quinta-feira, março 31, 2005

El-Rei D. Duarte, no Prefácio do Humanismo (3/3)

"os moços de boa lynhagem e criados em tal casa que se possa fazer, devem seer enssynados logo de começo a leer e a escrever e a fallar latym, contynuando boos livros per latym, e linguagem de boo encamynhamento per vyda virtuosa"

(Livro da Ensinança, p. 513 da ed. cit.).

III. Uma nova corrente estética e cultural que caracterizou a evolução da Idade Média para o século XVI, despia-se das vestes teológicas e fazia esquecer, a toda a hora, o vetusto império cesáreo.

Mas o latim permanecia, enquanto escrita de textos avoengos a interpretar e comentar. D. Duarte foi um dos que, da Ínclita Geração, em Portugal, se afadigou na busca de manuscritos, os divulgou e tentou convencer os que os liam de que, nessas obras, há tanto tempo sepultadas, se encontravam autênticos padrões de vida do Homem, não apenas no aspecto estético mas igualmente no puramente existencial. Não se afastou, um milímetro, da ortodoxia católica e procurou, em tudo, seguir os Santos Padres e teólogos e o que é produto da análise introspectiva ou da experiência serve-lhe só para corroborar, à maneira de exemplo, a verdade da Fé e da Moral ensinadas pela Igreja. O Leal Conselheiro é bem, por isso, um trabalho de transição.

Preveniu, pois, quão vantajosa era a aprendizagem do latim e o gosto pela aceitação e pela leitura, embora não fizesse uso da língua de Cícero e se apresentasse aos leitores num português coevo, mais fácil de entender: era uma visão prática da vida que ele não desgarrava ainda do contraste que causava a espiritualidade dos cavaleiros da Idade Média para que apelava constantemente. Aliás chamou a atenção para a hipótese concreta de conciliar ambas as matrizes. Quer no Leal Conselheiro, quer no Livro da Ensinança, vemo-nos envolvidos nos costumes e usos do tempo: jogos, vida palaciana, tendência para o luxo... e na Cultura, então, em voga. São documentos de ideias renascentistas a despontar, estes com que deparamos.

Pagou, por certo, para que lhe organizassem a biblioteca repleta de obras de autores gregos e latinos. Muito variada e para todos os gostos, consistia em livros de religião, de Horas - o seu próprio, devocionário elaborado entre 1415 e 1436, importado e com belas iluminuras - conselhos morais - atenda-se ao Livro da Cartuxa - romances de cavalaria, tratados técnico-científicos, livros de direito, de administração... em boa parte, estudos muito recentes, também (41). Era, pois, o signo do latim, em que caíam as pesquisas dos prosadores didáticos, desde D. João I (42).

Valorizava-se o humano e este gosto enraizou-se, nos primórdios do século XV, em Portugal, como proémio de um movimento renovado que caracterizou, logo à nascença, a Sociedade do pós 1385.

A assimilação do espírito antigo foi claro, em aspectos diversos, com a própria desarrumação de ideias aliada à cópia integral de passagens esparsas dos autores clássicos. Parece, acima de tudo, um curto manual enciclopédico, um autêntico livro de ensaios, não tendo, como propósito, esgotar qualquer dos temas que ventila. Reflecte e dirige opiniões e avisos, de modo a tentar formar a vontade das pessoas, sob a égide de uma sólida formação cristã e humana, mais comedida e recatada, evitando excessos. Aqui, por este meio, poderá fazer-se a ligação do Leal Conselheiro, com o Livro da Ensinança, uma vez que também este segue o lema de que para tudo é preciso nascer! e, sem dirimir as tendências de cada indivíduo para esta ou aquela arte, faz depender a maior parte do êxito que cabe a cada um à educação, aprendizagem, leitura e experiência. Sabendo que a ideia conduz ao acto, D. Duarte procura criar ambiente psíquico no candidato a cavaleiro, antepondo a educação da mente à educação física. Fala da crença da mesa - da comida moderada e do vinho terçado das horas e porções de ingestão dos alimentos, do trajo, da casa, higiene e saúde; afecto - do amor, da benquerença e da amizade de novas técnicas, de construção, por exemplo, que não deixa sem reparo (43)...

Se D. Duarte pretendeu tão só fazer exprimir as suas lições sob o princípio da História e da Filosofia, atrás destas, vieram as ideias e a prática que ele, tão inteligentemente, pretendeu dar a conhecer para exemplo, a fim de serem seguidas. Pretendendo ensinar, por um lado, previa uma aceitação, por outro.

No campo legislativo, por razões de govemação, não descurou a intenção de reorganizar as leis dispersas, ordenando-as e criando outras, como os Novos regimentos dos Juízes dos Órfãos, de 2 de Março de 1434; dos Contos, de 22 de Março do mesmo ano; do Monteiro-mor de 2 de Setembro de 1435, aditado a 27 de Abril de 1442, pela Regência (44); o novo Regimento dos Capitães de Ceuta, de 10 de Abril de 1434 (45); Leis sobre a Portagem, de 20 de Janeiro de 1436 e as Restrições a certas exportações de 13 de Abril e 3 de Agosto de 1437 (46); Leis sobre os Judeus de 19 de Agosto e 5 de Dezembro de 1436 (47).

Desde certos trabalhos de agenda que o rei ditava para os seus volumes de Chancelaria, passando por curtos bosquejos que pretendeu desenvolver, até à discussão do raciocínio teológico de Raimundo Lúcio a respeito da guerra contra os infiéis, foi beber a doutrina de variados autores que, aliás, menciona. Além destes, há que ter em conta as citações que faz, donde outros se depreendem, sobre os quais meditou e, aqui e ali, teve alguém que o ajudasse na recolha de máximas que glosou. Escritores e textos foram, entre outros: Séneca, com as suas Epístolae Morales, De Brevitatae Vitae e o Tratado da Providência Divina; S. Gregório Magno e o seu Liber Regulae Pastoralis e seus Diálogos; Aristóteles, com o Memorial das Virtudes das Éticas, Livro da Moral Filosofia, Rectórica, Política e o Secretis Secretorum que se lhe atribui, além do Livro dos Tópicos; Frei Gil de Roma e o Livro do Regimento dos Príncipes; M. Túlio Cícero e os seus De Oficiis, De Republica e De Legibus; João Cassiano, com o Livro dos Estatutos; o Infante D. Pedro e o Tratado da Virtuosa Benfeitoria e D. João I, com o Livro da Montaria; Bernardo e o seu Tratado do Regimento de Casa; M.e André da Paz e o Pomar das Virtudes; Vegécio e o Livro da Cavalaria; Boécio e o Livro da Consolação da Filosofia; Paulo e as Sententiae. Refere ainda Santo Agostinho, M.e Vicente, João de Linhano e o Tratado, S. Tomás de Aquino, Valério Máximo, Platão, Policrato, Santo Isidoro de Sevilha, S. João Clímaco e o Livro de Dieta Salutis... Deste modo, contribuiu, vivamente, para a valoração do elemento humano da existência, com todas as suas potenciais virtudes e capacidades, do culto da força física, do corpo, percepção do ser e do seu todo intelectual que cada um deverá ter, saber usar e pôr à prova, enquanto célula do complexo tecido social. Daí a tendência dos seus escritos no sentido de valorizarem tudo ou parte, pelo menos, de quanto possa elevar a vida do homem visível, concreto, no espaço de tempo, embora curto, que vai desde que nasce até que morre. Dele restará o seu contributo para o bem comum, o investimento, por um lado, nas artes e nas letras, por outro, na guerra, no avanço geográfico do pensamento cristão, abrindo novos espaços a um Portugal, cada vez mais necessitado em impor-se frente às sociedades estrangeiras.

(41) Cfr. obras cits., da autoria de D. Duarte e da ed. acima referida: Leal Conselheiro, pp. 239-442; Livro da Ensinança..., pp. 447-523.
(42) Vide Obras dos Príncipes de Avis, in Tesouros da Literatura e da História, respectivamente, pp. 5-232 e 530-763.
(43) Ver Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte, ed. cit., p. 155.
(44) Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V, in Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de Portugal. Parte I. Da Legislação Antiga, 1.I, Coimbra, 1792, nova ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, tit. LXVII.
(45) Ibid., 1. V, tit. LXXXIV.
(46) Ibid., 1, II, tits. XXX e XXXIV; 1.IV, tit. II e I.V, tit. XLIII.
(47) Ibid., 1. II, tits. LXX e LXXIII.

El-Rei D. Duarte, no Prefácio do Humanismo (2/3)

"Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri".


(Fernando Pessoa, Mensagem)



11. Em traços curtos, temos todos julgado saber mais de D. Duarte pela análise da sua obra fundamental - Leal Conselheiro - do que através das Chancelarias e Actas de Cortes coevas, tendo sido retratado por pinceladas rápidas atinentes ao seu enigmático espírito de homem comedido, dependente de opiniões alheias, introvertido e fraco. Morreu de peste, mas governou vinte e sete anos: vinte e dois associado ao gabinete de seu pai e cinco, após lhe suceder no trono. O que aprendeu, "treinou", "ensinou" e "aconselhou", destinou-se a preparar a nova sociedade para os tempos quinhentistas menos profetizadores do Humanismo e mais enraizados nos seus modelos que importara da Inglaterra e Itália e de outros países com que manteve boas relações diplomáticas. Era parente próximo de variados chefes de governo estrangeiros, como os de Castela, Aragão, Navarra e Escócia, Borgonha, Bretanha, de muitos senhores feudais e, naturalmente, da Inglaterra, como o apresentamos no quadro nº 2. Sendo filho de Filipa de Lencastre, era sobrinho bisneto de Eduardo III e sobrinho de Henrique IV. Seu nome adveio de uma lista de Eduardos, de 1272 a 1377, bisavô, avô e pai de João de Gand, duque de Lencastre, seu avô. A Aragão uniu-se, através do casamento com D. Leonor, em 1428, órfã do monarca Fernando I, descendente de Afonso IV daquele reino (12). Ao longo do governo eduardino, o nosso País manteve relações diplomáticas com mais de uma dúzia de estados, para além da Santa Sé - eram os reinos peninsulares, incluindo Granada, a Bretanha, Borgonha, Inglaterra, Escócia, o Império, as Repúblicas Italianas, Rodes, Sicília e Polónia (13).

Nasceu no Paço de Viseu que, desde Trezentos, era propriedade dos reis de Portugal, a 31 de Outubro de 1391. Com 20 anos, quando seu pai outorgava carta de património a D. Pedro e D. Henrique, ele associava-se ao governo, só assim se compreendendo porque o monarca o colocava à margem de qualquer Casa que pretendia, então, instituir. Se nas Cortes de Évora, de Abril de 1408, o soberano privilegiava a situação do futuro rei ainda jovem, dotando-o com mais três contos do que cada um dos outros dois filhos para alimentação, moradias, sustento e vestuário de seus oficiais, em 1415, D. João I diria que seu filho e sucessor estava autorizado a adquirir, em vida do monarca tantas terras quantas quisesse (14). Ora, apenas no caso vertente, quem detivesse de iure e de facto o poder nas mãos estaria à vontade para agir como tal.

Entre 1431 e 1433, são por eles assinadas, em nome do pai cartas oficiais que faziam andar os negócios públicos e a ele são dirigidos pareceres da nobreza acerca dos benefícios e utilidades vantajosas na luta contra o Islam: em 22 de Abril, um do conde de Arraiolos; em 19 de Maio, outro do conde de Barcelos e, em 4 de Junho, um outro do conde de Ourém. A linha bastarda, nobilitada e poderosa, participava, activamente, no conselho do rei, cujos membros sempre ouvia, mantendo-os num círculo de magnates que vinham do tempo de D. João I e que incluia todos os seus irmãos, a rainha sua mulher e mais alguns altos oficiais do clero.

Nos cinco anos de reinado, orientou-se em três vertentes principais:

1 - A promulgação da Lei Mental, no âmbito da política interna.

2 - O incremento da Expansão Além-Mar, com 100 léguas de Costa descobertas no Ocidente Africano. Atenda-se à importância estratégica da passagem do Cabo Bojador que tem sido interpretada, ao longo dos anos, com incontável valor histórico: a revelação e notícia de que, até à altura, era lendário e indefinível, tomou, outrossim, pública toda uma rota oceânica possível pela África, Costa Sul ad ultram, até ao extremo remoto e infindável, nos termos das bulas que, quinze anos mais tarde, nos dariam o monopólio do domínio dos mares - a Romanus pontifex de Nicolau V e a Inter cetera de Calisto III.

3 - O insucesso das campanhas militares em Tânger, ao contrário do que se tem apontado como o desastre "nacional" naquela cidade africana. Vistas as desproporções abissais entre cristãos e infiéis, o símbolo do malogro fora a perda da vida de uma das figuras carismáticas da que se tem chamado de Inclita Geração o Mestre da Ordem de Avis, D. Fernando - já que Tânger viria, posteriormente a ser tomada, não deixando, porém, entender, com clareza, ao tempo de D. Duarte, como se agitaram os pilares da monarquia, por este facto.

Reuniu cortes anuais: em 1433, em Santarém, onde nomeou D. Pedro e D. Henrique como procuradores de D. Afonso, herdeiro do trono, com um ano de idade. Em 1434, ainda na mesma vila, promulgava a já tão citada lei, como medida centralizadora, com vista à defesa do património da Coroa. Em 1435 e 1436, em Évora, onde tratou do assunto de Tânger, vindo, em 1438, em Leiria, a apreciar com os três estados os resultados da empresa.

O propósito das duas penúltimas assembleias traduz, a nosso ver, a indecisão do soberano quanto à incursão em África. Parece que a acção da rainha D. Leonor e do Infante D. Henrique a venceram, finalmente, acabando D. Duarte por solicitar bula ao papa para a guerra. A Rex regum de Eugénio IV, de 8 de Setembro de 1436, foi trazida pelo abade D. Gomes Ferreira (15), concedendo a Portugal o direito e os privilégios cruzadísticos contra o Islam, não sem que antes o rei se houvesse já decidido.

Mas o grande momento histórico teve por base a urgente e atempada feitura do 1º testamento pelo Infante D. Henrique, em Estremoz, em 7 de Março de 1436 (16).

