ordem gráfica, auditiva, de configuração e de sentido, foi defraudada pelo têrmo arca de seu domínio. Orca, no romance lusitânico, significa dólmen e arca, no latim, sepulcro. Todavia não conhecemos texto algum clássico que abone tal qui-pro-quo. É certo que o termo arca foi usado pelos gromáticos na terminologia das demarcações rurais. Alberto Sampaio cita um documento notarial onde se fala em archa petrinea ab antiquis constructa, tendo o cuidado de nos advertir que não se trata do monumento pre-histórico, dólmen. Em refôrço da sua maneira de ver define archa: “um marco especial, composto de quatro paredes, como as guardas dum poço, que os agrimensores edificavam nos quadrifínios e perto das nascentes”. Esta interpretação supomo-la errónea, pois dos exemplos que apresenta parece dever inferir-se o contrário: et inde ad archa qui sta super ipsa villa; et inde per illa archa; per archas antiguas; petra da arca quomo verte agua contra a Ameadela. Aquêles sta, illa, archa antigua reportam-se a coisa estabelecida, inamovível, fora do conceito de oscilação e de actual que há em demarcar a propriedade que se constitue, não se compreendendo tampouco na construtura das "quatro paredes” o que pudesse ser a “petra da arca”, nem de resto tal dispêndio arquitectónico na limitação dos agros.

Arca aqui devia ser orca, mas o facto não invalida o nosso juizo quanto ao emprêgo impróprio e acidental do vocábulo. O povo não o assimilou. Tendo aparecido aqui e além em vez de orca, julgamos a confusão de fresca data, os recta-pronuncia presumindo corrigir a palavra empregada pelo vulgo, estranha, univalente, sem pergaminhos nem certidão nos tombos da linguagem. Com o significado de orca - se não estamos em êrro, e dado que não houve inexactitude do copista trocando o por a, percalço em que, involuntàriamente podia incorrer, dado que nos textos tanto figura a escrita arca como archa, variante bem embora admitida pela morfologia - ficou confinado à nomenclatura dos agrimensores e mais longe, quando se entremostra, é por equivoco. Existe uma aldeola. no concelho de Oliveira de Frades chamada Arca, que Pinho Leal supõe, é verdade que sem outra fórmula de processo, dever o nome ao monumento megalítico que estaria perto da igreja “que sendo ara derivou por corruptela em arca”. Em compensação existe também a localidade de Orca, nas cercanias do Fundão.

O designativo mais popular no país, correspondente a dólmen, é orca, sendo seus sucedâneos: casa da moira e forno dos moiros. Quanto a chamar-se-lhe casa da orca, segundo menção de Leite de Vasconcelos, só por abastardamento ou ampliação arbitrária, irresponsável, da pessoa que o informou.

Se entre orca e arca há um determinado parentesco, o mesmo se não pode dizer de orca e anta, ou de anta e dólmen, homologados abusivamente. Antae é um vocábulo de boa estirpe latina e só a fortiori, deformado na sua estrutura, por-quanto o fizeram transitar do plural para o singular, se adapta ao objecto que pretende representar. Ao contrário do que se lê nas Religiões da Lusitânia, nem hoje nem antigamente tiveram os dólmenes de parte do povo a designação apelativa de antas. A enxertia deu-se mercê duma enganosa aplicação do têrmo. O léxico de Grapaldi De partibus aedium define-o dêste modo: Ipsa vero ostiorum laterae antae appellamus, pilares às portas, devendo entender-se que às portas das casas e das povoações. A palavra tinha a sua prosápia e não entrou no idioma corrente, o que reconhecido por Leite de Vasconcelos torna estranha a sua argumentação quando explana que “foi em virtude duma metáfora, devida à semelhança que a imaginação do nosso povo encontrou entre os rudes monumentos pre-históricos e as peças arquitectónicas chamadas antae que tal denominação se aplicou àqueles.”

O raciocínio é falso e não é preciso grande esfôrço de análise para se lhe percutir a fútil base. Com efeito, se fôsse como pretende o criador da arqueologia nacional, ter-se-ia perpetuado a palavra no idioma com o significado próprio: a viviparição, digamos, que lhe atribuem seria então possível. Assim, repugna admitir que a “imaginação impressionada” não só lhe insuflasse sentido figurado, mas a desconjuntasse em sua forma original para a ajaezar do número singular que lhe repugnava.