Modificavam-se os objectivos régidos e demovia-se o monarca, aceitando a decisão outrora tão discutida. D. Henrique perfilhava o sobrinho e afilhado, o Infante D. Femando, solicitando do soberano a confirmação do texto e das terras e outros bens que detinha da Coroa, como se o seu filho adoptivo fosse seu próprio e legítimo. D. Fernando passou, então, a herdeiro universal do Navegador, embora com grande reserva da nossa parte, no que correspondia aos bens cedidos a este a título vitalício. O Eloquente outorgou a doação testamentária em causa que tinha, como contrapartida, deixar ao Infante um herdeiro, que era filho segundo daquele e o irmão do primogénito, para continuidade do nome e Casa henriquinos (17). Se o legado era redigido e aprovado em 1436, no ano seguinte estávamos em Ceuta a preparar a grande invasão de Praça de Tânger.

Entretanto e até que se viessem a interromper as incursões a África em 1437, D. Duarte não deixou de ser o responsável número um por algumas das viagens henriquinas, quanto mais não seja por não se ter nunca oposto às navegações comerciais, de reconhecimento e mesmo de cariz militar. Recorde-se que, em 1433, as Ilhas da Madeira e Porto Santo foram doadas a D. Henrique como uma espécie de "feudo vitalício" (18).

Norteado pelo ideal de cruzada, foram-lhes noticiadas, bem aceites e, por isso, incrementadas as viagens ao Cabo Bojador, a penetração na Mauritânia (1433-1434), tornando-se a Madeira local de abastecimento de marinheiros e víveres e Lagos, porto de armamento, ancoradoiro e de escala obrigatória de rotas comerciais do Mediterrâneo para o Norte da Europa, abastecido por excelente e rico hinterland, com gente de marinheiros e pescadores já um tanto experimentada na arte. Entre 1434 e 1436, não cessam as largadas de naus e fustas de Lagos para África e de Silves, Faro e Tavira, estando bem activa a construção naval, junto às taracenas. Pessoal das Casas Senhoriais, como o que integra a do Infante D. Henrique, freires da Ordem de Cristo e a burguesia empenhada no vaivém comercial empreendem incursões em terra, pela África dentro, em busca do ouro, escravos e especiarias, produtos que nortearam fortemente os seus esforços (19).

Parece que, depois de rei, preferiu a Corte, o seu escritório e a sala de atendimento às estradas do País. Fixou, então, um calendário para despacho das matérias ordinárias, sendo, pouco a pouco, aperfeiçoado. Os assuntos relativos à Justiça e às Finanças ocupavam a maior parte da actividade diária do soberano, longa e parcamente diversificada. Por informes do próprio, o horário do seu trabalho quotidiano era apenas alterado aos domingos e dias santos (20). Assim, pelas oito horas e trinta, tratava da Justiça e, das catorze às vinte, do despacho e atendimento dos agravos. As audiências e apresentação de requerimentos faziam-se pelo meio-dia e, entre as vinte e as vinte e uma horas. Reservava a sexta-feira, pelas oito e trinta, para os feitos da Casa, como todos os dias, entre as vinte e as vinte e uma horas e, aos sábados, pelas oito horas e trinta minutos para audiência pública (21).

O estudo dos seus itinerários (22) permite-nos afirmar que nunca foi além de Leiria a Norte e de Portela a Sul, demorando-se largas temporadas em cidades e vilas como Évora e Santarém que preferia, decididamente, a Lisboa. O Sul era foco de maiores atenções da sua parte. Aqui permaneceu 97% do seu tempo e apenas 3% no Norte, importância que, aliás, já desde D. Pedro I e, posteriormente, D. João II deram às cidades meridionais (23). Com ele viajara D. Henrique, já que os itinerários do Navegador se assemelham muito aos da Corte na época que ele a acompanhava, com frequência, sobretudo durante a vida de D. Duarte e parte do período de Regência que se lhe seguiu (24).

Mas como fora o rei nos seus tempos de menores cuidados governativos, ainda Príncipe, no seu dia-a-dia em que passava com a família e criados na Corte?

Tendo-se perdido o seu retrato, como sucedeu com muitos outros anteriores a D. Afonso V, Rui de Pina lança tópicos que o ajudam a caracterizar, simultaneamente, como forte e de boa estatura de corpo e elegância no aspecto e no trato (25). Alguns dos traços coincidem, de facto, com a sua estátua jacente, excepto a barba e o bigode que alguns dizem ter ele usado mas que repara antes de morrer ou, talvez, quando o prepararam para o saimento.

Desembaraçado como se depreende que fosse um homem com tais qualidades físicas e, durante tantos anos, auxiliador de seu pai a fazer seguir o reino seu rumo, as festas em 1414, nas vésperas da tomada de Ceuta e as de seu casamento em 1428... as suas ideias sobre desporto e arte de montar a cavalo... caça e folguedos... as justas e a luta corpo a corpo... enquadram-no numa moldura assaz diversa da que nos tem sido comumente apresentada quer pelos autores de ontem como pela maioria de hoje.

Recorde-se - e citamos o próprio Zurara - como D. Duarte se juntara a seus irmãos, em Viseu, quando D. Henrique ordenou que aí se preparassem "huuas nobres festas", fazendo-se o herdeiro do trono acompanhar de seu séquito e expandindo, à maneira de então, a alegria pela anuência régia, naquele ano, à investida no Norte de África. Não faltaram copiosos viveres de todos os géneros, frutos verdes e secos e capitosos vinhos: piparotes de malvasia, brancos e tintos, quer da terra quer de onde os havia de melhor qualidade. Para esta ocasião, o Infante requisitou de Lisboa e Porto panos de seda e lã, bordadores e alfaiates, a fim de confeccionarem librés e mornos; noutros lugares, adquiriu muitas cargas de cera que gastou em largas porções de tochas, brandões, velas e coutos. Neste cenário festivo, se integrou D. Duarte, com 23 anos, cujas preocupações eram também as dos irmãos, quanto à prática de jogos cavaleirescos e torneios, como meio de preparação para confrontos mais arrojados; comer, beber, vestir-se bem e folgar - padrões perfeitamente concordantes com a época Quatrocentista e os abastados recursos dos Príncipes. À colação vem o comentário do Cronista, recordando-nos que Viseu e as aldeias dos seus termos se encontraram a abarrotar de gente, de modo que concluíram alguns forasteiros que por ali passavam "que aquelle ajumtamento nom era senam de corte de rrey" (26). Foi, por este ano, que os Infantes D. Duarte e D. Henrique caçaram um urso corpulento, junto a Portel, enviando-o, posteriormente, a seu pai (27). Esta atitude enquadra-se, perfeitamente, no espírito do célebre capítulo do Leal Conselheiro, "Da pratyca que tiinhamos com EI Rey, meu Senhor e Padre, cuja alma deos aja", dissertando aqui o soberano sobre o amor entre pais e filhos e acerca das relações de ambos (28). Eis o desenvolvimento da experiência que se vivia no seio da Família de Avis. É que este aparente ambiente de concórdia e amizade ampliava-se às relações entre irmãos, tios e sobrinhos..., embora nos recordemos de tristes episódios que, de qualquer modo, ocorreram já após a morte do monarca, excepto o abandono a que foi votado D. Fernando em África. Este e outros posteriores que sempre mancharam a História de qualquer País são resultado de "razões de Estado". O que se pretendia combater e pôr de todo de parte eram a inveja, cobiça, avareza e sobrançaria, fazendo realçar, outrossim, a amizade que o rei considerava o estado afectivo verdadeiramente superior e modelar, acima da benquerença e mesmo do amor, "ca scripto he amizade perfeita nom pode seer senom antre pessoas virtuosas [...] por que hua das mais prycipaaes lex de taaes amyzades he nunca requerer cousas injustas ou torpes, nem as fazer, posto que requeridas sejam" (29).

D. Duarte queixava-se das modificações que os costumes haviam sofrido, enraizando-se na mentalidade dos homens e nos hábitos novos e menos convenientes. A mocidade do seu tempo preferia conversar com damas, jogar a péla, cantar e dançar e punha de parte a montaria e a equitação. A moda preocupava-o, tanto assim que o rei nos testemunha a frequência das danças como divertimentos (30).

Com efeito, ao tempo de seu pai e durante o seu governo, a Corte preparou um ambiente mais requintado que, precocemente, irá caracterizar outras épocas, em que a influência combinada das "discórdias" feudais e da Cultura que se impunha originava condições favoráveis ao arranque de novas artes como veremos adiante. Mas, previna-se, desde já, que o gosto pela leitura, por ouvir ler, escrever, glosar e comentar os Antigos se foi incrementando, saindo dos mosteiros e conventos que o monopolizavam e acercando-se da aristocracia laica (31).

No entanto, requinte pressupunha moderação. A leitura não devia absorver o homem, de tal forma que abandonasse o exercício do manejo das armas, uma vez que se iam perdendo os usos de cavalgar, substituindo-os pela conversação, jogos pueris, o gosto pelo livro (32). Por outro lado, não foi o que pôde constatar-se aquando do casamento de D. Duarte com D. Leonor.

É descrito com pompa e circunstância (33). Cerimónia de gala, bem ao gosto de D. Duarte e das melhores cortes europeias, tomou lugar em Coimbra e foi-nos narrado, através de uma carta que o Infante D. Henrique escreveu a D. João I. Realizara-se numa quarta-feira, em sessão ricamente decorada com tapeçarias valiosas, paramentos de panos de rás, quer na Igreja, como fora dela. O estrado era todo forrado de tapetes, desde o altar, com tecidos de cetim e veludos. Descreve o frontal, o sobrecéu, o cabeçal em que haviam de colocar os joelhos... os brocados carmesins, o ouro e a prata tecidos e o altar luxuosamente ataviado. Cita a presença do bispo de Coimbra, do chantre de Évora, de todo um cortejo de diáconos e subdiáconos, "feito tudo em pontifical como se fosse cantado". Fala das danças, dos cânticos, do coro, das refeições do Infante que bebeu vinho e comeu frutos, servidos pelos irmãos (34). Na cidade, houve tourada com touros de morte, mandados correr por D. Guiomar em honra da Infanta (35).

Desporto e caça surgem como objectivos do treino para a guerra. A acção dos nobres, em tempo de paz, devia direccionar-se para o exercício das armas e manutenção da robustez física (36). Ninguém podia também dispensar-se de andar a cavalo, independentemente da força ou da idade - a actividade física era meio salutar e adaptável a velhos e fracos, sendo erro crasso entender-se que "por fraqueza, ou velhice, ou gordura que nom poderóm seer boos cavalgadores [...] se tal teençon tevessem todos, que poucos seriam que per myngua das desposiçom do corpo razoadamente boos cavalgadores leixassem de seer" (37).

O primeiro Manual de Equitação de que há memória é seu - o Livro da Ensinança que trata da equitação desportiva e bélica em simultâneo. Dividindo-se em cinco partes, todas elas são regras de bem cavalgar. Entre "outras mais cousas [que] compria de ssaber o perfeito cavalgador, que som scriptas em livro de alveitaria", o rei chama a atenção para dezasseis e, delas, as principais são as que se seguem: exigência de fortaleza de corpo e alma; ausência de "receo de cayr [da besta]"; segurança total "na voontade e contenença do corpo e do rostro em todo o que ouver de fazer"; sossego e calma "na selia [...] segundo requere o geito da besta e o que faz"; e que se "seja solto em todas as cousas que fezer", acrescentando as manhas "que fazem a cavalio" (38). Importava ensinar a montar e preparar o homem para jogos, distracções e luta a cavalo: o guerreiro daqui resultante, olhado e interpretado com todo o seu valor unitário, humano, peça social decerto -, homem do mundo com o mundo voltado para ele, deve arremeter contra o seu adversário, seguindo regras fixas e evitando da parte deste os golpes que ele lhe pretenda desferir. O rei, em toda esta linha de enquadramento, lembra, minuto a minuto, quanto é imperioso ser-se ágil para o combate corpo a corpo, a pé ou em montada contra os muçulmanos, inimigo a desbaratar no Norte de África, palco para uma renovada humanização cristã, à custa de empresas expansionistas colectivas. A par, o soberano mostra-se um desportista, já que é à ginástica do corpo e dos sentidos, à sua prática ininterrupta que tudo ficará a dever-se. Ele exige que se cavalgue com elegância e agilidade, donde a parte estética desta arte é igualmente recordada e lhe absorve os maiores cuidados.

Na caça e nos folguedos, de um modo geral, exalta a humildade, a atenção e a submissão do prazer pessoal - bem natural da idade dos jovens - face ao deleite e bem-estar do pai que os infantes pretendiam provocar-lhe. Dá, como já afirmámos acima, enorme importância ao Sul do País e aqui investe no coutamento de grandes áreas reservadas à caça, como Montemor-o-Novo, por exemplo. Em 1435, o monarca autoriza os vizinhos eborenses e do termo da cidade a caçarem perdizes, outras aves e lebres na área e a servirem-se das armadilhas useiras, salvo do candeio que era menos desportivo (39).

Nos jogos, enfim, o rei adverte que nunca deveria alguém levantar-se contra outrém. No entanto, defendia a luta corporal no exercício físico, pois lamentava, frequentemente, o seu abandono pela nobreza de então. Não louvava jogos leves, como o da péla, incluído no rol dos que entretinham a juventude, "por que tanto custumarom a falia das molheres e poserom todas suas tençoões com gram desejo em que se trabalharem de bem trazer, calçar, jugar a peella, cantarem e dançarem [...] Mais em mynha casa vy [...] Mais a pratica das virtudes nom deve tolher a husança das boas manhas do corpo que sempre per os senhores e grandes forom prezadas e louvadas [...] E sse de mocidade nom forem bem husadas e enssynadas, de ventura na mayor ydade se poderóm razoadamente percalçar" (40).

(12) Cfr. n/ Quadro nº 2 - Linhagem do Infante D. Duarte.
(13) Vide A. H. de Oliveira Marques. Obrs. cits..
(14) Vide n/ Estudo cit., cap. III - A redução da Casa do Rei e a Criação das Casas dos Infantes, pp. 85-87 e notas 1 a 8 a pp. 103-104 e bibliografia aí indicada.
(15) Veja-se Joaquim Veríssimo Serrão, "D. Duarte", in Dicionário de História de Portugal, Vol. II, pp. 341-349 e Monumenta Henricina, Vol. V, Coimbra, 1964, pp. 270-275.
(16) A.N.T.T., Chanc. de D. Afonso V, 1.1, fl. 118v; 1.12, fl. 12; Místicos, 1.2, fls. 156 e 183. Publ. in Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, publ. e prefac. por João Martins da Silva Marques, supl. ao Vol. I, Lisboa, ed. do Instituto para a Alta Cultura, 1944-1945, p. 125; António Joaquim Dias Dinis, obr. cit., pp. 112-114; Monumenta Henricina, Vol. V, pp. 206-207.
(17) AN.T.T., Chanc. de D. Afonso V, 1.1., fl. 118v; 1.12, fl. 12; Místicos, 1.2, fls. 156 e 183. Vide n/ Estudo cit., cap. VIII - Dos Testamentos, Herdeiros e Espólio Henriquinos, pp. 256-257 e notas correspondentes, no final do mesmo.
(18) Vide n/ Estudo supr. cit., Cap. VI - Madeira e Açores, pp. 163-168.
(19) Vide Jaime Cortesão, Os Descobrimentos Portugueses, Vol. I, Lisboa, Arcádia, 1958; Vitorino Nemésio, Vida e Obra do Infante D. Henrique, Lisboa, Comissão Executiva do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, Colecção Henriquina, 1959; Peter E. Russel, Prince Henry the Navigator, Londres, 1960; Duarte Leite, História dos Descobrimentos. Colectânea de Esparsos, 2 Vols., Lisboa, Cosmos, 1958-1961; Luís de Albuquerque, Introdução à História dos Descobrimentos, Coimbra, 1962; Yves Renouard, L'Infant Henri le Navigateur dans l'Histoire de l'Occident, sep. da Revue d'Histoire Economique et Sociale, Vol. XL, I 1962 I, nº 1, Paris, 1962; Vitorino Magalhães Godinho, A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, Lisboa, Sá da Costa, 1962; João Silva de Sousa, A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Cap. VII - Direitos, Monopólios, "Indústrias" e outros Proventos, pp. 188-255. Vide notas no final do cap..
(20) D. Duarte, Leal Conselheiro o qual fez Don Eduarte... in Obras dos Príncipes de Avis, introd. e revisão de M. Lopes de Almeida, Porto, Tesouros da Literatura e da História, Lello e Irmãos - Editores, 1981, cap.XIX e Livro dos Conselhos de EI-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa), ed. diplomática de João José Alves Dias, Lisboa, Editorial Estampa, Imprensa Universitária, nº27, pp. 11-13: "Ordenança dos tempos em que auja de despachar, e como", atribuível a 1433, ano em que D. Duarte ascendeu ao trono.
(21) Id., ibid..
(22) Vide Humberto Baquero Moreno, Itinerários de EI-Rei D. Duarte (1433-1438), Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1976.
(23) Id., ibid..
(24) Vide Humberto Baquero Moreno, Os Itinerários do Infante D. Pedro (1438-1448), sep. da Revista das Ciências do Homem da Universidade de Lourenço Marques, Vol. I, Série B (1968), Lourenço Marques 1968 e João Silva de Sousa, A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Cap.II - Infante D. Henrique. Algumas notas biográficas e seus Itinerários, pp. 17-61 e referências bibliográficas em notas, pp. 62-75.
(25) Rui de Pina, Chronica do Senhor Rey D. Duarte, de M. Lopes de AImeida, in Crónicas, Porto, Tesouros da Literatura e da História, Lello e Irmãos - Editores, 1977, cap.III.
(26) Vide Gomes Eanes de Zurara, Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D. João I, ed. de Francisco M. de Esteves Pereira, Lisboa, 1915, cap.XXII e João Silva de Sousa, Obr.cit., pp. 465-467.
(27) Vide António de Sousa e Silva da Costa Lobo, História da Sociedade em Portugal no Século XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1904, pp. 79-81 e A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa. Aspectos da vida quotidiana, 4." ed., Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 187.
(28) Cfr. A. H. de Oliveira Marques, ibid., p. 106 e D. Duarte, Leal Conselheiro, ed. cit., cap.XCVIII, p. 426.
(29) Id., ibid., XCVIII, p. 434 da ed. cit..
(30) Cfr. A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa..., pp. 194 e 198. Veja-se o Livro de Monteria composto pelo Senor Rey Don Joaom de Portugal, in Obras dos Príncipes de Avis, Porto, Tesouros da Literatura e da História, Lello e Irmão Editores, 1981, cap. I (também com introd. e revisão de M. Lopes de Almeida) e Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela que fez EI-Rey Dom Eduarte, in Col. cit., introd. e revisão de M. Lopes de Almeida, Porto, Tesouros da Literatura e História, Lello e Irmãos-Editores, 1981, capo XV.
(31) Livro da Ensinança..., ed. cit. cap. XV.
(32) Ibid., cap. XV.
(33) Vide António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, 2ª ed., tomo VI, II parte, Coimbra, 1954, pp. 7-10. Veja-se também A.H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa..., p. 41.
(34) Vide António Caetano de Sousa, obr. cit., pp. 9-10 e A. H. de Oliveira Marques, ibid., pp. 120-121.
(35) A.H. de Oliveira Marques, ibid., p. 202.
(36) Livro da Ensinança..., ed. cit., p. 450. Veja-se Sílvio Lima, O Desporto e a Experiência na Idade Média, sep. de Desporto, jôgo e arte, Porto, 1938, p. 153 e A. H. de Oliveira Marques, Ensaios de História Medieval Portuguesa, 2ª ed., Lisboa, Vega, 1980, pp. 10,59-62 e A Sociedade Medieval Portuguesa..., p. 185.
(37) Cfr. Livro da Ensinança..., ed. cit., pp. 452-453 e A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa..., ed. cit., p. 180.
(38) Livro da Ensinança..., ed. cit., pp. 454-455.
(39) Cfr. Gabriel Pereira, Documentos da História da Cidade de Évora, 2ª parte, Évora, 1888, p. 49 e A. H. de Oliveira Marques, ibid., pp. 190-191.
(40) Cfr. Livro da Ensinança..., ed. cit., pp. 512-514.

El-Rei D. Duarte, no Prefácio do Humanismo (1/3)

Por João Silva de Sousa, Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Estudo integrado nas Comemorações dos 600 anos do Nascimento de D. Duarte, em Viseu

(in A época e a personalidade de El-Rei D. Duarte "O Eloquente"
edição organizada pelo Clube de Coleccionismo Escutista da Região de Viseu - CERV, Agrupamento nº 956 - Repeses, 1994)


"Quem viu sempre um estado deleitoso?
Ou quem viu em Fortuna haver firmeza?
Pois inda neste Reino e neste Rei
Não usou ela desta lei?"


(Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, estrofe LI).

I. Resultado para alguns um tanto inesperado, para outros ideia fixa de Doutores em Leis, as Cortes de Coimbra de 1385 aclamavam, como soberano, um bastardo de D. Pedro I: D. João, Mestre da Ordem de Avis, Regedor e Defensor do Reino de há dois anos atrás - "legitimavam", assim, a continuidade da Dinastia Primeira, a que se convencionou apelidar de Segunda, por virtude de um atribulado compasso de espera (1).

O sangue real mantinha-se: era um filho de rei e irmão de outro, ambos falecidos, que salvava a independência do País, a este reconhecida desde 1179. A guerra interrompia, de amiúde, o sossego que se impunha, após o governo fernandino e a insegurança instaurava-se, por mais algum tempo, devassando, destruindo e saqueando campos e cidades.

O "metal sonante" com que D. João I recompensaria os seus cabos de guerra - defensores do território - e os burocratas - legalizadores do novo sistema - transformava-se em terras, cargos, títulos de média e forte importância. Situações houve, com efeito, que se repetiram ao longo da História. Os bens da Coroa, distribuídos desta feita, enfraqueciam, de novo, o Poder Real e, arrependido do entusiasmo e das desmedidas demonstrações de gratidão, o monarca recuperava boa parte daqueles, muitos em óptima situação geográfica (2).

Conduzindo a sua política, gizada ao longo de dez anos, o rei pôs em prática a ideia exposta nas Cortes de Évora, de Abril de 1408 (3), - organizar o património de seus filhos mais velhos, recuperando algumas dessas terras, outorgadas a título hereditário, sem atender ao clausurado na Lei Mental (4), promulgada por fora só por D. Duarte (5). Transmitia-se, assim, às gerações futuras o equilíbrio senhorial que se impunha nestes tempos, alvores do Humanismo.

Acordando prinápios, a priori irreversíveis, sem rodeios e intempestivamente, com a nova nobreza, desta veio a obter feudos bem localizados, trocando-os por outros, em maior número mas situados junto à fronteira que tinha de manter-se bem defendida (6). Deste modo, recuperava largas manchas de território contínuo, em zonas privilegiadas, reorganizando o País e o Poder sob a égide da centralização. Sentindo naturais dificuldades e contando apenas com o recém-criado aparelho que o apoiava, achou-se na necessidade de prosseguir os fins advenientes de um longo período de instabilidade govemativa e de crise económica, criando Casas a seus filhos, dotando-os de diplomas que, linha a linha, os preveniam dos direitos do rei que tinham, irremediavelmente, de reconhecer. No entanto, eram os filhos do monarca que, em 1411, recebiam Casa própria, assentamento pessoal, feudos preciosos e bem delimitados. Tomava-se, então, a família real e maior possidente no País, dependendo, sempre, por acordo escrito e formal, da vontade arbitrária do soberano.
A supracitada conjuntura de equilíbrio senhorial de então traduziu-se, pois, na dotação generosa dos familiares legítimos do rei e igualmente de D. Afonso.

Com efeito, a fim de contrabalançar a sua autoridade e, mais tarde, a de seu sucessor, D. Duarte, entre 1415 e 1434, passámos a ter no reino sete grandes casas senhoriais em relativo comedimento de forças, sem contar com o primogénito, o que, facilmente, pode compreender-se, atendendo ao facto de tê-lo associado ao trono e ao gabinete, em 17 de Abril de 1411, quando organizou os feudos de D. Pedro e D. Henrique, ao redor, respectivamente, de Coimbra e de Viseu (7). Eram elas: para o primeiro, o ducado de Coimbra e o senhorio de Montemor [-o-Velho]; para o segundo, o ducado de Viseu, o senhorio da Covilhã e a Administração da Ordem de Cristo; para D. Afonso, o condado de Barcelos, mais tarde também o ducado de Bragança; para D. João, a Administração da Ordem de Santiago; para D. Fernando, a Administração da Ordem de Avis. Ainda para D. Afonso, filho de D. Afonso, conde de Barcelos, o condado de Ourém e depois o marquesato de Valença e para D. Fernando - igualmente filho do bastardo de D. João I - o condado de Arraiolos e o ducado de Bragança, após o falecimento de seu pai e irmão. Mas tudo veio a processar-se numa via de continuidade que ultrapassou, temporalmente, os marcos acima balizados.

Vejamos, pois, o quadro seguinte (8):



A importância de quanto achámos oportuno referir caracteriza uma nova situação, de 1385 em diante, em que são os membros da Família Real que lideram a política do País nos momentos mais difíceis que se atravessam, ficando mesmo acima do estatuto do rico-homem, fixado pela nossa Sociedade dos primórdios da monarquia ao século XV. Neste espaço temporal, refira-se, a propósito, que o seu número nunca assumiu grande amplitude, excepto no período da Dinastia de Avis.

A prudência joanina, nítida na actuação do ex-Mestre de Avis ao longo de 48 anos, encontrou um continuador à altura, já que, "aprendiz" do ofício de seu pai, o futuro Eloquente, que governaria por cinco anos a sós, secretariou o rei por vinte e dois, até subir ao trono (9). Consequência: o equilíbrio patrimonial que este conseguiu, pondo em prática, em 1434, ordenações dispersas no espírito e na política do Rei da Boa Memória, promulgando-as sob a epígrafe de Lei Mental. Restringiam-se, assim, as concessões régias aos descendentes legítimos, desde 1348 e, depois, aos filhos varões, em 1389. Lei de efeitos retroactivos, dispunha, a breve trecho, que todas as doações da Coroa apenas poderiam transmitir-se dentro da linha legítima e não seriam, por consequência, tidas como feudais. Pelo facto deste texto legal se aplicar ao passado, como ao futuro, muitas terras reverteram, paulatinamente, para o Fisco, tendo ela vigorado por quase quatro séculos (10). As dúvidas a que, a princípio, aquela deu origem, foram esclarecidas por D. Duarte, completando-a, a 30 de Junho de 1434, no que respeita a herdeiros clérigos, perfilhados, adoptados ou legitimados, transmissões a ascendentes e a colaterais, vendas, doações, escambos e hipotecas que pudessem fazer os donatários (11).

(1) Veja-se Joaquim Veríssimo Serrão, Portugueses no Estudo de Salamanca, Vol. I, 1250-1550, Lisboa, 1962 e Les Portugais à l'Université de MontpeIlier (XII-XVII siècles), Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1971; Marcel Bataillon, Erasme et l'Espagne. Recherches sur l'Histoire spirituelle du XVI siècle, Paris (1937), com trad. para espanhol, em 2 Vol.s, México - Buenos Aires, 1950 e Études sur le Portugal au temps de l'Humanisme, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1952.
(2) Cfr. João Silva de Sousa, A Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, Livros Horizonte, Horizonte Histórico, nº 35,1991, p. 11 e notas 1 e 2 e p. 16.
(3) A.N.T.T., Cortes do Reino, t. 1, fls. 549 e ss.; B.N.L., Fundo Geral, 2638, fls. 195-197 v. id., ibid., nota 3, p. 16 e bibliografia aí aduzida.
(4) Vide nota 9 do nosso cap. VIIl- Dos testamentos, herdeiros e espólio henriquinos, na nossa obr. acima cit..
(5) Cfr. Fortunato de Almeida, História de Portugal, Vol. II, Coimbra, 1923, p. 49 e A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal. I. Das Origens ao Renascimento, 9ª ed., Vol. I, Lisboa, Palas Editores, 1982, p. 152 e Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, in Nova História de Portugal, dirig. por Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Vol. IV, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 88. Vide do mesmo autor "Mental- Lei", in Dicionário de História de Portugal, dirig. por Joel Serrão, Vol. III, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1975, pp. 29-30.
(6) A.N.T.T., Direitos Reais, 1, 2, fl. 247v.; Gaveta 12, maço 11 nº 3 e Místicos, 1.4, fl. 30. Cfr. António Joaquim Dias Dinis, Estudos Henriquinos, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1960, p. 19.
(7) A.N.T.T., Gaveta 11, maço 2, nº 3; Chancelaria de D. Afonso V, 1.19, fl. 7Ov; Místicos, 1.2, fl. 31. Vide João Silva de Sousa, obr. supr. cit., cap. III, e bibliografia referida nas nossas notas 10 a 12.
(8) Cfr. A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, Vol. I, pp. 228-233 e bibliografia aduzida pelo mesmo autor. Vide também Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, pp. 88 e ss.
(9) Fontes manuscritas para o estudo de D. Duarte, vejam-se A.N.T.T., Chanc. de D. Duarte, 1.1, docs. de 1433 a 1438 (cópia do séc. XV, terminada em 1472); 1.2, doc.s de 1434-1448 (original que pertenceu à Casa dos Contos); 1.3, com doc.s de 1433-1438, originais. Do mesmo Arquivo, o Suplemento de Cortes, maço 2, com originais e cópias das Cortes de 1435 e 1436, entre outras e maço 4, idem com Cortes de 1436, entre outras; ainda a Colecção Especial, cx. a 33 - D. João I e D. Duarte. Acerca do assunto, cfr. Rui de Azevedo, A Colecção Especial do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, sep. da Revista Portuguesa de História, tomo III, Coimbra, 1947 e A. H. de Oliveira Marques, Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa, 3ª ed., Lisboa. Ed. Estampa, Imprensa Universitária, nº 15, 1988. O Centro de Estudos Históricos da F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa, subvencionado pelo I.N.I.C. e sob a orientação do ilustre Mestre, prepara a publicação diplomática dos Livros da Chancelaria de D. Duarte, em três tomos e que deverá estar concluída em 1992.
(10) Vide A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, Vol. I p. 156. Do mesmo autor, ainda Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, in Col. cit., p. 88 e "Mental-Lei", in D.H.P., Vol. III, pp. 29-30. Veja-se ainda Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel, in Collecção de Legislação Antiga e Moderna do reino de Portugal. Parte I. Da Legislação Antiga, 1. II, Coimbra, 1797, tit. XVII e Ordenações e Leis do Reino de Portugal Recopiladas Por Mandado D'EI Rei D. Filippe. O Primeiro, in Col. cit., Parte II. Da legislação Moderna, tomo II, duodécima edição, segundo a nona, Coimbra, 1824, tit. XXXV. Vigorou no País até 13 de Agosto de 1832.
(11) Cfr. bibliografia supra.