Foi da nomenclatura geográfica, gerada nos limbos da língua, que o têrmo anta transitou por manifesto retorce para a linguagem dos arqueólogos. Há uma povoação chamada Antas de Penalva; há outra chamada Antas de Penedono. Há ainda certas pequenas localidades de Antas disto, Antas daquilo, e até univocamente, pelo menos no onomástico oficial, Antas, cujo orago é S. Tiago, no concelho de Famalicão.

Ora, Manuel Severim de Faria viajou um dia pela Beira e traçou relato do que viu. De Antas de Penedono escreveu: “Esta aldeia teve o nome, segundo parece, de muitas antas que por estas terras há, as quais antas constam de três pedras, duas delas que servem como pés e a outra em cima como mesa, em que, dizem, antigamente se faziam os sacrifícios gentílicos, e desta forma vemos muitas em outras partes dêste reino, principalmente na Estremadura e no território de Évora”.

O chantre era homem curioso e gostava de dar explicações de tudo o que lhe dava no goto. O que não reparou foi nos oiteiros singularmente empinados e a modo de plantão que se encontravam na mesma terra, chamados precisamente antas e que a meu ver determinaram aquêle título baptismal. Em sua objectividade pareceu-lhe que atinara com a bôa razão do nome locativo, sem investigar se era bem o próprio e correspondia ao conceito implícito na Tebaida Portuguesa, de Fr. Manuel de S. Caetano Damásio, o primeiro texto português que fala nas sepulturas pre-históricas da Serra de Ossa, com o nome de antas. Essa correspondência, a julgar pelos dados dum e doutro, era nula. Mas não era nariz de santo, embora versasse o assunto uma pena teológica. E assim recebeu o vocábulo alvará de correr.

Fazendo o inventário dos monumentos megalíticos descobertos até então entre nós, o académico Martinho de Mendonça de Pina, que compulsou o Itenerário do chantre da Sé de Lisboa, adopta o têrmo em questão. Provàvelmente não conhecia outro. Que nome lhe havia de dar quando havia aquêle acreditado? Os frades, que amam a erudição e detestam o linguajar do povo
consagraram-no em seguida. O século XX, em que a arqueologia portuguesa tomou notável desenvolvimento e foros de ciência, encontrou-se perante uma terminologia feita. Valeria a pena proceder à filtragem? Imaginamos que sim. Leite de Vasconcelos perfilhou-a, mas vê-se que andou à roda, desconfiado pela soma de argumentos que se viu obrigado a aduzir, alguns dêles forçados, outros especiosos, tudo aquilo querer endireitar a sombra da vara torta.

Mas vejamos as razões que induziram a êrro, na nossa humilde opinião, gente tão douta. Viterbo no Elucidario põe-nos na pista do deslize: “Anta, marco ou marcos grandes levantados ao alto, penedias, terras ou sítios, que ficavam na dianteira, à face, e como à frente de algum castelo ou povoação distinta. Neste sentido dizemos Antas de Penalva, Antas de Penedono, etc. Os antigos chamavam antae às colunas grandes e quadradas que guarneciam a entrada dos templos e palácios: bem pode ser que os monstruosos penedos, que estavam fronteiros de algumas terras notáveis, e por entre os quais corriam as estradas, metaforicamente se chamassem antas, como que faziam átrios, pórticos ou entradas às ditas terras. E, finalmente, se os antigos chamavam antes a qualquer coisa que estava na frente: (espanta) que muitos nomeassem antas as terras ou penhascos que imediatamente se encontravam antes de chegar ao têrmo da viagem, quando esta se dirigia a um certo e determinado lugar? . . ."

Sim, poderia ser isso, retrucar-se-á, o que é ainda possível verificar pela topografia da região, mas em Antas de Penedono, se não há, houve dos tais monumentos megalíticos, em Penalva do Castelo, no sítio do Rancozinho, também existe um pelo menos, e por sinal avantajado. Coincidências, responderemos. Antas de Penedono fica a 14,5 km de Penedono e seria absurdo que se formasse o onomástico, associando o nome da coisa a localidade a tal ponto distante; sendo certo que o monumento megalítico não representava circunstância de tanto relêvo para refranger sôbre ela. Quem se importava na alba do nosso povo com os dólmenes que exameavam pelos descampados? Ter-se-iam sequer apercebido dêles? É até certo ponto legítimo conjecturar que não, tendo em vista quanto o onomástico rural é prolixo e miüdinho, cambiando de nome de quinhentos em quinhentos metros. Mais lógico seria que a admitir o fenómeno de impressionação, a que se refere Leite de Vasconcelos, as denominações se fizessem indo buscar o primeiro elemento da combinação à orografia: assim, Oiteiro das Antas, Vale das Antas, Portela das Antas, etc. Nos cadastros prediais da Beira são freqüentes as designações como esta: Vala da Orca, Chã da Orca, etc.