segunda-feira, março 28, 2005

Sobre a estada de D. Afonso Henriques nas Termas de S. Pedro do Sul

UM ATROPELO À HISTÓRIA

por A. NAZARÉ OLIVEIRA

in "BEIRA ALTA", volume LVIII, fascículos 3 e 4, ano 1999, 3º e 4º trimestres

Não há muito, em artigo publicado nesta Revista, a que demos o título "Reflexões sobre Historiografia Local", escrevíamos: "...nem todos os que escrevem sobre História Local fazem historiografia. Muito do que se escreve não é História. São histórias! (...) Não poucas vezes, à carência de rigor e fundamentação documental juntam-se objectivos apologéticos de exaltação das localidades e das suas gentes (...) Escreve-se o que mais interessa para reforço do que se pretende, ainda que, para isso, seja preciso forçar a interpretação dos factos, distorcê-Ios, fantasiar mesmo (I)" E citávamos, em reforço do que escrevíamos, o Prof. Doutor Carvalho Homem, da Universidade de Coimbra: "E como a historigrafia atingiu um estatuto de vulgarização que nos casos menos edificantes pemite a qualquer coleccionador de factos apresentar-se como historiador, daqui decorre frequentemente a superficialidade das conclusões ou até, nos casos mais graves, a falsificação grosseira das inferências ou ilacções" (2).

Documentávamos as nossas afirmações com alguns exemplos. No que então escrevemos, caberia mais o que se segue, se, ao tempo, dele tivéssemos tido conhecimento.

No número 7 do "Guia do Turismo de Habitação", página 44, que integrou o "Expresso" de 3 de Julho de 1999, ao tratar-se da Quinta da Comenda de Ansemil, cometem-se dois erros graves, que importa corrigir, em nome do rigor histórico.

Está escrito: "Aqui (Casa da Comenda) se alojou o Rei D. Afonso Henriques quando se deslocou às Termas de S. Pedro do Sul para se tratar de uma fractura que sofreu numa perna durante a batalha de S. Mamede".

Primeiro erro: D. Afonso Henriques não fracturou a perna na batalha de S. Mamede, que foi em 1128. Nessa batalha, era um jovem de 19 anos e ainda não era rei. O desastre foi em Badajoz, em 1169, quando o rei era já sexagenário.

Segundo erro: Não tem o mínimo fundamento a afirmação de que D. Afonso Henriques se alojou na Casa da Comenda. Não sabemos quem teve a peregrina ideia de tal afirmar, pela primeira vez.

Vejamos a verdade histórica:

D. AFONSO HENRIQUES NAS CALDAS DE LAFÕES (3)

A partir do século XII, com a fundação da nacionalidade, as Caldas de Lafões afirmam-se como as mais importantes do Portugal nascente. As virtudes terapêuticas das suas águas são procuradas por nobres e plebeus.

É sabido que D. Afonso Henriques, quando retirava da praça de Badajoz atacado pelo genro, fracturou a perna direita, ao bater com ela no ferrolho de uma porta. Ficou a sofrer da perna. Entre os físicos da época, teria aparecido um, crê-se que residente ou mesmo natural de Lafões, que teria aconselhado as águas. Dizem outros que o conselho teria vindo de D. Fernando Peres, membro da Cúria Régia e senhor de Lafões. Hipótese de rejeitar, porque este nobre, à data, já era morto. Como quer que tenha sido, o primeiro rei, meses depois do desastre e ainda no mesmo ano (1169), veio às Caldas e, no dizer de Pires da Sylva, "com os banhos do outono & primavera seguinte (?) ficou tão são, que ficou capaz de vencer muitas mais batalhas" (4).

Quanto aos banhos do Outono, não há a mínima dúvida. Atestamno as datas dos documentos ali lavrados. E não são poucos. Relativamente aos banhos da Primavera seguinte, não há qualquer documento nem conhecemos outra fonte que os refira, pelo que pomos muita reserva à afirmação de Pires da Sylva, que, para mais, erra num ano a data do cerco de Badajoz e faz mal a redução da Era de César à Era Cristã, a menos que se trate de erro tipográfico.

Em Setembro de 1169, o Rei já estava em Lafões. Ali foram lavrados documentos que claramente o referem e mostram que ali se reuniu várias vezes a Cúria Régia:

- Escritura de doação de terras, em Fafe e Guimarães, a uma D. Sancha Pais, que termina:

"Facta carta apud Alafoen mense Septembrio Era M.ª CC.ª VII.ª. (5).

- Carta de doação à Ordem do Templo da terça parte dos bens que viessem a ser conquistados para além do Tejo, onde se lê:

"Facta scriptura mense Septembrio apud Alafoen Era M.ª CC.ª VII.ª" (6).

No mês seguinte, o Rei continuava nos banhos. Refere Viterbo que, no mês de Outubro, estando em Lafões, confirmou à Ordem do Templo a doação dos castelos de Cardiga e Tomar (7).

E, em Novembro, a corte permanecia em Lafões. Novas reuniões da Cúria e novos documentos ali foram lavrados:

- Uma doação feita à Sé de Zamora.
- Carta de couto, passada à Sé de Coimbra, de metade da vila de Midões, no concelho de Tábua, que termina:

"Facta est huius cauti firmitudo et confirmata apud Alafoe Idus Nouembris Era M.ª CC.ªVII.ª" (8).

- Carta de confirmação da doação e de Couto de Oliveira de Frades a Santa Cruz de Coimbra, que diz:

"Facta est huius cauti firmitudo mense Nouembrio Era M.ª CC.ª VII.ª quando rex ueuit de Badalioz et iacebat infirmus in balneis de Alafoen" (9), o que significa, em termos de data, "no mês de Novembro na era de 1207 quando o rei veio de Badajoz e estava enfermo nos banhos de Lafões.

Todos os documentos têm a data de 1207. Vem a propósito corrigir um erro cometido por Oliveira Mascarenhas, quando, ao citar este documento, escreve: "Ha aqui um erro importantissimo, um visivel anachronismo a atender. Vê-se da escritura que D. Affonso Henriques estivera nas "Caldas de Lafões" em 1207, quando é certo, incontroverso, que este monarcha fallecera no anno de 1185". (lO)

Não há qualquer erro. Quem errou foi Mascarenhas, que esqueceu, se é que não ignorava, que a data de 1207 se refere à Era de César, o que corresponde, precisamente, a 1169 da Era Cristã. E vai mais longe. Atribui as culpas àqueles que usam de "pouco cuidado e escrupulo na trasladação dos documentos".

Com o Rei, vieram às Caldas os seus filhos. Di-lo a carta de couto de Oliveira (Ulveira) de Frades: "Eu Afonso rei de Portugal, juntamente com meus filhos, isto é, rei D. Sancho e rainha D. Teresa na presença de testemunhas idóneas roboramos este documento com as próprias mãos e fazemos estes sinais". Seguem-se três cruzes e as assinaturas das testemunhas e confirmantes, entre os quais, as mais destacadas personalidades locais: Sancho Nunes, governador de Lafões, Cerveira, que foi alcaide de Coimbra e fundador da Albergaria de Reigoso, Suarez Fernandes, juiz de Lafões, Mendo Pedro, arcediago e presbítero de S. Pedro do Sul, Suarez, presbítero de Várzea.

Outros documentos referem a presença de D. Sancho, D. Urraca e D. Teresa. É evidente que os três filhos não estiveram sempre presentes. D. Sancho, porque tinha já responsabilidades governativas. D. Urraca, porque estava casada com o rei Fernando 11 de Leão. É de admitir que D. Teresa, que padecia de "arrotos chocos", tenha acompanhado o pai durante todo o tempo.

Nas Caldas de Lafões, reuniu várias vezes a Cúria Régia, com altos dignitários da corte e bispos. No primeiro diploma que citámos, intervêm, para além dos filhos D. Sancho e D. Teresa, o arcebispo de Braga, D. João Peculiar - ligado a Lafões pela fundadação do Mosteiro de S. Cristóvão -, o bispo do Porto, D. Pedro, o bispo de Coimbra, D. Miguel, o bispo de Viseu, D. Gonçalo, o bispo de Lamego, D. Mendo, o alferes-mor Fernando Afonso, o vedor da casa do rei, Conde Vasco, o vedor Pedro Fernandes e o alferes-mor Nuno Fernandes, da casa de D. Sancho, o "tenente" da Estremadura, Soeiro Mendes.

Referindo-se a este documento, escreve o Prof. António Cruz: "E porque nada menos de cinco prelados figuram também como intervenientes, poder-se-á concluir que a cúria reunia já com assinalada regularidade, da maneira mais simples ou com toda a solenidade, em Lafões, quando foi lavrado este primeiro diploma" (11).

E, na carta de couto de metade da vila de Midões, passada à Sé de Coimbra, no mês de Novembro, é ainda maior o número de testemunhas e confirmantes. Para além de todas as personalidades referidas no primeiro documento, estiveram ainda presentes: os bispos de Tui, de Lisboa, de Évora, o prior de Santa Cruz de Coimbra, o abade de Lorvão, os Mestres Alberto, Mido e Raimundo, etc.

Tudo isto nos dá uma ideia da importância de tais reuniões, o que leva o Professor António Cruz a escrever "As mais qualificadas pessoas, fácil é deduzir, se congregavam em Lafões, no mês de Novembro de 1169: toda a cúria régia e, com ela, prelados diocesanos e de mosteiros, autoridades civis e militares, e três distinguidos com o título honorífico de magister, quando não, algum deles, mestre de verdade" (12).

De facto, ali foram tomadas decisões de importância nacional, como é o caso da doação à Ordem do Templo da terça parte dos bens que viessem a ser conquistadas para além do Tejo, o que, na opinião autorizada de António Cruz, "permite intuir que el-rei, assistido pela sua cúria e quando fixado em Lafões, aí concebeu, plausivelmente, novo plano de acção, para que daí partisse nova cruzada" (13).

Fosse ou não ali concebido tal plano, certo é que a Cúria Régia reuniu várias vezes em Lafões.

Como se vê pelas datas dos documentos, a permanência do Rei no Banho foi demorada, pois, sendo certo que lá se encontrava em Setembro, em Outubro e continuava, pelo menos, a 13 de Novembro, se não houve interrupções, é legítimo concluir por uma presença contínua, num mínimo de dois meses.

Problema que se pode pôr é o de saber se terá voltado aos banhos. Já vimos que Pires da Sylva fala nos banhos da primavera seguinte, mas nenhuma outra fonte ou documento o refere.

Pinho Leal refere a vinda em 1175, ano em que, diz o autor de "Portugal Antigo e Moderno", quebrou a perna em Badajoz (14). É um claro erro, pois o desastre de Badajoz foi em 1169. O mais curioso é que Pinho Leal diz que, segundo Viterbo, o rei veio em 1169. É evidente que Viterbo é que está certo.

O erro de Pinho Leal ficou e alguns autores o têm repetido. Fá-lo, por exemplo, Correia de Azevedo, em "Lafões", livro publicado há 40 anos, que mais tem por objectivo louvar os vivos do que fazer história, amontoado de informaçôes colhidas a esmo, não raro carente de rigor e metodologia científica (15). Com a agravante de o autor afirmar que Pires da Sylva diz que D. Afonso Henriques frequentou o Banho em 1175, depois de uma queda em Badajoz, quando a verdade é que o antigo médico das Caldas (fins do seco XVII) nunca disse tal coisa. Antes, cita documentos ali lavrados e correctamente datados pela Era de César, ainda que reportandoos a 1189 da Era de Cristo, o que, cremos, se deve a gralha tipográfica, pois deveria ser 1169. Mas nunca escreveu 1175. Na realidade, quem escreve o erro é, mais tarde, Pinho Leal.

Eduardo dos Santos, num primeiro trabalho, (16) diz, correctamente, que o Rei veio em 1169, mas acrescenta, com alguma confusão na citação dos documentos, que voltou em 1175. Verdade que, em publicação posterior do mesmo trabalho refundido, (17) deu-se conta do lapso, suprime o ano de 1175 e aponta o facto com inteira correcção.

Em Suplemento do Diário de Notícias, Francisco Hipólito Raposo, num interessante artigo sobre o património histórico e artístico de S. Pedro do Sul, depois de afirmar que D. Afonso Henriques veio às Caldas por mais de um vez, repete a afirmação de que voltou em 1175 (18).

Se assim tivesse acontecido, é natural que disso houvesse notícia. Dificilmente Pires da Sylva deixaria de o assinalar, na sua "Chronographia Medicinal das Caldas de Alafoens" (1696), a mais antiga e completa publicação. A verdade é que não se conhece qualquer documento que o prove ou, sequer, o sugira. Parece-nos, pois, errado dizer que o Rei voltou em 1175. Mas claramente errado é dizer que veio pela primeria vez naquela data e que, nesse ano, foi o desastre de Badajoz.

E, antes do desastre de Badajoz, terá D. Afonso Henriques utilizado as águas do Banho? Partindo da afirmação de Duarte Galvão, na Crónica de D. Afonso Henriques, de que o príncipe teria nascido aleijado das pernas, já se tem admitido que, naqueles águas, menino ainda, teria encontrado cura. Para além de tudo que de fantasioso existe sobre a pretendida enfermidade do príncipe, não se conhece qualquer documento que deixe, sequer, supor a vinda de D. Afonso Henriques às Caldas de Lafões, antes do desastre de Badajoz.

A única certeza que fica é, pois, a da presença do primeiro Rei em 1169.

Ocorre perguntar onde se terão alojado o régio visitante e a sua comitiva e que obras terão sido feitas.

Segundo a tradição, teria o Rei terá mandado reconstruir as antigas gafaria e albergaria. Teria, ainda, mandado construir uns "estaus" (19) e, diz Mascarenhas, "um largo cazarão de banhos com uma picina unica, onde, na mesma água, entravam 40 e mais pessoas a um tempo, affectadas de differentes enfermidades!" (20). Mascarenhas não diz onde colheu os dados, alguns dos quais deixam dúvidas ou são mesmo incorrectos, como já vimos.

A este respeito, escreve Pires da Sylva: "Dado que os Romanos, ou antes delles os antigos Lusitanos fossem authores da fundação primeva, não deixamos de dever ao nosso primeiro Rey o Senhor D. Affonso Henriques, a do edificio, que hoje (1696) se ve nos banhos de Alafoens, & correria com a obra D. Fernando Pedro. Assim o testificão huns letreiros de letra Gotica, que em muitas pedras se achão, & todos vem a dizer; Affonso I, & Fernando Pedro (...) & alguns signaes de Cruz; o que tudo mostra ser a obra já de Christãos, & dos sobreditos; & se a obra não mostra ser real em ficar por acabar, he, porq as guerras, em que então estava o novo Reyno, não davão lugar a se aperfeiçoar" (21).

Na realidade, esses sinais lá estão em vários lugares. Qualquer observador atento poderá descobri-los. Mas, ainda que admitíssemos que a piscina foi construída por D. Afonso Henriques - e não foi -, a hipótese de tais sinais significarem Fernando Pedro não tem consistência, porquanto este Senhor de Lafões, a quem, em 1152, foi concedido o foral do Banho, não aparece em qualquer dos documentos de 1169, porque, nessa data, já era morto.

Já vimos que, em diplomas lavrados no Banho, nomeadamente na carta de couto de Oliveira de Frades, aparece um Pedro Fernandes, mordomo de D. Sancho, mas tal não significa que os sinais lavrados nas pedras se lhe refiram.

Baptista de Sousa analisou minuciosamente esses sinais, que encontrou também noutros locais, designadamente em pedras dos arcos da ponte. Reprodu-los e considera que não se trata de monogramas. De facto, dificilmente poderiam considerar-se como tal. Seriam, antes, marcas usadas pelos lavrantes e de numeração das pedras. Depois de várias considerações, conclui: "Não servem pois de fundamento, para se acreditar, que foi o nosso primeiro Rei o Fundador do Hospital; nem era de crer, que El-Rei no estado de precisão, em que se achava, esperasse que se fizesse hum edificio tal, para hir nelle pousar, havendo na parte do Reino, que elle possuia, mais Caldas, posto que menos energicas" (22).

Eduardo dos Santos, a este respeito, limita-se a repetir Sousa, mas conclui - a nosso ver menos bem - que, "embora faltem provas a favor também as não há contra a opinião de ter sido D. Afonso Henriques quem começou o velho edifício" (23). Esta opinião está hoje ultrapassada. A verdade é que há provas que afastam por completo a hipótese de D. Afonso Henriques. A arquelogia revela que o edifício termal é obra dos romanos e a piscina que mais tarde tomou o nome do rei foi por eles contruída, em substituição de uma outra desactivada, aquando das grandes alterações introduzidas nas Termas, no século I (24). Posteriormente e ao longo dos séculos, novas remodelações foram feitas e, sendo natural que, para receber tão importante personagem, se tenham feito obras de beneficiação, certo é que a piscina onde o 1º Rei de Portugal tomou banhos vinha dos romanos.

Quanto à tradição de o Rei ter mandado construir um paço para sua habitação, não apresenta credibilidade. Pires da Sylva não fala no paço, antes diz que o Rei se aposentou na casa que, ao seu tempo - dele, Pires da Sylva - era designada por "casa de D. Joseph", por nela residir, em tempo de banhos, D. José de Meneses, senhor do reguengo de Calvos (25).

Segundo outros, o Rei ter-se-ia hospedado em casa de D. Fernando Pedro, que, diz o foral do Banho, "governava toda a terra de Lafões". É bem possível que o Rei tenha ficado naquela casa, mas há que fazer uma correcção ao que se tem escrito. Deverá, então, dizer-se que ficou na casa que fora de D. Fernando Pedro, porque este, como vimos, já era morto em 1169 e, nesta data, na tenência de Lafões, aparece um tal Sancho Nunes, como pode ver-se, na já citada carta de couto de Oliveira de Frades. Tinham passado 17 anos após a concessão do foral.

Pelo facto de, ao longo do tempo, continuar a chamar-se "Calçada do Paço" a uma pequena calçada existente nas Termas, conclui Mascarenhas que o Rei mandou construir um paço. Não cremos que tal tenha acontecido. Pouco vale a razão invocada, porque bastava a circunstância de o Rei ter habitado uma qualquer casa para que lhe chamassem paço.

Bem pode o Rei ter-se instalado na casa que fora do falecido senhor de Lafões, D. Fernando Pedro, casa que poderá ter sofrido obras de adaptação, porventura ampliação, e que até podia ser a mesma que, cinco séculos mais tarde, Pires da Sylva designa por "Casa de D. José".

A escassez de dados não nos permite conhecer todas as transformações que ali se terão operado. Mais de oito séculos passados, imaginemos o que terá significado, para a localidade e para a região, a presença demorada do real enfermo, com os seus acompanhantes, toda a movimentação provocada pelas reuniões da Cúria Régia, largamante participadas, como já se viu. Tudo isto, forçosamente, haveria de repercutir na vida do Concelho do Banho e das velhas Caldas de Lafões, que irão
alcançar maior desenvolvimento, não só pelas obras de beneficiação que receberam como pela projecção que lhes iria dar a preferência do 1º Rei de Portugal.

Voltemos ao motivo deste escrito:

Não tem qualquer fundamento documental, ou sequer de tradição, a afirmação de que D. Afonso Henriques se haja instalado na Casa da Comenda. É uma afirmação recente, que alguém se lembrou de fazer e não passa de uma fantasia, que outros copiam e que começa a aparecer repetida, se não em escritos científicos de especilidade, pelo menos em escritos de divulgação.

É lamentável que tal aconteça. Se a presença do rei na Comenda tivesse algum fundamento, o facto não teria escapado aos historiadores de várias épocas, nomeadamente ao probo investigador que é o Dr. Alexandre Alves, no seu trabalho "As Casas da Comenda de Ansemil" (26).

E o mais grave é que o erro começa a ser repetido. Para além do citado "Guia do Turismo de Habitação" publicado pelo "Expresso", vimos a mesma afirmação, ainda que de forma menos taxativa, em "Um Guia para o seu Fim-de-Semana", recentemente publicado pelo Unibanco.

É por estas e por outras que a História, nomeadamente a História Local, anda cheia de patranhas!


(1) "Reflexões sobre Historiografia Local", in Beira Alta, Viseu, 1998, vol. LVII, 3/4, pp. 385-390.
(2) Amadeu Carvalho Homem, "História e Psicologia: Reflexões sobre o conhecimento do Objecto Ausente", comunicação apresentada ao 9.° Colóquio da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, Coimbra, 12 de Novembro de 1994, in Inter-Acções, nº 2 de Julho/Agosto de 1995, p 29.
(3) O Texto que se segue foi, em parte, publicado no nosso artigo "Para a História das Termas de S. Pedro do Sul", nossa colaboração in Um Olhar sobre as Termas de S. Pedro do Sul, edição do Clube "O Cebolinha", S. Pedro do Sul, 1999. Mais desenvolvido que o anterior, é, por sua vez, parte de um texto mais desenvolvido ainda, destinado a publicação futura.
(4) Antonio Pires da Silva, Chronographia Medicinal das Caldas de Alafoens, Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, 1696, p. 15.
(5) Documentos Medievais Portugueses-Régios, nº 294.
(6) Idem, ibidem, nº 295.
(7) crr. Viterbo, Elucidário , Edição crítica por Mário Fiúza. Porto, Liv. Civilização, 1962-1968, vol. II, p. 593 a.
(8) Citado por António Cruz, "Corte Portucalense em Lafões (1169)", in Tempos e
Caminhos (Estudos de História), Porto, Faculdade de Letras do Porto, 1973, pp. 31-32.
(9) Documentos Medievais Portugueses-Régios, nº 299.
(l0) J. Augusto de Oliveira Mascarenhas, Memoria da Antiga Villa do Banho e Caldas de S. Pedro do Sul, Vizeu, Typographia Vizeense, 1885. p. 9.
(11) António Cruz, ob. cit., pp. 28-29.
(12) Idem, ibidem, p. 32-33.
(13) Idem, ibidem, p. 31.
(14) Cfr. Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, 1873, vol.I, p. 317.
(15) Cfr. Correia de Azevedo, Lafões, composto e impresso nas oficinas Gráficas "A Modelar", Amares, 1958, p. 179.
(16) Cfr. Eduardo dos Santos, "As Termas de S. Pedro do Sul - Achegas para a sua
História", in Beira Alta, Viseu, 1967, vol. XXVI, n° 4, p. 482.
(17) Cfr./dem, "As Termas de S. Pedro do Sul- Elementos para a sua História", in Beira Alta, Viseu, 1971, vol. XXX, nº 4.
(18) Cfr. Diário de Notícias (Suplemento), n°. 241/108, de 28 de Janeiro de 1996.
(19) Casa para alojamento da corte ou pessoas de qualidade.
(20) Oliveira Mascarenhas, ob. cit., p.lO.
(21) Pires da Sylva, ob. cit., p. 10.
(22) J. Baptista de Souza, "Primeira Memoria sobre as Caldas de S. Pedro do Sul". escripta em 1821, in Jornal da Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa, Lisboa, Tomo XI, 1º Semestre, 1840, pp. 279-280.
(23) Eduardo dos Santos, ob. cit., (1971), p. 467.
(24) Cfr. Helena Frade e José Beleza Moreira, "A Arquirectura das Termas Romanas da S. Pedro do Sul", Separata da Revista de La Faculdad de Geografía e Historia Espacio. Tiempo y Forma - série II, 5, S. Pedro do Sul, 1993, p. 532.
(25) Cfr. Pires da Sylva, ob. cit., p.16.
(26) Cfr. Alexandre Alves, "As Casas da Comenda de Ansemil", in Beira Alta, Viseu, 1972, voJ. XXXI, fasc. II, pp.174-202.

sexta-feira, março 25, 2005

O românico no distrito de Viseu

Desenhos de Jorge Braga da Costa



O autor
Nascido em Viseu em 1945, passou a infância e a adolescência no Alto Douro. A partir de 1955 frequenta o Liceu Nacional de Lamego, iniciando-se muito cedo no estudo da pintura.
Com 15 anos expõe pela primeira vez (V Salão de Educação Estética de Lamego) e recebe, nas modalidades de Desenho, Aguarela e Óleo, menções honrosas. Em 1963 matricula-se na então recém-criada Escola Técnica da Régua, mas aos 18 anos alista-se no Exército e vai para Angola.
Regressando a Portugal, o apelo da aventura, dos grandes espaços, leva-o, porém, a partir de novo. Volta a Angola, viaja por todo o interior e retém paisagens, aspectos, rostos que o irão marcar para sempre, ao mesmo tempo que inicia um trabalho sistematizado de recolha e estudo da arte africana, com particular interesse pelas obras do Cuando Cubango. Dedica-se igualmente ao desenho etnográfico através da fixação de hábitos e costumes do povo Ganguela, nas Terras do Fim do Mundo.
Em 1975 fixa-se na cidade de Viseu onde trabalha com profundidade e expõe, dividindo-se entre a pintura e o desenho.



À esquerda: portal do sul da Sé Catedral, Viseu
À direita: portal da Igreja Matriz de Tarouquela, Cinfães

À esquerda: portal da Igreja Matriz de Barcos, Tabuaço
À direita: portal da Igreja Matriz de Sernancelhe

À esquerda: portal da Igreja Matriz de S. Martinho de Mouros, Resende
À direita: portal da Igreja de S. Cristóvão de Nogueira, Cinfães

À esquerda: portal da Igreja de Almacave, Lamego
À direita: Igreja do castelo, Ferreira de Alves, Sátão

À esquerda: portal da Igreja Matriz de Fonte Arcada, Sernancelhe
À direita: portal lateral da Capela de S.Pedro das Águias, Tabuaço

À esquerda: portal da Igreja de S. Pedro, Tarouca
À direita: portal lateral da Igreja de S. Pedro, Tarouca

À esquerda: portal ca Capela de S. Domingos de Fontelo, Armamar
À direita: portal da Igreja da Ermida do Paiva, Castro Daire

À esquerda: portal da Igreja de S. Pedro das Águias, Tabuaço
À direita: fresta da torre medieval da Sé de Lamego

Antecedentes do reinado de D. Duarte

Por António Dória Lopo de Abreu, Professor efectivo da Escola Secundária de Alves Martins - Viseu, Licenciado em Histórico-Filosóficas

Para estudar o curto reinado de 5 anos de el-rei D. Duarte, sob o meu ponto de vista, é necessário retroceder aos eventos resultantes da crise de 1383-85 e às mudanças radicais que se deram no País.

D. Fernando, o último monarca da dinastia Afonsina, com obra de vulto no desenvolvimento da marinha mercante, do comércio externo e interno e ainda nos domínios da agricultura, era, por temperamento, indeciso e sensual: "Mancebo valente, ledo e namorado, amador de mulheres e chegado a elas" - como o descreve o cronista.

As lutas com Castela resultantes de noivados falhados terminando no casamento com D. Leonor Teles, mulher que era de João Lourenço da Cunha, estão na origem da paz comprometedora para a independência nacional com a cláusula do casamento da sua única filha, a infanta D. Beatriz, com o rei de Castela, entregue a regência do reino, até ao nascimento dum herdeiro, a D. Leonor, detestada por parte da baixa nobreza, da burguesia, da arraia miúda, dada a sua ligação pública com o conde Andeiro.