O que se argumentou quanto a Antas de Penedono se aplica a Antas de Penalva, que dista cêrca de uma légua de Penalva, devendo acrescentar-se o que Martins Sarmento confessa por descargo de consciência, está-se mesmo a ver, no relatório Expedição Científica à Serra da Estrêla quando dá conta dos dólmenes que vai encontrando: “Não vimos que o nome de anta fôsse conhecido”. Seria o cúmulo que subsistissem o objecto nomeado e o nome locativo motivado pelo objecto, e o povo não soubesse estabelecer nenhuma espécie de relação entre uma e outra coisa. A custo se poderia explicar tal anormalidade por obliteração ou degenerescência das palavras.

Estácio da Veiga aponta na sua carta arqueológica do Algarve o sítio de Antas da Luz como devendo o nome a anta. Mas parte do demonstrado para o demonstrando, não havendo desde então até agora aparecido provas de que ali existam megalitos. Antas, antinhas e antão devem ser a mesma coisa com o diferencial no tamanho. Na estrada de Moimenta da Beira para Barrelas está Stº Antão em cima do monte, oiteiro soberbo, insulado na planínie.

Pode ainda acrescentar-se que em Antas, de Famalicão, não se sabe o que seja anta com a significação megalítica, nem monumento megalítico, devendo considerar-se que a localidade está no pináculo duma colina. Note-se ainda que seria para estranhar, dado o desenvolvimento lingüístico paralelo de Portugal e Espanha, que o dicionário castelhano não registasse o termo com o significado que lhe atribuem os nossos arqueólogos. Até o século XVII pode dizer-se que o património vocabular é comum. As divergências são de ordem gramatical, mas não léxica. Essa apenas começou com a influência da francesia.

A palavra portuguesa e naturalmente popular que dispensa dólmen é orca. Assim aparece empregada em todo o Norte. O povo do Alentejo serve-se da palavra anta? Permitimo-nos crer que, não tendo ali curso a palavra orca, tampouco o tem a palavra anta, a menos, a menos de aclimatação artificial, provocada pelas investigações arqueológicas que parece têm revestido ali um incremento que fêz época. O próprio Leite de Vasconcelos, que a olha como intrometida, acaba por reconhecê-la no prólogo das Religiões da Lusitânia, manifestamente de factura posterior à composição do trabalho:... “explorei umas dezassete orcas ou dólmenes da idade da pedra polida. . .”

O onomástico não teria grande importância se esta palavra orca não fôsse tão misteriosa como o objecto que representa, e ser possível que a certidão de baptismo, baptismo primevo,
pre-romano, contribua a derramar alguma claridade sôbre o lusco-fusco do assunto. Dever-se-á procurar a origem da palavra no gaélico? Haverá alguma analogia entre orca e Órcades, as ilhas Órcades, tão afamadas pelas suas construções megalíticas, se bem que Reclus lhes dê uma etimologia, embora dubitativamente, que contraria a aproximação?

E terá algum parentesco, próximo ou remoto, com orca, talha de barro, ou com orcus, inferno?

Só os cegos desconhecem qual seja a feição comum das orcas : uma lapa artificial, mais ou menos subterrânea conforme o desnudamento do montículo de terra que lhe fizerem à volta, composta duma câmara sôbre o trapezoidal, com dois a três metros e meio de diâmetro, e da galeria comunicante, por via de regra entulhada, de seis a oito metros de extensão. Tanto a galeria como a câmara são formadas por grandes lajas erguidas a pino, capeadas por outras, mais altas as da câmara, pois que esta sobrepuja a edificação e a galeria rompe do sopé da mamôa, ao nível do solo, o nível ante, com entrada portanto rasteira, de cova de bicho. A câmara é coberta por uma só lancha de proporções descomunais, sirva de exemplo a orca da Barroza cuja cobertoira mede de área 10 m2,50, e foi calculado o seu pêso em mais de doze toneladas. Também os esteios são de bruta conformação, a grandeza das peças tendo contribuído de modo eficaz para que o homem na sua sordidez e ignorância não tenha destruído de todo a obra ciclópica dos antepassados. Nalgumas orcas, que foram demolidas e aproveitada a pedra, perdura a memória no onomástico campestre; jazem outras meio destroçadas, falhas mormente da galeria ou das lanchas que a cobriam, por serem mais maneirinhas e fàcilmente conciliáveis com as necessidades do patego. Esta circunstância teria induzido Bosch Gimpera, e com êle Mendes Correia, a classificar na fase final do neolítico uma pretensa orca sem corredor, o que nos custa a compreender, dado que a mamôa constitui o aparelho sine qua non do edifício megalítico e o corredor a imprescritível via de acesso à câmara através da mamôa.