Morto o rei, a regente manda aclamar como rainha D. Beatriz de Castela. Com o reino, sob o aspecto económico num estado calamitoso, este gesto foi a gota de água que fez estravazar a revolução popular.

Um triunvirato de que faziam parte D. Nuno Álvares Pereira, Dr. João das Regras liderado por Álvaro Pais, escolhe como pretendente um dos bastardos de D. Pedro I - O Mestre de Aviz, D. João.

Aclamado nas cortes de Coimbra, D. João desdobra-se numa intensa movimentação na recuperação do território e ocupação das fortalezas e castelos dos seguidores de Castela, em constantes campanhas militares e em deslocações da corte de sul a norte do País. Em 1391 demora-se em Évora até Junho seguindo pela Beira Interior, passando por Tomar, Leiria e Coimbra chegando a Seia a 1 de Agosto, demorando-se em Gouveia, Trancoso e Marialva e Fontearcada, fixando-se em Viseu a 15 de Setembro.

Razão do nascimento nesta cidade do Infante que, por homenagem de sua mãe D. Filipa de Lencastre e da tradição inglesa, recebe o nome de Duarte sendo agraciado com o título de Príncipe.

D. João ainda se demora em Viseu, reunindo cortes em Dezembro solicitando auxílio pecuniário e procedendo ao tabelamento dos produtos essenciais e ao valor médio dos salários.

Mas o monarca teve de pagar caro o seu trono seguindo à risca os conselhos de Álvaro Pais: "Dai o que não é vosso, prometei o que não tendes e perdoai a quem vos errou".

Razão porque não só as terras dos adeptos de Castela foram distribuídas fartamente mas muitas da própria coroa, pois, como escreve Fernão Lopes, "se cumularam de honrarias os que haviam abraçado o partido do Mestre... como Filhos de homens de baixa condição foram cavaleiros por seu serviço e trabalho".

Uma nova sociedade, outros costumes, outras necessidades substituiram a antiga construção política senhorial por outra estruturada no conceito de Nação com personalidade própria e independente de laços pessoais.

Economicamente depauperado o País por esta guerra demorada, pela peste, pela falta de géneros e de metais preciosos, numa Europa em idênticas condições, o monarca inicia uma política de expansão procurando captar as rotas do ouro e das especiarias e ainda os cereais e a carne, conquistando Ceuta. Um sonho e uma desilusão... volta-se, então para a costa atlântica numa empresa chefiada pelo infante D. Henrique.

Morto o rei cabe a D. Duarte uma política de recuperação dos bens doados por seu pai e do aumento do poder real através da lei mental e da instituição do morgadio, procurando também racionalizar e organizar legislativamente a administração para evitar os abusos e aplicar mais rigorosamente a justiça.

Quanto à política externa, orienta-a na continuação do seu reinado anterior - ou seja - continuação da conquista marroquina e expansão atlântica.

Muito haveria de esperar deste rei que aliava a uma sólida capacidade política uma eclética e vasta cultura que se revela na publicação do "Leal Conselheiro" e na "Arte de Cavalgar em toda a Sela" e que morreu de peste, na cidade de Tomar, em 1438.

(in A época e a personalidade de El-Rei D. Duarte "O Eloquente"
edição organizada pelo Clube de Coleccionismo Escutista da Região de Viseu - CERV, Agrupamento nº 956 - Repeses, 1994)


Capa da edição, com desenho de Pedro Albuquerque

D. Duarte, rei e filósofo (3/3)

8. Livros desaparecidos, livros encontrados

Uma das questões que se colocam, ainda hoje, quanto ao destino das mais de oito dezenas de espécies que integraram a Livraria de D. Duarte, é quais delas conseguiram - devido a sucessos de vária ordem - chegar até aos nossos dias.

Já em 1892 (curiosamente quando decorria mais um centenário natalício do monarca) Teófilo Braga republicava estas conclusivas palavras de Alexandre Herculano em 1840:

Dos livros que ajuntou D. Duarte, apenas sabemos da existência do intitulado Côrte Imperial e de um fragmento do Regimento de Príncipes. Tudo o mais quase com certeza se poderia talvez dizer que, ou o tempo consumiu, ou jaz sepultado por Bibliotecas estrangeiras como sucede às obras do mesmo monarca (26).

É hoje suficientemente conhecida a obra de Corte Enperial (sic), sobretudo após os estudos de J. M. da Cruz Pontes (27). Não deixa de constituir, no entanto, séria interrogação, a localização de grande parte dos códices descritos na relação atrás apresentada.

Entre esses códices sobreviventes - para além do da Côrte Enperial, que se conserva na Biblioteca Pública Municipal do Porto - somos levados a pensar sobre o destino de alguns outros como o Livro da Virtuosa Benfeitoria e o Livro dos Ofícios. Quanto ao primeiro, conhecemos a espécie que integra as colecções da Biblioteca Pública de Viseu e de que já anteriormente falámos. Terá sido esse cimélio o que integrou a Livraria de D. Duarte?

Quanto ao segundo, o grande filólogo Joseph-Maria Piel descobriu a espécie que se conserva na Biblioteca Nacional, em Madrid. Terá sido também essa valiosa fonte que pertenceu ao Eloquente?

É muito provável que alguns dos códices que estão referidos no inventário da Livraria de D. Duarte tenham chegado até aos nossos dias. Só um rastreio, profundo e sistemático, de diversas das espécies que se encontram em alguns dos nossos mais importantes arquivos e bibliotecas com a designação presente nesses inventários ou com outra - permitirá, estamos certos, a descoberta de outras obras que tenham sido pertença de tão culto monarca.

Algumas dúvidas importantes continuarão, no entanto, durante muito tempo, por esclarecer. Uma delas é a do texto Maneira de ler pelos livros dos Evangelhos, "alcobacense".

O Prof. Aires do Nascimento regista - com a precisão que lhe é conhecida - que se trata de um manuscrito integrado num códice do século XV. Estamos em crer que sim e as reflexões que vamos traçar poderão trazer alguma luz quanto à sua eventual (e remota) origem.

A questão que colocamos, à partida, é se este manuscrito não poderá ter sido o resultado de meditações e leituras desenvolvidas pelo próprio rei durante a sua estadia nesse mosteiro de Alcobaça... Tal poderia, eventualmente, ter ocorrido na segunda quinzena de Agosto de 1434, em que aí esteve - conforme nos referem os seus Itinerários (28) - ou em períodos imediatamente anteriores, conforme se infere dessa mesma publicação, isto é, os dias seguidos a 29 de Agosto de 1433, 28 de Outubro do mesmo ano ou, ainda, 17 de Agosto de 1435. A confirmar-se (documentalmente) esta nossa hipótese, a data mais provável poderia ser a da segunda quinzena de 1434, em que a estadia de D. Duarte foi mais prolongada nesse mosteiro.

9 - Um filósofo mais da paz do que da guerra

A pendência espiritual cristã de muitos dos escritos de D. Duarte como - o "alcobacense" atrás referenciado - permitem ver em Duarte mais um filósofo da paz do que da guerra. Mais de um século antes da publicação, por parte de Erasmo de Roterdão, do De Bellum, o rei Eloquente perfila-se, nessa primeira metade do século XV, como um filósofo de pendor humanista (ou pré-humanista). O seu pensamento pode, assim, de igual modo, ser perspectivado à luz do ideário de outros escritores do seu tempo.

Vistas hoje - à distância da mentalidade desse período de quatrocentos - as preocupações religiosas e filosóficas que transparecem nas obras do rei-escritor D. Duarte e nas do intelectual florentino, Leonardo Bruni (29), parece existir entre elas, alguns pontos de contacto.

Ambos viveram, como é sobejamente conhecido, num ambiente cortesão. Essa vivência fê-los reflectir, de alguma forma, nos seus escritos, a sociedade - e, mais do que isso, os ideais sociais e culturais - de onde emergiram.

Quanto a Bruni, cognominado o Aretino (não confundir com Pedro Aretino) a ele ficaram a dever-se, entre outros trabalhos também de inspiração senequista, uma História de Florença até 1404. Em tal obra deste autor - 23 anos mais novo que D. Duarte - reflecte-se fundamentalmente, de facto, uma sociedade de Côrte, para utilizarmos uma expressão tão cara a pensadores como Norbert Elias.

Quanto a D. Duarte, essa sociedade de Côrte está patente, essencialmente, no seu tratado de equitação para a nobreza, Ensinança de Cavalgar toda a Sela. Tal códice, que integrou a sua Livraria como vimos, foi escrito seguramente quando o autor era ainda Infante.

E é caso para nos questionarmos: terá o Infante conhecido os textos de Bruni? Tudo indica que não. Isso embora exista, na Livraria de Alcobaça (hoje na BN) um códice do século XV, contendo uma obra de Leonardo Bruni, De Bello Italico Adversus Gothos, onde a perspectiva humanista do seu autor já está presente.

Sendo o tratado da Ensinança... escrito - tudo o parece indicar - antes do Leal Conselheiro, estamos em crer que esta segunda obra já atesta uma maior maturidade intelectual de D. Duarte. E sabendo-se que foi cerca de 1435 que Leonardo Bruni terminou a sua nova tradução de Aristóteles, iniciada por volta de 1417, é bem provável que a redacção do Leal Conselheiro e a tradução referida possam ser situadas em períodos não muito distintos.

Pesem embora algumas críticas de circunstância, nem sempre muito fundamentadas (por desenquadradas do período em que a obra foi escrita), feitas ao Leal Conselheiro, continua a ser nossa convicção que, por esse trabalho, D. Duarte se agigantou, nas letras pátrias, ao mesmo nível que Leonardo Bruni na Florença que viu crescer, intelectualmente, Giovanni Pico della Mirandola.

10 - Um pensador e uma obra para o futuro

Poder-se-á dizer, em conclusão, que, em termos de História Cultural portuguesa, pouco se conhece, ainda, da verdadeira personalidade - e perfil psicológico e criativo - de el rei D. Duarte, o Eloquente.

É por demais evidente que, nesses fins da Idade Média portuguesa - o mesmo sucedendo em relação a distintas figuras do ocidente europeu do período de quatrocentos - muitas interrogações permanecem (grande parte delas, porventura, nunca encontrarão resposta). O homem medieval, tal como se veio a verificar também no Renascimento (e um pouco em todas as idades do Homem) continua a apresentar-se-nos, afinal, como um ser em processo, entre os terrenos e uma divindade próxima-distante.

A acção de D. Duarte, como intelectual empenhado e activo, ainda se encontra, de facto, verdadeiramente por estudar. Pesem, embora, os significativos contributos dados por Joseph-Maria Piel, Mário Martins e alguns outros.

Conforme sublinhou, no século passado, o Visconde de Santarém (30), D. Duarte poderá, de alguma forma, ser comparado - através da sua acção prodigiosa no campo das letras pátrias - a Lourenço de Médicis. Este investigador oitocentista centrou tal opinião comparativa em algumas linhas de força: o grande amor pela escrita; o terem incentivado ambos a criação de uma grande biblioteca; e o terem feito gravitar à sua volta um certo número de intelectuais distintos.

Em relação a esta última premissa, poder-se-ia apontar o caso do grande Mestre de Astrologia, de nome Guedelha. Em 1433, no dia imediato ao da morte de D. João I, na cerimónia de entronização de D. Duarte (31), esse conhecido astrólogo, judeu, notou que condições não favoráveis aconselhavam, então, que tal cerimónia fosse marcada para outro dia.

Rui de Pina, a este respeito, testemunha que nesse dia [15 de Agosto de tal ano], se chegou a ele Mestre Guedelha e lhe disse:

(...) pesso-vos por mercee, que este auto [de entronização} dilatees atee passar o meo dia, e nisso prazendo a Deos farees vosso proveyto, e será bem do vosso Regno, porque estas oras em que fazees fundamento seer novamente obedecido mostram seer muy perigosas, e de muy triste constellaçam, caa [porque} Jupiter estaa retrogrado, e ho Sol em decaymento com outros sinaees que no Ceu parecem assaz infelices (32).

A resposta de D. Duarte é, quanto a nós, a marca de um discurso que já não deixa antever o homem de uma Idade Média de trevas, mas o cultor de um Humanismo pré-renascentista:

(...) eu nom duvido [dirigindo-se a Mestre Guedelha} que ha Astronomia seja boa, e huma das Sciencias antre as outras permitidas e aprovadas, e que os Corpos inferiores são sogeytos aos sobrecelestes; porém ho que principalmente creo, he seer Deos sobre todo, e que com sua maoõ, e ordenança sam todas as cousas: e por tanto este Carguo que eu com sua graça espero tomar, seu hée em seu nome, e com sperança de sua ajuda ho tomo, aelle so me encomendo, e aa Bemaveturada Virgem Maria Sua Madre Nossa Senhora, cujo dia oje he, e com muita devaçam e devida humildade peço a Deos que me ensine, favoreça, e ajude a governar este seu pôvoo, que me ora quer encomendar como sentir que seja mais seu serviço (33). [Veja-se que o culto mariano em D. Duarte foi já analisado, atrás, neste trabalho, ponto 1].

Estas palavras atribuídas por Rui de Pina a D. Duarte são apanágio de um espírito já embebido dos ideais do Humanismo pré-Renascentista, repetimos. Elas poderiam ser assumidas, de igual modo, quando Marsilio Ficino, em Florença, do alto do púlpito da igreja que lhe estava confiada, exortava os fiéis a seguirem os mandamentos de Cristo, e a tomarem a Virgem e os santos como seus modelos de espiritualidade.

Tanto D. Duarte - à semelhança de Ficino - está imbuído já do espírito de um pré-Humanismo cristão, tal como afinal, pelas suas ideias, Fournival, Mestre Guedelha ou Apuleu de Madaura, nos remetem aos distantes tempos da Antiguidade e da Alta Idade Média.

Um confronto de ideias situa-se verdadeiramente, entre a Idade Média e o pensamento pré-humanista de D. Duarte. Neste período de ruptura - ou seja como barreira entre esses dois estádios de pensamento - situam-se as reflexões tecidas, nesse período de quatrocentos, em torno de Hermes Trimegisto.

Se por outros meios o rei Eloquente não tivesse conhecido tal obra, um deles é o tratado da Côrte Enperial, que integrou a sua livraria e porventura terá lido. No manuscrito português [portuense] estudado por Cruz Pontes desenrola-se, a dado passo, uma "apologética fundada nas conjugações dos astros" (34), preconizada também por aquele judeu da côrte de D. Duarte e de igual modo presente num poema de Fournival (35).

No mesmo manuscrito português não deixa também de se evocar Hermes Trimegisto, "nesse escrito atribuível ao século III e ao neoplatónico Apuleu de Madaura, o Logostileos", já usado por Santo Agostinho (36).

No século XV, tal como admite Eugénio Garin (37) - baseado, fundamentalmente nos estudos sobre Hermes Trimegisto, de Festugiere (38) e de Delatte (39) - vive-se uma questão fundamental, ou seja,

da ligação entre momento teorético e aplicação prática do conhecimento do cosmos, tanto na esfera celeste como na elementar: Aproxima-se, ao mesmo tempo, da delicada charneira que une astrologia e magia operativa ("a parte prática da ciência natural"); apresenta-se sobre o enredo dos laços entre configurações celestes e forças psíquicas, entre imaginações e emoções, entre sinais e influências corpóreas. Entra-se no âmbito da chamada ciência das imagens, das cerimónias mágicas e dos talismâs. Pode ler-se no Speculum: "Parti autem electionum dixi supponi imaginum scientiam, non quarumcumque sed astronomicarum". No centro, Hermes: "ex libris quoque Hermetis, est liber imaginum Mercurii, in quo sunt multi tractatus, unus de imaginibus Mercurii, alius de characteribus ejus, alius de annulis, et alius de sigillis". Nem este aspecto do hermetismo se pode separar do outro, "teológico", destinado a tanto êxito na segunda metade do século XV, mas insinuando-se já, pelos canais mais insuspeitados, nos finais do século precedente (40).

Esta longa citação de Garin adequa-se, perfeitamente ao espírito de D. Duarte. No seu discurso, de 1433, dirigido ao judeu astrónomo Mestre Guedelha, está já patente - de uma forma inequívoca, a nosso ver - esse assumir de um hermetismo teológico, que virá a ser desenvolvido por humanistas florentinos de finais de quatrocentos, como Giovanni Pico, em tratados sobre a astrologia divinatricem ou em Marsilio Ficino, esse outro estudioso de Hermes Trimegistro e do Picatrix de ressonância peninsular.

Nessas primeiras décadas do século XV - em que, no espírito de D. Duarte, o universo medieval se debatia com os ideais de um Humanismo pré-renascentista - toda a envolvência de um pensamento cristão não estava ainda isenta, afinal, de toda uma prática adivinhatória ancestral. O espírito que triunfa desse debate não deixa de ser, afinal, o de um homem que faz adivinhar - também ele - o Renascimento que se aproxima por via da cultura italiana e dos seus mais avançados filósofos.

S. Pedro do Sul (Gerós), Setembro de 1990

DOCUMENTO ANEXO

De que guisa se deve leer per os livros dos avangelhos, e outros semelhantes, pera os leerem proveitosamente


I -A hua ora nom leaaes muyto, mas boa parte menos do que poderdes, assy que se poderdes aturar leer doze folhas, nom leaaes mais de tres ou quatro. E aquestro he por o entenderdes melhor, e o passardes mais tarde, e vos enfadardes delle menos. Devees algüas vezes provar de leer, ainda que vos pareça que nom avees voontade, e sentyndovos sem ella, a hua ora nunca muyto perfiees, por que traz fastio e avorrecimento. Mas husando a mehude, e nom muyto juntamente, he melhor quando leerdes mais passo do que avees custumado, e bem apontado. Quando algüa cousa nom poderdes entender, nom vos detenhaaes muyto, por que nom ha meestre em theolosia que todo perfeitamente entenda, mas passae adiante e tomaae o que deos vos der, conhecendo que nom sooes pera lhe dar perfeito entendimento, mes que o filhaaes com protestaçom daver sobr'ello firme creença, como determyna e manda a ssancta igreja, e que, se o contrario do que a vos parece ella manda que se crea, que vos assy o teendes firme entençom do creer, ainda que o nom possaaes daquella guysa entender.

II - Destas cousas que assy nom entenderdes, nom vos embarguees de muyto preguntar, por que sabee certamente que taaes hi ha que poucos a ssabem, e melhor he pera vos passar per ellas e fazer conta que as nom vistes, que por dicto de alguu que avera empacho de vos mostrar sua myngua, filhardes tal teençom qual teer nom devaaes. Mes se alguas quiserdes saber, sejam perguntadas a certas e a taaes pessoas que sejam avydas por boas em vidas e de boo e grande saber, e a outras nom.

III - Posto que alguu boo livro todo leaaes, nunca vos enfadees de tornar a o leer, por que alguas cousas entenderees sempre novamente, que vos farom proveito. E pensaae que o sseu leer he obra meritória, e porem he bem, assy como vos nom enfadardes de rrezar alguas vezes o pater noster, assy algua cousa cada dia leerdes per el; e nunca tanto tempo leerees, se teverdes boa teençom, que leyxees dachar cousas que vos novamente prazam, ainda que as ja lessees.

IV - Por muyto que dei saibhaaes, nunca perfiees com gente da vossa ley, ou fora della. Leedeo pera vos principalmente, e aquesto pera aprenderdes e folgardes em boas cousas leer, e despenderdes algüa parte do tempo em bem fazer, e pera enssynardes algüus que vosso boo consselho queiram filhar.

V - Nom tenhaaes alguas teenções assy firmadas na voontade, que todo quanto leerdes queiraaes torcer pera concordar com ellas, mas aalem daquellas que per ffe e determinaçom da sacta igreja avees firmemente creer, outras per vos nom tenhaaes nem filhees, mes em todo vos fazee livre pera receberdes qual quer boo consselho e determynaçom, que per livros aprovados achardes, e vos der tal pessoa de que o devees filhar. E aquesto vos tirara com a graça de deos muytos errores em que alguus caãe por se nom avysarem.

VI - Item, quando for a determynaçom do que leerdes duvidosa, prazavos de a leixardes em duvyda, e nom vos quererdes afirmar em algüa parte, conhecendo que algüas cousas certamente avemos outorgar per ffe e obediencia, e per razom outras negar, e dalgüas seermos duvydosos, e nom em certa determynaçom. E por esto dizem que melhor he duvidar, que sandyamente determynar.


(26) Alexandre Herculano, in artigo cil. [Panorama, IV]; e Teófilo Braga, op. e vol. cil.
(27) J. M. da Cruz Pontes, Estudo para uma Edição Critica do Livro da Corte Enperial, Coimbra. Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade, 1957.
(28) Ver Humberto Baquero Moreno, Itinerários de El-Rei D. Duarte, edição cit. atrás in nota 16 (1ª parte).
(29) Leonardo Bruni viveu entre 1369 (pelo que era 23 anos mais novo do que D. Duarte) e 1444.
(30) Na introdução à edição do Leal Conselheiro, de Roquete, de 1892.
(31) Informa Rui de Pina (ver nota seguinte) que a cerimónia de entronização de D. Duarte decorreu "em um magestoso teatro que se levantou junto do Palácio da Alcáçova", em Lisboa.
(32) Veja-se esta passagem in Crónicas de Rui de Pina, Porto, Lello & Irmão Editores, colecção Tesouros da Literatura e da História, 1977 [obra com edição e revisão de M. Lopes de Almeida), pp. 492-493.
(33) Rui de Pina, idem, p. 493.
(34) J. M. Cruz Pontes, op. cit., p. 175.
(35) Idem, ibidem.
(36) Idem, p. 176.
(37) Eugénio Garin, O Zodíaco da vida, a polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI, Lisboa, Editorial Estampa, 1987, pp. 57-58.
(38) A. J. Festugiêre, Le révelation d'Hermes Trimegiste, I - L 'astrologie et les sciences occultes, avec une appendice sur I'Hermetisme Arabe, por L. Massignon, Ed. Gabalda, Paris, 1944.
(39) Ver Textes latins et vieux français relatifs aux Cyranides, sobretudo, nas págs. 237-288, o Liber Hermetis de quindecim stellis, quindecim lapidibus, quindecim herbis et quindecim imaginibus, na edição de L. Delatte, Paris, Belles Lettres, 1942. Esta e a fonte da nossa nota anterior foram-nos pessoalmente indicadas por Eugénio Garin, quando com ele trabalhámos em Florença, em fins de 1987.
(40) E. Garin, op. cit., p. 58

quinta-feira, março 24, 2005

D. Duarte, rei e filósofo (2/3)

4 - O rei e a leitura dos Evangelhos (um mss. alcobacense)


Itinerário de D. Duarte, em 1434 (apud H. Baquero Moreno, 1976), período em que o monarca esteve, durante algum tempo, em Alcobaça, em cujo scriptorium foi redigido o ms. De que guisa de deve leer per os livros dos avangellos.

Trata-se da redacção manuscrita do texto - autónomo - do capítulo 94 do Leal Conselheiro. Na edição crítica deste importante livro do Eloquente tal capítulo figura com a (precisa) designação De que guisa se deve leer per os livros dos avangelhos.

Pela leitura do texto em questão - apresentado, adiante, como DOCUMENTO ANEXO - somos levados à formação de seis tipos de reflexão dominantes (uma para cada um dos respectivos parágrafos):

I. O estudioso deve atender à necessidade de uma moderação da leitura para uma melhor compreensão dos textos.

II. Para um saber bem estruturado nenhum intelectual, habituado aos seus regulares hábitos de leitura, se deve eximir de consultar pessoas "de bem e grande saber".

III. Pela leitura encontram-se, por vezes, algumas máximas que nos dão a sensação de já as ter lido. Se elas, porém, derem prazer ao leitor este deve prosseguir na sua releitura e no aprofundamento do seu conteúdo.

IV. O prazer da leitura - para além da aprendizagem - pode propiciar a prática de olhar o outro, isto é, de fazer bem por outrem.

V. Para se ler terá de haver liberdade de opção no entendimento daquilo que nos é propiciado pela escrita. Sugere o autor a leitura de livros aprovados, por forma a que este estudioso - se não avisado - não caia em erros que lhe serão prejudiciais, ao nível da sua vida prática e da sua formação (designadamente religiosa).

VI. Quando não resultar clareza na interpretação de um dado texto, por parte do leitor, este deverá assumir uma posição de dúvida sistemática. Só assim se poderão (à semelhança do que sustenta no parágrafo anterior) evitar aspectos pouco claros na interpretação.

Estas seis coordenadas resultantes da leitura do texto de D. Duarte permitem-nos, ainda, duas outras reflexões.

Sabe-se que, por alvará de D. Afonso V, de 18 de Agosto de 1451 - portanto apenas 13 anos depois da morte de D. Duarte - "se declara ter sido acordado em conselho mandar queimar os livros falsos ou heréticos" (17). Já neste seu manuscrito - ou seja, já no Leal Conselheiro - está patente a ideia do monarca no sentido de determinadas leituras perniciosas poderem obstar à formação de uma boa consciência cristã e aos desvios do espírito. Estabelece-se, assim, por via deste extracto, uma primeira regra de conduta que não deixamos de relevar ao nível de uma primitiva História da Leitura, tanto em público como em privado.

Aspecto não menos pertinente diz respeito ao facto de, por meio deste seu texto - como procura de sistematização de uma via de conduta colectiva (por meio dos hábitos de leitura) - D. Duarte preconizar uma atitude de dúvida sistemática. Séculos antes de Francis Bacon, e muito antes de René Descartes assumir - já em pleno século XVII, na sua obra Discours de la Méthode - essa mesma postura científica, já D. Duarte relevava a dúvida para uma melhor (e mais segura) apreensão de conhecimentos.

Importa precisar, por seu lado, que toda a caminhada para o saber assume, neste texto de D. Duarte (objecto aqui da nossa análise), uma vertente vincadamente espiritual. É bem claro o seu autor quando, neste manuscrito - constante como já se disse do códice alcobacence (18) - se cinge, sobremaneira, e fundamentalmente, à problemática da "leitura dos livros dos Evangelhos". À produção deste manuscrito voltaremos, adiante, no ponto 8.

5 - O temor ao divino (uma evocação iconográfica)

Na obra de D. Duarte, LeaIConselheiro - muito mais do que no Livro de Ensinança... - está patente ao leitor, sobretudo, o escritor cristão, o pensador crente, que se apresenta numa clara faceta de temor para com o divino.

Nessa segunda metade do século XIV - seguindo-se, de alguma forma, os ensinamentos de S. Boaventura - incumbia a todo o cristão o prosseguir num caminho recto, de preparação para a morte. Era essa, afinal, uma caminhada por vezes longa, mas sempre cautelosa.

Em termos de uma Antropologia do Simbólico, dialogar com o divino, por "via de uma prática regular do benfazer, era, de alguma forma, assegurar a posse de um lugar entre os eleitos na vida além-túmulo, na eternidade com Cristo. O reino dos Céus, parafraseando o texto bíblico, conquista-se entre os terrenos.

Neste contexto, o homem (essencialmente da nobreza) ao deixar o mundo terreno desejava deixar patente - por via de uma arte tumular a si associada - aquelas figuras cristãs a quem, em vida, mais associara o seu espírito e os seus testemunhos de fé. Procurava, por outro lado, por uma via indirecta, encontrar forças tutelares do panteão cristão, de forma a que essas o pudessem acompanhar - por via da intercessão - na procura de um lugar no rebanho (simbólico) do Bom Pastor.

Das figuras que viveram "na côrte de D. Duarte - ou directamente dependente desta - há a figura de um nobre da região de Viseu, Fernão Gomes de Góis, que também estaria nessa mesma postura de conquista das forças do panteão celestial, que o acompanhassem no seu derradeiro repouso em Cristo. Tendo falecido poucos meses depois de D. Duarte, ele terá certamente deixado instruções a seus familiares - e estes deram-nas ao artista Joham Afonso - para que fosse edificado um sepulcro (onde se conservassem as suas ossadas) que evocasse as principais forças tutelares do seu apego religioso (19).

É hoje sabido, graças a Vergílio Correia (20), que Joham Afonso, mestre dos sinos, foi quem lavrou esse monumento que hoje se conserva numa pequena (mas rica) igreja localizada em Oliveira do Conde, não muito distante de Carregal do Sal, na região de Viseu. Esse túmulo, adianta aquele mestre da História de Arte portuguesa,

começou-o na era do nascimento de nosso senhor jhu xpo de 1439 anos acabouo na era 40 começado tres dias andados do mes de maio e pos doze meses em lavralo (20).

Observando-se esse túmulo quatrocentista (há pouco o apreciámos), constata-se que ostenta, à cabeceira, o Salvador, "entre os animais simbólicos". Do lado dos pés, apresenta-se, por sua vez, um mensageiro celeste e a Virgem: simbolizam a Anunciação. No frontal o autor esculpiu S. Miguel, arcanjo; Baltazar rei, o moço; Melchior rei, médio; Gaspar rei, velho; Santa Maria; S. João Apóstolo, evangelista; S. Nicolau; S. Sebastião, mártir; Sta. Catarina, virgem; Sta. Bárbara, virgem, cada uma das figuras acompanhada das respectivas legendas em pedra.