Embora avaliando à priori, necessàriamente, não andará fora de acêrto supor que apenas tenha chegado aos nossos dias menos que uma décima parte das orcas que existiam ao fim da idade da pedra. É arbitrário fantasiar um povo especificamente construtor de dólmenes. Estava na determinante da evolução que se edificasse assim, como mais tarde se haviam de erguer castelos, modernamente chalés suíços, e o engenho do homem e a sua pertinácia exerceram-se nêsse sentido. Foi uma longa e decerto morosa fase. Quando essa fase ocludiu com acolher-se o homem às citânias muradas, provido do seu machado de ferro, da sua lança, talvez da sua sachola e isqueiro, desenvolvido o instinto do clan, a mole que erguera prevaleceu vazia e misteriosa ao passo dos séculos. Ainda lá está e nós preguntamos : que era?

A construção das orcas, com os seus volumes tão fora de medida para a fôrça do homem e os meios mecânicos de que dispunha, assombra, e nada mais simples e exequível. Exigiria o concurso de muitos braços, centenares de braços, mas se a obra era de interêsse colectivo, como tudo parece inculcar, uma vez na vida o solitário individualista quebraria os seus hábitos e viria associar-se com os próximos na tarefa planeada. Energia muscular sempre o homem teve na mesma proporção, segundo emite a fisiologia. Lajas maciças encontrava-as desagregadas nos oiteiros ou à superfície das pedreiras. Nas aldeias do Norte ainda recentemente se construíam casas de dois pisos e muros de cêrca com as chamadas pedras de arranque. Estas pedras, em geral de granito, encontram-se em jazigos laminares à flor do solo; separadas por lezins tão impecàvelmente geométricos que dão a impressão de terem sido aparelhadas. Daí o equívoco estabelecido com algumas orcas em que olhos menos experimentados viam trabalho manual de pico. Descosidas de seus leitos por obra da corrosão geológica, ou desligadas ao forte impulso, não havia mais que removê-las para o lugar escolhido. Ainda aqui, o problema não requeria mais que esfôrço e paciência. Esfôrço para deslocar, rolando-a sôbre rôlos de pau, empurrando-as com pancas e a ombro, a bisarma colossal; paciência para percorrer o longo caminho, comparada à da formiga a acarretar dezenas de vezes o seu pêso. Mas o homem daquelas idades tinha todo o
tempo por seu.

Quem quiser pode ainda assistir na povoação sertaneja ao transporte de grandezas similares, lareiras por exemplo, pelos mesmos processos, salvo o emprêgo duma ou doutra alavanca de
ferro, que em ültima análise não é de necessidade absoluta e da qual o entendimento pode abstrair sem sacrificar a viva realidade.

A lancha - chamam-lhe lancha por se tratar de pedra achatada - tanto vem ao arrastão e aos tombulões do oiteiro como corsada na zorra por duas ou três juntas de bois. Uma vez dentro do recinto próprio, há que içá-la a poder de braço ao pilar, que se lhe fêz de alvenaria sôlta à altura do primeiro piso, que não se sabe o que seja guindaste ou sarilho. É o mais árduo da obra. Mas passa-se palavra pela aldeia; pouco a pouco vão acudindo quantos homens àquela hora se encontram disponíveis no lugar. É uma turba-multa; cospem às mãos; em voz cantada o mestre dá a cadência para que ajustem todos o alento ao mesmo ritmo - e a pedra lá vai. Em breve espaço fica arrumado o leixão, à custa, quando muito, da cabeça dum dedo e, sem dúvida alguma, dumas canadas de vinho, bebido à roda pela mesma caneca, como já referia Estrabão.
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