Não nos detendo, aqui, sobre o túmulo de D. Duarte, constataremos, no entanto, que como homem de profunda espiritualidade cristã também ele, pela sua obra - material, cultural e espiritual - se patenteia, ainda hoje, como um fervoroso seguidor dos princípios bíblicos.


Túmulo de Fernão Gomes de Góis, começado a edificar em Oliveira do Conde, em 1429 (e concluido em 1440)

Friso de figuras cristãs alegóricas do monumento de Fernão Gomes de Góis, vendo-se, da esquerda para a direita, os três Magos (Baltazar, Melchior e Gaspar) e, ainda, Santa Maria.

6. As práticas de leitura de um aprendiz de filósofo

Norteado por essa espiritualidade cristã - bem como pelos ensinamentos (no âmbito da filosofia de um Humanismo pré-renascentista) que, na Côrte, os seus mestres lhe incutiram - D. Duarte foi um homem dotado de uma vasta e profunda cultura. Ele terá sido guiado, decerto, pela inquietude de todos os aprendizes de filósofo que viveram no seu tempo ou o antecederam.

Já em 1840, no Panorama (21), Alexandre Herculano sublinha:

Só a lista das obras d'el rei D. Duarte espanta pela variedade de materiais em que este rei filósofo empregou a sua pena, nada rude. - Marco Paulo já estava traduzido no seu tempo. O livro da côrte imperial prova que naquela época se tratavam em vulgar as árduas matérias de teologia polémica. Levantavam-se cartas topográficas do reino, se é que os Cadernos das cidades e vilas de Portugal, que existiam na livraria del-rei D. Duarte, não eram antes uma espécie de estatística, o que, em nosso entender, mais admirável fora. Então, Diogo Afonso Mangancha, Fr. Gil Lobo, os dominicanos Fr. Rodrigo e Fr. Fernando d'Arroteia, e tantos outros oradores faziam descer do alto dos púlpitos palavras de eloquência (...) Estudava-se a filosofia e a história, de que dão testemunho os livros filosóficos, e historiadores romanos e modernos da mesma livraria d'el rei D. Duarte (22). Enfim o ensino da jurisprudência, trazido de Itália por João das Regras, produziu uma multidão de jurisperitos, a quem depois Portugal deveu grande parte da legislação, excelente para aquele tempo, que se encontra no código afonsino (23).

Meio século depois destas pertinentes considerações de AJexandre Herculano, Teófilo Braga (24) apresenta-nos o conjunto das obras - códices - que integraram a biblioteca de EI Rei D. Duarte e que poderão ser assim sumariadas:

[1} O Pontifical;
[2} Marco Paulo, latim e linguagem, em 1 volume;
[3} Viatico
[4} As CoUações que escreveu João Rodrigues;
[5} Miracula Sanctorum (Flos Sanctorum);
[ó} Blivia (Biblia);
[7} Breviairo (sic);
[8} CoUações que foram do Arçobispo de Sam Thiago;
[9} Dialectica de Aristóteles;
[10} Dialectica de Avicena;
[11} Valerio Maximo;
[i2} Epistolas de Seneca com outros Tratados;
[13} Regimento de Principes picado de ouro nas tavoas e as cobertoiras
vermelhas;
[14} Pastoral de letra antiga;
[15} Declaraçam sobre as Epistolas de Seneca;
[1ó} Agricultura que foi de João Pereira;
[17} Livro da Quinta Essentia;
[18} Hum livro pequeno que começa:
Si cupis esse memor;
[19} Outro livro pequeno, que começa: Domino meo illustri potenti
domino comite Nicolao de Petraldo;
[20} Os Cadernos da Confissão que escreveu João Calado;
[21} Livro dos Evangelhos;
[22} Actos dos Apostolos;

[23J Genesy;
[24) Estorial Geral;
[25) O livro de Salomão coberto de bezerro;
[26) Coronica de Espanha;
[27) Coronica de Portugal;
[28) Livro dos Martyres (Agiológio);
[29) Livro de Tristam;
[30) O Amante
[31) Blivia (Bíblia);
[32) Livro da Montaria que compilou o virtuoso Rei Dom João ao qual Deus dê eternal glória;
[33) Merli(m);
[34) Regimento de Príncipes;
[35) Segredos de Aristotiles;
[36) O Livro de Galaaaz;
[37) O Livro da Cetraria por Castellão;
[38) O Livro das Trovas de El-Rei Dom Diniz;
[39) Livro da Corte Enperial;
[40) Livro da Lepra encadernado em purgaminho;
[41) Livro de Logica;
[42) Livro das Pregações;
[43) Livro das Meditações de Santo Agostinho, e das Confissões;
[44) Livro das Meditações de Santo Agostinho, que trasladou o moço da Camara;
[45) Caderno das Comemorações, em letra gros(s)a;
[46) Livro das Oras do Espirito santo encadernado em letra grosa coberto de coiro verde;
[47) Cadernos das cidades e villas de Portugal;
[48) Livro da Virtuosa Benfeitoria;
[49) Livro das Ordenações dos Reis;
[50) Livro dos Officios da Casa de algum rei;
[51) Bartolo com tavoas e coiro verde;
[52) Marco Tullio, o qual tirou em linguagem o Infante D. Pedro;
[53) Livro da Guerra;
[54) O Livro do Conde de Lucanor;
[55) Julio Cesar;
[56) Coronica despanha em cadernos;
[57) Bartolo em cadernos encadernado em purgaminho;

[58) Conquista de Ultramar;
[59) Livro da Cetraria, que foi d'El-rei Dom João;
[60) Orto do Sposo;
[61) Agricultura, que foi d'el-rei Dom João;
[62) Arvore das batalhas;
[63) Marco Tulio;
[64) Livro das Trovas d'EI-Rei Dom Affonso, encadernado em couro, o qual compilou F. de Montemór o novo;
[65) Valerio Maximo em aragoez;
[66) Guerras da Macedonia em papel de marca grande;
[67) O Livro de Romaqueya, em papel;
[68) Capítulos que El-Rei Dom Duarte fez quando em boa hora foi Rei;
[69) Livro de Monteria, por castellão;
[70) Livro de papel velho encadernado em purgaminho que fala dos costumes dos homens e outras cousas;
[71) O Arcypreste de Frysa;
[72) Libro de Anibal por portuguez;
[73) Livro de Monteria;
[74) Um livro das Meditações de Santo Agustinho que treladou o moço da Camara;
[75) Estorya de Troya por aragoez;
[76) Livro de Rumelião;
[77) Livro de Estrologia encadernado e coberto de coiro preto;
[78) Livro de resar d'el-Rei em que está a Confissão geral;
[79) Livro das Trovas de El-Rei;
[80) Livro dos Padres Santos em papel de marca mayor que foi de João Pereira;
[81) Livro da Primeira Partida;
[82) Livro de Martim Pires;
[83) (Outro) Livro de Martim Pires;
[84) Collações de letra pequena;
[85) Livro de cavalgar, que el-rei D. Duarte compilou;
[86) Tratado de Virtud.


Pela descrição destas cerca de nove dezenas de espécies, aqui sumariadas, pode concluir-se - para além de aspectos intrínsecos relacionados com a respectiva autoria e conteúdo - pelo estabelecimento de uma teoria em torno da confecção do livro manuscrito no século XIV em Portugal.

7. Aspectos técnicos da preparação do livro manuscrito no século XIV

Iremos, aqui, cingir a nossa análise a quatro domínios específicos. São eles:

I - qualidades e tipos de papel utilizados em alguns dos códices; II - aspectos da apresentação e organização dos mesmos; III - tipos de letra presentes na escrita; e IV - técnicas e materiais de encadernação.

7.1. Qualidades e tipos de papel

Há espécies em que se utiliza papel velho [esp. 70]. Outras são descritas como tendo sido feitas, apenas, em papel [esp. 67]. Mais surpreendente, a nosso ver, é o caso daquelas espécies em que foi utilizado papel de marca grande e, também, papel de marca maior. (alusão, decerto, ao respectivo formato de cada folha).

Este papel seria, porventura, importado de cidades francesas, espanholas ou italianas. Poder-se-ia, ainda, dar o caso de se tratar de papel importado de alguns dos muitos moinhos localizados no actual espaço de Marrocos, como o de Xativa (25).

7.2. Apresentação dos códices

Os códices apresentar-se-iam, por regra, como sendo de um caderno (grupo de folhas anexadas numa mesma unidade maior ou menor). Dois casos, porém, existem que nos dão a conhecer estarem tais obras organizadas em vários cadernos [esp. 56 e 57]. Enquanto a primeira é uma crónica em cadernos [vários, subentende-se], a segunda apresenta-se-nos como um livro em cadernos encadernados (sic).

7.3. O Tipo de letra

Outro contributo de significativa importância que nos traz a descrição dos livros da Biblioteca de D. Duarte diz respeito ao tipo de letra apresentada.

Uma das obras foi escrita em letra antiga [esp. 14]. Uma outra, porém, já o foi em letra pequena [esp. 84]. Temos, porém, dois casos em que o leitor é informado que a letra com que foram redigidos tais códices é letra gros(s)a [esp. 45 e 46].

Esta referência fará, decerto, com que o investigador da História do Livro recue até esse século XIV e veja como, em um scriptorium como o de A1cobaça, de Santa Cruz de Coimbra ou do Lorvão, um determinado calígrafo compendiava ou recriava os conhecimentos da filosofia - nas suas várias vertentes - da sua época. E tendo cada calígrafo o seu tipo de letra - embora estes possam ser agrupados em grupos específicos - o seu estudo permite hoje, por técnicas psicológicas das mais avançadas, entrar um pouco por dentro da intimidade de tais escribas medievais portugueses. Poder-se-á entrar, até, dentro do seu próprio imaginário.

7.4. Técnicas e materiais de encadernação

É de igual modo possível, por este mesmo banco de dados bibliográficos, descortinar como tais códices eram encadernados e que tipos de materiais eram utilizados. Torna-se até viável- na ausência material de tais livros - saber com que tintas trabalhou o artífice que se encarregou da encadernação das mesmas espécies.

Pelo menos um dos códices era encadernado com pele de bezerro [esp. 25]. Aí se diz, com efeito, tratar-se de um livro coberto de bezerro.

Alguns desses livros manuscritos foram, por sua vez, encadernados a couro, nas diversas modalidades (e côr) que passaremos a designar. Um dos livros sabemos ter sido encadernado em couro [esp. 64]; um outro, com descrição já mais pormenorizada, terá sido encadernado em coiro preto.

Haverá alguma probabilidade que os encadernadores preferissem, então, o couro verde ao couro preto. Sabemos, com efeito, que pelo menos duas espécies foram encadernadas em coiro verde [esp. 46 e 51].

Um maior número de códices foi encadernado em pergaminho [esp. 40,57 e 70]. Especialmente em alguns mosteiros portugueses - como os atrás referenciados - havia já no século XIV alguns artífices devidamente instruídos nas técnicas tradicionais de preparação do pergaminho que, depois, era utilizado na confecção de livros.

Alguns dos códices apresentam-se, por vezes, na respectiva encadernação, identificados com os próprios títulos das obras que integram. Tais encadernações encontram-se, assim, embelezadas com motivos vários, decerto que a várias côres.
A descrição de uma dessas espécies é deveras sugestiva a este respeito. Refere-se com efeito, que um desses livros, o Regimento de Príncipes se encontra picado de ouro nas tavoas e as cobertoiras vermelhas [esp. 13].

(17) Índices dos livros proibidos em Portugal no século XVI, apresentação, estudo introdutório e reprodução fac-similada dos índices por Artur Moreira de Sá, Lisboa, INIC, 1983, p. 9.
(18) o conjunto dos códices alcobacences tem vindo a ser objecto de sistematização e, também, de estudo, por parte do Prof. Aires do Nascimento, a quem se devem já estudos de reconhecida importância nesse domínio (Biblioteca Nacional).
(19) Registe-se que Fernão Gomes de Góis fora camareiro-mor de D. João I, de Boa Memória "e que este o fizera cavaleiro no dia em que filhara Ceuta aos mouros". - Veja-se Vergílio Correia, artigo citado na nota seguinte.
(20) Vergilio Correia, artigo "A Arte: o século XV", in História de Portugal, vol. IV, Barcelos, Portucalense Editora, 1932, p. 406. Ver, do mesmo Mestre, Três Tumulos... e, ainda, de A. Lucena e Vale, Beira Alta Terra e Gente, Viseu, 1958.
(21) Alexandre Herculano, "Novelas de Cavalaria Portuguesas - Novelas do século XV", in Panorama, vol. IV, Lisboa, na Tipografia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 1840, p. 7 [desta histórica revista existe uma colecção completa na Livraria Humanística da História da Tipografia de Expressão Cultural Portuguesa).
(22) Veja-se, para além do Livro dos Conselhos de El Rei D. Duarte, já referido em nota anterior, a obra de Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra nas suas Relações com a Instrução Pública Portuguesa, Tomo I, secção "Livraria do rei D. Duarte", pp. 209 e sgts.
(23) As Ordenações Afonsinas viriam a ser objectos de históricas edições quinhentistas em Lisboa, em 1565 e 1578, da responsabilidade do impressor Manuel João, pouco antes de, em 1568-69, deixar a capital, a convite do Bispo de Viseu D. Luís de Ataíde, passando a exercer o seu mester nesta cidade beirã, entre 1569 e 1572. Veja-se Maria Alzira P. Simõcs, Catálogo dos Impressos de Tipografia Portuguesa do século XVI, Lisboa, 1990, n." 744 e 747.
(24) Já antes de Teófilo Braga a relação das obras da Livraria de D. Duarte foi divulgada de várias formas. É o caso de D. António Caetano de Sousa, nas Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, tomo I, Lisboa, 1739, pp 544-546: "Memória dos livros de uso del Rey D. Duarte, a qual está no dito livro antigo da Livraria da Cartuxa de Évora:.. "; Inocêncio Francisco Silva, "Memória acerca da biblioteca de el-rei D. Duarte", in Panorama, Lisboa, vol. XI, 1854; e, só depois, Teófilo Braga, op. cit. Só depois dessa data a lista de "os livros que tinha el-rey dom Duarte" foi publicada, segundo o manuscrito 3390 da Biblioteca Nacional, Lisboa, fi. 163, por Joseph-Maria Piel, na edição crítica do Leal Conselheiro, de 1942.
(25) Artur Anselmo, Origines de l'lmprimerie au Portugal, Braga - Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
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